Quem realmente foram as mulheres do musical “Hamilton”

Quem realmente foram as mulheres do musical “Hamilton”

O musical Hamilton: An American Musical, de Lin Manuel Miranda, criou uma verdadeira comoção ao apresentar personagens femininas fortes que se destacam. Mas quem realmente foram essas mulheres contemporâneas de Alexandre Hamilton que também estiveram na linha de frente na construção da nova nação? Eliza Schuyler, Angélica Schuyler (a terceira irmã é Peggy Schuyler, mas com pouco aprofundamento na personagem) e Maria Reynolds representam o que foi um século difícil para as mulheres. 

Em 2020, o mundo presenciou algo inimaginável até então: o musical Hamilton estreou na plataforma de streaming Disney +. Ainda pouco conhecido no Brasil, este musical da Broadway se tornou um grande sucesso no país norte-americano e no mundo todo. Logo, o teatro, que sempre foi visto como algo elitista, entrou na casa de milhares de pessoas para contar a história de Alexander Hamilton, um bastardo revolucionário e pai fundador da nova nação que também faz rap.

É isso mesmo! Em 2015, Lin Manuel Miranda revolucionou a Broadway ao criar um espetáculo com influências da cultura hip hop e com um elenco majoritariamente não branco. O que foi um choque para apreciadores tradicionais do teatro musical se transformou em sinônimo de novos tempos para o público.

Hamilton não foi apenas um fenômeno, ele criou uma geração que agora se sente representada nos grandes palcos de Nova York.

Aliás, não faria sentido contar a história de Hamilton do jeito convencional, segundo Miranda, em entrevista ao The Atlantic: Essa é uma história sobre a América no passado, contada pela América de agora, e nós queremos eliminar qualquer distância entre a audiência contemporânea e essa história”. 

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Diversidade de elenco de Hamilton abre novos caminhos na Broadway
Diversidade de elenco de “Hamilton” abre novos caminhos na Broadway | Foto: reprodução 

Portanto, usar atores negros, latinos e asiáticos para representar personagens brancos faz jus à uma América que, dia após dia, luta e sobrevive, sendo que contar a história de um imigrante que ajuda a construir um país é incrivelmente atemporal, pois está nas raízes de todas as nações.

Mas bem além do simbolismo que a figura de Alexander Hamilton carrega, é preciso falar sobre as personagens femininas desse musical e o que elas necessariamente representam. Os três interesses românticos de Hamilton revelam como era ser uma mulher no século 18.

Ao passo que um país livre era erguido e construído, a participação das mulheres era fortemente renegada ou apagada – e ainda por cima elas eram constantemente objetificadas. 

Angélica Schuyler e o dever 

“I’m a girl in a world in which my only job is to marry rich

My father has no sons so

I’m the one who has to social climb for one

So I’m the oldest and the wittiest

And the gossip in New York City, is insidious

And Alexander is penniless, ha

That doesn’t mean I want him any less” – Satisfied.

Renée Elise Goldberry, atriz que interpreta Angelica Schuyler nos palcos, afirmou em entrevista que a socialite americana poderia ter sido presidente dos Estados Unidos se os tempos fossem outros na época. 

Renée Elise Goldberry é Angelica Schuyler no musical Hamilton
Renée Elise Goldberry é Angelica Schuyler no musical “Hamilton” | Foto: reprodução

A influência de Schuyler era tão grande que constantemente trocava cartas com Benjamin Franklin, Thomas Jefferson (para esse chegou a escrever que incluísse as mulheres no trecho “todos os homens são criados iguais” na Declaração da Independência norte-americana) e com Alexander Hamilton, seu cunhado.

Angelica era uma mulher à frente do seu tempo. Nascida em 1756 e filha de um general do Exército Continental, cresceu entre reuniões e conselhos de guerra que precederam a Revolução Americana, de forma a adquirir um vasto conhecimento político. Descrita como inteligente e encantadora, Angelica participou da criação dos Estados Unidos através de troca de correspondência com figuras importantes. Em suas cartas, ela orientava e aconselhava sobre a construção da nação norte-americana. 

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Ao longo do musical, Angelica é a representação da mulher forte e independente. A sororidade entre ela e suas irmãs é gigante, sendo mostrada na música “Schuyler Sisters” como elas se apoiam mutuamente. No show, o amor entre as mulheres chega a ser mais valorizado que o amor romântico, tanto que Angelica, mesmo apaixonada por Hamilton, abre mão do moço por sua irmã, que também nutria sentimentos pelo revolucionário.

Na música “Satisfied”, Angelica canta seus sentimentos sobre Hamilton. Ela se sente insatisfeita, assim como ele, porém quando vê sua irmã perdidamente apaixonada, deduz rapidamente três coisas: primeiro, ela é a irmã mais velha, por isso deve manter o status da família, é o seu dever; segundo, ela não é ingênua e sabe que Alexander quer elevar seu status casando com alguém rica; e terceiro, ela ama Eliza mais do que tudo e nunca a magoaria. Sendo assim, Angelica deixa seus desejos de lado para apresentar os dois.

É nítido que Angelica carrega um fardo ao mesmo tempo que é seu dever ser uma mulher exemplar – e para isso é necessário negar seus sentimentos. Além disso, ela também é uma irmã que preza constantemente pela sua família. No entanto, o peso do dever é imposto à ela, assim como é imposto a maioria das mulheres.

Apesar de ter vivido 16 anos na Europa, Angelica foi uma das mães fundadoras da nação americana. Sua perseverança e sabedoria alavancaram vários homens ao status de poder. Na Broadway, Angelica torna-se um ícone feminista, relembrando que as mulheres construíram e fizeram parte da história.

Eliza Schuyler e a fidelidade 

“I’m erasing myself from the narrative

Let future historians wonder how Eliza

Reacted when you broke her heart

You have torn it all apart

I am watching it

Burn” – Burn

O mundo não conheceria a glória de George Washington, Alexander Hamilton e seus companheiros sem todos os esforços de Elizabeth Schuyler Hamilton. A segunda Schuyler Sister foi descrita como determinada e impulsiva, uma mulher forte que viveu até os 97 anos para contar a história de seu marido e dos que morreram na guerra. 

Phillipa So interpreta Eliza Schuyler no musical exibido na Disney+
Phillipa So interpreta Eliza Schuyler no show | Foto: reprodução

Eliza foi uma das primeiras filantrópicas americanas. Não à toa, exista quem diga que o musical é mais sobre ela do que sobre o próprio Hamilton. Antes de se casarem, Elisa e Alexander trocavam inúmeras cartas, entre segredos de Estado e juras de amor que Hamiton mandava à amada; ali nascia uma paixão que perdurou a vida inteira. 

Assim como a irmã, Eliza esteve ativamente no seio da revolução americana e orientou o marido nas questões políticas. Nos intervalos dos cuidados da família, ela ajudou Hamilton nos escritos políticos.

Em arquivos encontrados, partes de uma carta de 31 páginas sobre o conhecimento financeiro, que mais tarde ajudaria na carreira de Hamilton como Tesoureiro dos Estados Unidos, estava escrita com a letra de Eliza. 

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No musical, Eliza canta seu amor juvenil e doce por Hamilton na música “Helpless”, porém é quando ele a atrai com Maria Reynolds que conhecemos outro lado de Elisa. Em “Burn”, ela canta suas mágoas pela traição do marido e, ao queimar as cartas de Hamilton, decide se apagar da narrativa.

Eliza era muito consciente da notoriedade e representatividade que Hamilton, como homem, alcançaria. Sendo assim, por ser uma mulher do século 18, tomou a única liberdade que se foi possível. Logo, nenhum historiador saberia de suas cartas com Alexander; aquilo só cabia a ela e a mais ninguém. Como mulher, Eliza se retira de sua própria narrativa por autopreservação e amor próprio.  

Ainda assim, em algum momento Eliza reúne toda a nobreza e coragem para perdoar o marido com o qual teve oito filhos. Eles voltam a viver juntos e quando Hamilton morreu, ela e os filhos estiveram com ele. Começava ali uma luta que durou mais de 50 anos. Eliza estava decidida a preservar o legado do marido.

Junto à Angelica, seus filhos e amigos, ela ouviu cada companheiro que lutou ao lado de Alexander, reorganizou todas as cartas, documentos e escritas, defendeu Hamilton de todos os seus críticos e conseguiu publicar a biografia e a maioria dos textos do falecido marido. Aos 90 anos, fez com que o Congresso comprasse e lançasse as obras de Hamilton, adicionando na biblioteca do local para os futuros historiadores. 

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Eliza sempre se perguntou o que ela poderia fazer a mais. Logo, seu comprometimento foi tão grande que ela fundou o primeiro orfanato privado de Nova York. Outro dos seus feitos foi a arrecadação de fundos para o Monumento de Washington em memória ao primeiro presidente dos Estados Unidos.

Elisa também falou contra a escravidão e fez tudo o que estava ao seu alcance para deixar o mundo parecido com a visão de Alexander. Sem querer, ela construiu seu próprio legado e se pôs novamente na narrativa como uma mulher extraordinária.  

Maria Reynolds e a desmoralização 

“My husband’s doin’ me wrong

Beatin’ me, cheatin’ me, mistreatin’ me

Suddenly he’s up and gone

I don’t have the means to go on” – Say No To This

Um dos maiores feitos de “Hamilton” é conseguir mesclar o simbolismo e a veracidade dos personagens de forma a mostrar esses heróis mais humanos. Obviamente, existem mocinhos e bandidos, mas até mesmo os vilões conseguem somente serem pessoas com qualidades e defeitos.

Dessa maneira, Maria Reynolds pode ser considerada por muitos uma vilã, afinal, ela foi amante de Hamilton. Mas, de fato, ela era apenas uma mulher procurando sair de um casamento abusivo. 

Jasmine Cephas Jones é Peggy Schuyler no primeiro ato e no segundo ato vive Maria Reynolds em Hamilton
Jasmine Cephas Jones é Peggy Schuyler no primeiro ato e no segundo ato vive Maria Reynolds em “Hamilton” | Foto: reprodução

Ao contrário de Angelica e Elisa, Maria Reynolds era de família pobre. Foi alfabetizada com poucas instruções. Logo, casou-se aos 15 anos com James Reynolds, um homem muito mais velho que ela e que havia servido na Guerra Revolucionária. Por muitos anos viveu um relacionamento abusivo com James, sendo maltratada. 

Em 1791, cansada e sufocada pela relação, Maria visitou Hamilton – na época ela com 23 e ele com 34, relatando que seu marido tinha a abandonado e ela não teria como se manter sozinha. Hamilton ajudou Maria financeiramente e na mesma noite os dois se envolveram sexualmente. 

Após outros encontros, James descobriu a traição e começou a chantagear Hamilton. Inconsolada, Maria escreveu ao amante “Eu sinto mais por você do que por mim e gostaria nunca ter nascido para lhe dar tanta infelicidade”. Logo após, Hamilton publicou o “Panfleto Reynolds”, quase cem páginas sobre o caso dos dois e sobre as chantagens. A exposição levou Maria a ser publicamente desprezada, obrigando-a se mudar para a Europa e trocar de nome.

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No musical, a música “Say No To This” relata a relação entre ambos. Dessa forma, a história é contada nas palavras de Hamilton, que se sente enganado. Já para Maria nunca lhe foi dada a chance de contar sua versão do caso. Logo, a música faz questão de não apontar Maria como a única responsável pela relação. No entanto, a difamação e a negação pela sociedade ficaram apenas para a jovem.

Representatividade feminina em “Hamilton”

Elenco feminino é destaque em Hamilton e se torna influência feminista
Elenco feminino é destaque em “Hamilton” e se torna influência feminista | Foto: reprodução

Lin Manuel Miranda tomou muito cuidado ao representar as mulheres que cercaram Hamilton. Enquanto o musical busca trazer outra leitura dessas personagens que baseia nas discussões atuais sobre feminismo, é também nítida a pressão da época sobre essas mulheres. Em Hamilton conhecemos figuras muito importantes da história americana, mas são as mulheres quem realmente protagonizam o espetáculo. 

Cinco anos depois do elenco original de Hamilton, o musical segue em cartaz com outros atores no palco. O show é um fenômeno cultural, sendo referenciado em produções como a série “Cara Gente Branca” e o filme “Entre Facas e Segredos”. Já no requisito premiações, a produção venceu 11 Tony Awards, um Grammy Awards e também um Pulitzer. 

Consequentemente, a representação das personagens femininas em Hamilton teve uma enorme aclamação na mídia e no público. Tanto o público feminino infantil como o público adulto viram que mulheres também participaram da construção de nações. Mesmo que a história contada tenha apagado essas figuras femininas, elas são eternas no que diz respeito à perseverança e empoderamento.

Além disso, a representatividade feminina com diferentes etnias no musical mostrou a importância de todas as mulheres ocuparem lugares de destaque. São lutas diárias e cansativas, mas que resultam em incríveis produções como Hamilton – e com um gostinho de esperança que seja possível ver mais Angelicas, Elisas, Marias (e Peggys) nos palcos da Broadway.


Edição por Isabelle Simões. Revisão realizada por Gabriela Prado.

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Jornalista em formação apaixonada pela sétima arte. Representatividade e movimentos sociais através do cinema é fundamental. Apreciadora de livros, animes e joguinhos de ps4 nas horas vagas. The final girl.
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