Belo mundo, onde você está: Sally Rooney e as angústias de uma geração

Belo mundo, onde você está: Sally Rooney e as angústias de uma geração

Sally Rooney é uma daquelas escritoras de quem eu muito ouvia falar e ficava planejando ler em algum momento. Protelei por muito tempo, até que surgiu a oportunidade de ler o (muito) aguardado novo livro da autora, Belo mundo, onde você está. Comecei a ler e me vi tão envolvida que, antes mesmo de terminar o livro, providenciei Pessoas Normais para ler logo em seguida.

A história de Alice, Eileen, Simon e Felix, os quatro personagens de Belo mundo, onde você está, me fisgou logo nas primeiras páginas. E não falo que me fisgou com um plot surpreendente ou acontecimentos e reviravoltas, pois eu logo percebi que não encontraria isso na prosa de Sally Rooney. A autora escreve sobre os sentimentos humanos, sobre as partes mais vergonhosas e vulneráveis de nós; sobre a rotina e as expectativas esmagadoras que perseguem principalmente os chamados millennials.

O livro acompanha a vida de duas melhores amigas, Alice Kelleher e Eileen Lydon, que estão prestes a entrar na faixa dos trinta aos e estão naquela confusa etapa da vida pós-término de faculdade. Morando em cidades diferentes, as duas trocam cartas, que são intercaladas entre os capítulos do livro.

"Belo mundo, onde você está" é o novo livro de Sally Rooney
Belo mundo, onde você está foi lançado pela Companhia das Letras.

Alice Kelleher e Eileen Lydon em “Belo mundo, onde está você”

A amizade entre Alice e Eileen é o grande eixo do livro. A narrativa dos outros personagens basicamente gira em torno delas. As duas amigas, que se conheceram na faculdade, mantém uma amizade de anos que já passou por alguns momentos complicados e que tenta se manter forte apesar de tudo.

Eileen Lydon vive em Dublin e é editora em uma revista. Filha de um casamento complicado, de uma relação difícil com a mãe e ainda pior com a irmã, ela é insegura e está sempre se sentindo como se não fosse boa o suficiente. Após passar anos escutando comentários negativos sobre si e viver em “guerra” com a sua irmã, Eileen não consegue ver nada de bom em si mesma e não acredita que é digna de ser amada.

Alice é uma escritora de sucesso que, após um colapso mental e um período difícil, vai morar em uma cidade pequena na Irlanda, em uma casa a beira mar. Alice alcançou o sucesso literário de forma rápida e toda a atenção a pegou desprevenida. Todas as obrigações da carreira, como lançamentos, entrevistas, etc., vão gradualmente fazendo-a se sentir sufocada. Em alguns e-mails trocados com a amiga, Alice diz que as pessoas não querem apenas ler seus livros, mas saber mais sobre a sua vida pessoal e formação, algo pelo qual ela não sabe lidar.

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Dessa forma, a personagem de Alice pode facilmente ser vinculada a própria Sally Rooney, que após o lançamento de seu primeiro livro, Conversas entre amigos (2017), recebeu uma considerável atenção da crítica e do público e com o seu segundo lançamento, Pessoas normais (2018), e sua adaptação para a TV, ela se consolidou como uma das maiores escritoras dessa geração, sendo chamada até mesmo de “Salinger da geração Snapchat”.

Sally Rooney já demonstrou várias vezes o seu desconforto com essa atenção e já disse que gosta de levar uma vida privada. De certa forma, Alice é uma representação desse despontamento e Rooney o demonstra através dos discursos da personagem.

Esse conforto de ambas, personagem e autora, é o clássico problema do século XXI em que as informações chegam rápidas e simultaneamente, não sobrando tempo para assimilação. É também uma crítica a como pessoas famosas são prosseguidas e têm a privacidade invadida por simples curiosidade da mídia e do público. Com a internet e todo o avanço da tecnologia, fica cada vez mais difícil manter uma vida privada e individualidade. As pessoas estão sempre com celulares nas mãos e são bombardeadas com notícias a todo tempo e os famosos se tornaram os alvos favoritos de alguns produtores de conteúdo.

No decorrer do livro, Alice e Eileen passam por momentos diferentes de suas vidas. Enquanto uma alcança o sucesso profissional e não consegue lidar com ele, a outra está em um emprego em que não tem certeza se é o que quer e se sente estagnada na vida.

Sally Rooney, autora de "Belo mundo, onde você está". foto: reprodução

As relações de Alice e Félix, Eileen e Simon por Sally Rooney

O livro inicia com Alice aguardando alguém que conheceu no Tinder (nada mais século XXI do que isso). Félix chega e os dois tem um encontro desastroso e desconfortável. Dias depois eles se encontram novamente em uma festa na casa de Félix, onde ele fica sabendo que Alice é uma escritora de sucesso. Essa descoberta faz Félix ficar inseguro e o leva fazer uma série de questionamentos a profissão dela. Esse trecho do livro resume bem como vem a ser a relação deles ao longo da história. Félix constantemente tenta deixar Alice insegura e a convencer de que ela é “louca por ele”, mas que ele apenas a tolera. Alice, porém, não se deixa manipular e se mantém firme em suas posições, o que trás conflitos constantes entre eles.

O fato de Félix não ser do meio literário (ele trabalha em um depósito), faz Alice ficar mais atraída e se sentir mais confortável para se envolver com ele. Félix está distante de toda a vida tumultuada da profissão dela e a faz esquecer o mundo “glamoroso” das grandes cidades. O personagem também se mostra a todo tempo simples e sem ambições. Ele vive um dia após o outro, exatamente o que Alice precisa.

Já Eileen tem uma relação indefinida com Simon, seu amigo de infância (e que também se torna amigo de Alice). Eileen e Simon têm sentimentos fortes e mútuos, mas não admitem e sentem que um envolvimento mais profundo poderia colocar a amizade deles em risco. Uma das cenas mais bonitas do livro é um flashback da adolescência dos dois, onde Eileen, não mais suportando os próprios sentimentos, fica parada na chuva encarando Simon e esse entende instantaneamente o que se passa na cabeça dela, mas “a afasta” e diz que eles precisam ter cautela.

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Os relacionamentos dos dois casais representam bem as relações atuais, que estão repletas de insegurança e de medo da intimidade e vulnerabilidade. Alice e Félix não se deixam rotular ou aprofundar em algo significativo, pois ambos estão machucados por acontecimentos passados e assombrados pelo medo de cometer outros erros. Eileen e Simon se amam, mas não conseguem ultrapassar a linha da amizade e tentar algo mais intimo, pois isso seria arriscar tudo.

Os sentimentos de Eileen de insegurança e de não se considerar digna também representa uma geração que constantemente se coloca em um patamar inferior e não se considera bom o suficiente para algo ou alguém.
Os millenials são uma geração de ganhou mais liberdade de escolha, mas essa escolha os assusta. Essa geração não precisa mais casar por conveniência ou porque “é o certo” ou até mesmo para sair da casa dos pais. Os millenials se casam quando querem e com quem desejam. Todavia, tal liberdade de escolha os aterroriza. Por saberem todos os riscos e observarem os erros de seus familiares e outros, almejam um caminho diferente e uma vida melhor.

Portanto, ao estarem tão cientes dos erros e analisarem tudo tão avidamente, os millenials não têm coragem para riscos. A intimidade é um salto no escuro, é confiar que a outra pessoa vai estar lá embaixo para nos segurar, mas muitas experiências nos provam que podemos nos estatelar e seguir machucados. Se entregar a uma relação é acreditar que pode dar certo e confiar que o outro vai receber de braços abertos a nossa entrega. É isso que Sally Rooney nos mostra através dos seus personagens e suas relações complicadas, que podemos viver com medo e afastar as pessoas ou podemos dar esse salto no escuro.

As expectativas frustradas da vida adulta em “Belo mundo, onde está você”

Eileen trabalha como editora em uma revista literária, mas sente que depois da faculdade a sua vida não foi para frente. Se por um lado, Simon trabalha como conselheiro político e é bem sucedido em sua área, Alice é uma famosa escritora, e Lola, a irmã de Eileen, está prestes a casar, por outro lado, Eileen sente que é a única que não saiu do lugar.

Enquanto Eileen sofre por sua vida, Simon, apesar de bem sucedido, é solitário e não leva uma vida tão perfeita quanto parece. Já Alice está se sentindo sufocada, infeliz e pensa que ninguém a ama. Todos os personagens da obra estão frustrados e decepcionados, pois a vida não foi nada do que planejaram.

Sally Rooney mostra muito bem como as expectativas criadas na juventude vão sendo frustradas e no lugar dos sonhos e planos surge a angústia e a incerteza. A vida adulta é cheia de responsabilidades e objetivos frustrados, de relacionamentos fracassados e erros constantes. Nada na infância ou adolescência pode preparar alguém para a jornada adulta. É um balde de água fria jogado em toda a nossa pretensão de achar que somos pessoas especiais e que faremos diferente.

Uma geração marcada pela angústia e pela decepção

Os milleannials (pessoas nascidas no final dos anos 80 até mais ou menos o final do século) pertencem a uma geração a que muito foi prometido, mas que pouco de fato foi dado. Uma geração incentivada a fazer faculdade, mestrado e doutorado com a promessa de bons empregos e uma vida melhor que a de seus progenitores, porém a realidade se mostrou contrária.

De uns anos para cá presenciamos uma séria crise política e um mundo em colapso. Não só a economia está em crise, mas nos encontramos no meio de uma crise climática preocupante. Em Belo mundo, onde você está, Alice e Eileen conversam sobre como o mundo perdeu o senso do belo. Com o poder do capitalismo e consumo exacerbado, o ser humano começou a produzir mais lixo, causando assim uma série de problemas para o planeta. As duas discutem, inclusive, sobre quando foi que o mundo começou a perder essa beleza e Eileen diz que acha que foi com a criação do plástico.

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Sally Rooney lendo seu livro "Pessoas Normais". foto: reprodução

Os millenialls, portanto, descobriram que não há como ter oportunidades em um mundo que está em colapso. Com o avanço assustador do conservadorismo nos últimos anos, algumas áreas, como a ciências humanas, começaram a se tornar, mais uma vez, uma ameaça. A educação e a saúde não são mais uma prioridade, os empresários são cada vez mais beneficiados e o trabalhador médio ganha cada vez menos. Assim, a sociedade se afunda cada vez mais na pobreza e na ignorância.

Alice e Simon conseguem crescer na carreira. Ela, porém, fica sobrecarregada. Já ele se sente melancólico e solitário. Por outro lado, Eileen consegue um emprego em sua área, mas não tem certeza se é o que realmente quer. Félix não chegou a estudar e trabalha em um emprego simples, mas onde se sente bem. Com esses quatro personagens é possível observar que não há uma regra ou uma lista com etapas a se cumprir em determinada ordem e tempo. A autora nos mostra que cada um tem a própria experiência e a felicidade é relativa.

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Em Belo mundo, onde você está é possível compreender o porquê de a autora ser considerada a porta voz das angústias millennial. Com uma prosa simples e sem exageros, Sally Rooney escreve sobre pessoas que estão lutando para se encontrar, ter uma estabilidade e sobreviver em um mundo em crise.

Através de seu jeito sincero, a autora descreve relações interpessoais e é direta sobre sexo e amor. Ela nos faz refletir como às vezes estragamos tudo ao tentar controlar situações ou por criarmos complicações que, na verdade, só existem em nossas cabeças, ou até mesmo quando criamos tempestade em copo d’água em uma situação que poderia ser resolvida com uma simples conversa.

Seus personagens são cheios de defeitos, vulnerabilidades e inseguranças. Sally Rooney é capaz de representar uma geração marcada pela angústia e pela expectativa e fazer com que se sintam menos solitários e mais compreendidos.


Belo mundo, onde você está

Autora: Sally Rooney

Tradutora: Débora Landsberg

Companhia das Letras

352 páginas

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Escrito por:

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Estudante de Letras. Obcecada por livros a ponto de não saber mais como viver no mundo real. Apaixonada por literatura inglesa e filmes de época. Praticamente um Hobbit, seja pelo tamanho, por passar muito tempo lendo ou por nunca dispensar uma xícara de chá.
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