“O Morro dos Ventos Uivantes” e o embranquecimento de Heathcliff

“O Morro dos Ventos Uivantes” e o embranquecimento de Heathcliff

O Morro dos Ventos Uivantes marcou a história da literatura. Lançado em 1847, o livro de Emily Brontë se tornou um clássico da literatura inglesa (e mundial).

Narrando o romance entre Heathcliff e Cathy, a trama é carregada de um drama intenso. Á princípio se apresentando como uma história de amor, a narrativa se desenrola quase como um pesadelo. Os personagens não têm descanso. Passam noites sem dormir, veem fantasmas e raramente estão felizes. A vida, para eles, se transformou em um tormento. 

Parte do trio de irmãs escritoras, não é exagero dizer que Emily foi a que criou a história mais impactante. Cheio de inspirações do gótico, O Morro dos Ventos Uivantes já foi lido, analisado e adaptado muitas vezes. Apesar disso, um ponto do texto continua não resolvido: a etnia de Heathcliff. Sobretudo porque essa característica foi apagada em quase todas as adaptações da obra.

Retrato da autora Emily Brontë
Retrato de Emily Brontë (reprodução)
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À primeira vista já é possível perceber que Heathcliff não é branco. Alguns descrevem sua pele escura, outros comentam que ele tem a cor de um cigano. O tratamento que ele recebe é pior, falas sugerindo que o seu lugar é a cozinha também são comuns.

O fato de ser uma pessoa não branca na Inglaterra do século XIX é marcante para a construção de Heathcliff. A forma como é maltratado em O Morro dos Ventos Uivantes pode justificar o endurecimento de sua personalidade. Apesar disso, Emily Brontë não demarca qual seria sua etnia. Ainda assim, as diferenças entre ele e os outros são óbvias.

Essas diferenças têm como resultado a forma como Heathcliff é visto pela sociedade e pela própria Cathy na trama.

A Era Vitoriana 

A Era Vitoriana 
Retrato da Rainha Vitória (reprodução)

O Morro dos Ventos Uivantes é fruto dos costumes e hábitos da era Vitoriana. O período, que durou de 1837 a 1901, foi marcado pelo reinado da rainha Vitória. Esse momento foi cheio de códigos morais e restrições, principalmente para as mulheres. Todos os aspectos da vida eram limitados para elas, desde as roupas até os pensamentos. Em outras palavras, ser mulher era o mesmo que não ter voz.

As irmãs Brontë, que escreveram suas obras no mesmo contexto, usaram as histórias para criticar essas restrições. Cathy, por exemplo, é uma mulher determinada, teimosa, com opinião. Gosta de se comportar “como menino” e não quer deixar que seu gênero limite seus pensamentos.

Além disso, as informações sobre o momento histórico são importantes, sobretudo, para entender porque a etnia de Heathcliff é um ponto de destaque. Se as mulheres brancas enfrentavam barreiras, as comunidades não brancas eram ignoradas. 

Retrato da Rainha Vitória e família.
Retrato da Rainha Vitória e família. Autor: Franz Xavier Winterhalter (reprodução)

A abolição da escravidão aconteceu em 1833 na Inglaterra. Dessa forma, se Heathcliff era descendente de escravos, ele não teve tempo suficiente de construir bens próprios. Ele poderia até mesmo ter sido escravizado durante a infância. 

Contudo, Emily não explica a origem do personagem. Ele simplesmente é trazido pelo pai de Cathy após uma viagem para Liverpool. O Sr Earnshaw também não justifica como nem porque trouxe o menino. Se Heathcliff se lembra de suas origens, não conta sobre elas. 

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Heathcliff chega sem passado. Não possui sobrenome ou tradições para se alinhar. Ele reflete a vivência de grande parte das populações não brancas na diáspora, que se perderam de sua ancestralidade. Para ele só existia um futuro incerto.

Nesse sentido, Cathy teria muitas dificuldades para enfrentar caso decidisse assumir um romance com ele. Heathcliff não tinha o nome, as posses e nem a cor certa. Sendo mulher, ela acabaria desonrada. Isso motivou a escolha de Linton, aprofundando os traumas de Heathcliff. Logo depois, esses traumas resultam em todo tipo de crueldade na história. 

A construção da obsessão em “O Morro dos Ventos Uivantes”

Cena de "O Morro dos Ventos Uivantes", versão de 2011.
Cena de “O Morro dos Ventos Uivantes”, versão de 2011 (reprodução)

O que Emily Brontë retrata em O Morro dos Ventos Uivantes não é uma história de amor. O relacionamento entre Heathcliff e Cathy é obsessivo. Como resultado, a vida dos dois se torna cada vez mais complexa.

Estando no lugar de outro, Heathcliff sempre sentiu que era visto como inferior. Na residência dos Earnshaw, a única que o tratava de forma digna era Cathy. Desse modo, o personagem se agarra a ela, como um bote salva vidas. Tudo na existência de Heathcliff passa girar em torno de Cathy. Ele acredita que ela é sua possibilidade de ser feliz, por ser quem o valorizou. Mais do que uma amante, Cathy era sua única esperança de ser visto como humano. 

Em diferentes passagens do livro, Heathcliff desabafa com Nelly sobre suas inseguranças. Em uma das conversas, a governanta chega a argumentar que, apesar de não ser branco, Heathcliff continuava bonito e devia se orgulhar por isso. 

Ao ser vaga sobre detalhes da verdadeira etnia de Heathcliff, Emily Brontë declara que na Inglaterra do século XIX bastava ter a “cor errada”. Não interessava para sua construção debater a origem exata dele. A sociedade seria brutal com todos que fugissem ao padrão.

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Desse modo, O Morro dos Ventos Uivantes diz muito sobre as relações étnico raciais da época. A forma como a aparência de Heathcliff foi construída causava espanto ou até medo. É a partir dessa brutalidade que o personagem vai se tornando cada vez mais duro.

Cathy (Kaya Scodelario) em "O Morro dos Ventos Uivantes" (2011)
Cathy (Kaya Scodelario) em “O Morro dos Ventos Uivantes” (2011)

Depois que Cathy decide se casar com Linton, Heathcliff acredita que não tem mais nada a perder. É onde começa a sua jornada para se provar, enriquecer e mostrar que poderia tomar de volta a amada de um homem branco.

Em seu casamento com Isabella, onde demonstra seu lado mais perverso, ele pretende se vingar do irmão dela, mas também de tudo o que eles representam. Os Linton, para Heathcliff, são a personificação dos motivos pelos quais ele foi desprezado e tudo o que ele nunca poderia ser. Portanto, conforme envelhece e sua personalidade se torna cada vez mais bruta, seus atos espelham os tratamentos que recebeu durante a vida. E o que ele conhece como respeito é a violência.

Ainda assim, Heathcliff nunca se esquece de Cathy. E ter sofrido um abandono da única figura que ele associava ao amor arruína ainda mais suas outras relações. Se antes Heathcliff era o outro humilhado e servil, agora ele é o outro demandando ser servido. E é essa satisfação em poder inverter os papéis de oprimido e opressor, mesmo que em um pequeno espaço, que traz um pouco de alegria a ele.

O problema do embranquecimento de Heathcliff

"O Morro dos Ventos Uivantes", versão de 1992.
“O Morro dos Ventos Uivantes”, versão de 1992, com Ralph Fiennes e Juliette Binoche (reprodução)

Ainda que Emily Brontë expresse claramente na narrativa que Heathcliff não é branco, na imensa maioria das adaptações da obra ele foi embranquecido.

A prática do whitewashing é, infelizmente, muito comum e já aconteceu com diversos personagens. Contudo, nesse caso, ela se torna ainda mais problemática. Por se tratar de uma obra clássica, grande parte do público pode ter o primeiro contato com a história através das adaptações.

Ao escolher um ator branco para interpretar Heathcliff, a maior parte da construção de personagem feita por Emily se perde. Ele se torna um anti-herói, amargurado e embrutecido, por conta das diversas violências racistas sofridas durante a vida. Ou seja, quando o embranquecimento acontece essas questões não podem ser discutidas.

A primeira adaptação conhecida é de 1920, ainda no cinema mudo. Porém, Heathcliff só foi caracterizado como negro pela primeira vez em 2011, com o ator James Howson, versão dirigida e escrita por .

James Howson como Heathcliff em "O Morro dos Ventos Uivantes" (2011), filme de Andrea Arnold
O ator James Howson como Heathcliff em “O Morro dos Ventos Uivantes” (2011), filme de Andrea Arnold

Sendo uma obra tão importante, muitas gerações ainda discutirão O Morro dos Ventos Uivantes. Apesar de ser impossível cravar qual era a verdadeira etnia de Heathcliff, esse detalhe nada pequeno é muito necessário para compreender a obra. 

Acima de tudo, o ponto não é entender perfeitamente quais seriam as características físicas de Heathcliff. O necessário é mergulhar na construção da Inglaterra vitoriana que Emily desenhou. A autora foi capaz de demonstrar um recorte do que a população não branca viveu no país, em uma pequena escala. Como resultado, Emily formou personagens que vão viver na memória dos leitores para sempre.

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Bacharel em Estudos de Mídia e mestranda em Comunicação, ama falar sobre livros, filmes e música. Acredita que escrever pode ajudar a construir uma revolução na sociedade e quer fazer parte disso.
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