No início de 2017, fizemos um texto sobre uma nova – e na época desconhecida do grande público – cantora americana, que misturava ritmos de pop e R&B com letras sobre, basicamente, autoestima e empoderamento. Trazendo uma proposta fundada no amor próprio sobre um biotipo e sobre uma etnia que são mais hostilizados do que celebrados, tal cantora apresenta uma faceta mais real e inclusiva, bem como faz da mulher, e somente dela, o centro da narrativa, em um cenário musical que segue em sua fórmula pétrea de preferência pelo europeu em detrimento do “exótico”. A cantora em questão, como já devem ter notado – ou como irão notar agora – é Lizzo.
O ano de 2019 deve ser o ano da Lizzo. Com um álbum musical que já se tornou atemporal, entrou no seleto grupo de cantoras negras a atingirem o #1 da Billboard (junto com Beyoncé, Rihanna, Janelle Monáe e Cardi B) e também de rappers femininas a alcançarem o mesmo feito (junto com Cardi B, Lauryn Hill, Iggy Azalea, Lil’ Kim e Shawnna). Além disso, a possibilidade de ser indicada para um prêmio Grammy (em uma possível interpretação favorável da regra¹) promete consagrar o atual ano como o divisor de águas da carreira da cantora.
Preta e gorda: Lizzo não pede desculpas para a autoconfiança
Apesar de tais adjetivos, tanto na língua portuguesa quanto na maioria das demais, ainda serem confundidos com ofensas, principalmente por aqueles que acreditam na inferioridade de pessoas que não se adequam ao padrão de beleza eurocêntrico e tamanho 36, isso nunca foi um problema para Lizzo.
Melissa Viviane Jefferson, nascida em Detroit, Michigan, há 31 anos, sempre foi gorda e, bem, negra. Tendo sempre existido em grupos de antiga marginalização, a cantora não teve escolha – assim como muitos iguais a ela, não tem – a não ser se impor, e para a nossa sorte, ela escolheu fazê-lo principalmente através da música.
Lizzo disse em uma entrevista comandada por Sam Smith, outro cantor que também está quebrando barreiras, para a V Magazine que irá lutar:
“Eu vou lutar pelo o que eu fui marginalizada, eu vou lutar por todas as pessoas marginalizadas. Além disso, eu sinto honestamente que não existe algo como hétero (risos). Porque dane-se caixas; eu sou muito grande para ser colocada em uma, de qualquer jeito. Eu sou uma p#@ gorda.”
A coragem da cantora em não tentar ser o que não é, se aceitando completa e intimamente, é o que a faz tão importante no cenário musical, social e, também, político. O amor próprio é um ato que inicia internamente, mas que se estende ao plano exterior para, finalmente, tocar outras pessoas.
Em um pocket show realizado no meio desse ano, pela NPR Music, a cantora praticamente nos obrigou a olharmos para nós mesmas e analisarmos o modo como nos tratarmos e nos vemos. Afinal, é mais do que comum oferecermos um tratamento carinhoso e compreensivo a outros – sejam nossos amigos, amantes ou familiares – e não garantirmos, no mínimo, o mesmo tratamento para nós mesmas, como se não fossemos dignas de sequer uma pouca simpatia.
Não mais. Lizzo exala autoconfiança e certeza de si de uma forma que é impossível não ser contagiada pelas letras de ordem positiva, embaladas por ritmos envolventes e tipicamente urbanos. Os baixos, os pianos, a flauta, as batidas e, na verdade, todo o conjunto da obra-prima que são as experiências musicais da artista entram em nossos ouvidos e permanecem.
Quando ela diz que pode, nós acreditamos que podemos. E depois quando ela faz, nós acreditamos que podemos também. É impressionante ver o tamanho das possibilidades que esta artista, ainda no início de sua carreira, abriu à mulheres negras, gordas e não-héteros que ainda enfrentam um tabu e uma perseguição ainda mais ostensivos do que aquele vivido por suas contrapartes brancas, especialmente se estas forem magras e heterossexuais.
Apesar de sua óbvia maior relação com a comunidade negra, Lizzo não aceita nenhum tipo de limitação. Em suas músicas, em seu guarda-roupa ou em suas ações, a cantora faz aquilo que lhe parece certo e coerente com as suas crenças, convidando a todos a se juntarem à ela, mas não aceitando se limitar pelos rótulos de ninguém:
“O movimento body-positive é o movimento body-positive, e nós nos cumprimentamos. Nós somos paralelos, mas o meu movimento é o meu movimento. Quando toda a poeira tiver se ajustado em meio a quebra de padrões, eu ainda estarei fazendo isso.
Não vou mudar de repente. Eu vou continuar contando minha história de vida através da música. E se isso é body-positive pra você, amém. Se isso é feminista pra você, amém. Se isso é pró-negro pra você, amém.
Porque senhora, eu sou todas essas coisas.” – Lizzo em entrevista à revista Allure
Autêntico multitalento
Pensamos ser impossível ouvir uma das músicas da artista e ver um de seus clipes e não relacioná-la às históricas divas negras da Motown, que igualmente se portavam com uma confiança absoluta e nos inspiravam a aspirar a tal imagem. A diferença de Lizzo, porém, é que ela não esconde as suas vulnerabilidades em músicas sobre amores perdidos, mas sim as celebra, coisa que vimos, mais recentemente, no hit “Truth Hurts” (atualmente a segunda música há mais tempo no topo da Hot 100 da Billboard, apenas atrás de Fancy de Iggy Azalea e Charli XCX).
Na canção, Lizzo mistura questionamentos à fragilidade masculina (“Why men great ‘til they gotta be great?” ou “Por que homens são ótimos até precisarem ser?”, em tradução livre) com constatações de sua própria pessoa (“Even when I’m crying crazy” ou “Mesmo quando eu estou chorando muito”, em tradução livre) e discursos de superação antológicos, que garantem o status de hit automático à música.
Além da potência em sua voz angelical, a cantora também garante que fiquemos embasbacadas quando ela toca sua (agora) icônica flauta – inclusive acreditamos que seu verdadeiro reconhecimento começou quando ela viralizou ao substituir o som pré-gravado de uma de suas músicas pela flauta ao vivo, em razão de uma falha técnica, no festival de música Coachella² – que, curiosamente, foi batizada com algo semelhante ao alter ego de Beyoncé (Shasha Fierce), Sasha Flute.
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Apesar de seu evidente talento, ainda é incômodo perceber como artistas tão excepcionais quanto Lizzo são postas de lado e desvalorizadas pela grande mídia, pelo grande público e mesmo pelas premiações ou, mesmo quando finalmente são reconhecidas (também pela necessária sorte), é apenas após superarem a si mesmas. Ademais, mesmo com isso, é possível que permaneçam na condição de artistas underground e pouco lembradas, distintamente das diversas artistas medianas que, por estarem dentro dos padrões reproduzidos nos meios interno e externo musical, têm maior facilidade de reconhecimento e permanência.
Lizzo, entretanto, não parece se importar com isso. Veja bem, ela se ama demais para isso – afinal, é o movimento dela – e nos estimula a fazer o mesmo para nós, isto é, criarmos e estimularmos o nosso próprio movimento. O mundo musical parece que já está – ao menos nos últimos anos – tentando se adequar a essa nova leva de artistas e mulheres que buscam cada vez mais a própria beleza apesar dos padrões.
Ela própria disse que continuará fazendo o que já está fazendo – e acreditamos, quebrando ainda mais barreiras – ao longo de muitos anos. Apesar de sua mensagem já estar ressonando alto em nossas mentes, a permanência de Lizzo no cenário musical continuará a ser extremamente necessária e bem-vinda, inclusive para abrir mais portas a artistas fora dos padrões, enquanto for possível.
Seus dizeres tornaram-se atemporais e capazes de nos fazer questionar nossas próprias vivências e existências, Lizzo faz parecer fácil algo que, infelizmente, não é ensinado às mulheres e nos propõe uma importante reflexão: “Se vocês podem me amar, vocês podem se amar” (“If you can love me, you can love yourself.”).
Talvez ela tenha feito tal questionamento em razão de sua figura despadronizada, mas é possível levar sua fala à própria relação que nós fazemos com a arte. Se podemos amar nossos artistas favoritos, se podemos defendê-los, se podemos apreciá-los, por que não somos capazes de fazer o mesmo para nós mesmas?
Graças a Lizzo, agora podemos.
Notas:
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Existe um burburinho sobre a possibilidade de Lizzo ser indicada na categoria de “Best New Artist”: apesar de não ser exatamente uma novata, tendo debutado em 2013, o lançamento de seu primeiro trabalho artístico foi por uma gravadora pequena. Assim, se analisássemos o argumento da Billboard de que “às vezes, eles [jurados da banca do Grammy] não contam lançamentos em pequenas gravadoras independentes, alegando que isso realmente não permitia ao artista uma chance justa de avançar” seria possível contar o debut de Lizzo apenas em 2016, com o EP “Coconut Oil”, que é de assinatura da Atlantic Records. A Academia não confirmou nem negou a exigibilidade da artista para a categoria.
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Em sua estreia no festival norte-americano de música, Coachella, desse ano (abril de 2019), Lizzo enfrentou problemas técnicos na reprodução do instrumental pré-gravado de suas músicas desde o início do set. Para contornar a situação, ela passou a – simultaneamente – tocar a flauta e a cantar, isto é, atuando no instrumental e na voz, no show. Tal performance foi gravada e viralizou, o que, acreditamos, contribuiu para o reconhecimento da artista em conjunto com o lançamento do seu último álbum de estúdio “Cuz I Love You”, em 19/04/2019.