Renaissance Act II: o resgate das raízes negras da música norte-americana

Renaissance Act II: o resgate das raízes negras da música norte-americana

Anunciado em 11 de fevereiro de 2024, o oitavo álbum de estúdio de Beyoncé já está rendendo frutos antes mesmo de seu lançamento, previsto para 29 de março do mesmo ano. Diferentemente dos trabalhos anteriores da cantora, o Act II será marcado pelo gênero country e consistirá em uma continuação do Renaissance, sétimo álbum gravado pela artista.

Divulgação do novo álbum de Beyoncé, Renaissance: Act II
Imagem de divulgação do novo álbum de Beyoncé, Renaissance: Act II | Foto: Divulgação

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Os dois primeiros singles, Texas Hold’Em e 16 Carriages, garantiram a Beyoncé o título de primeira mulher negra a liderar das paradas de country dos Estados Unidos.

O primeiro estreou em segundo lugar na Billboard Hot 100, acumulando 19,2 milhões de reproduções no Spotify e 4,8 milhões em outros formatos até o dia 15 de fevereiro de 2024.

Já a segunda faixa lançada aparece em 38° lugar no ranqueamento geral e na 9ª posição do Hot Country Songs. Contudo, não deveria ser surpresa uma artista negra estar listada como a cantora country mais ouvida.

Os cowboys negros foram os precursores da música country

Apesar de atualmente a maioria dos cantores country serem brancos e uma parte deles estar envolvida em casos de racismo, as origens do gênero pertencem originalmente à cultura negra dos anos 1800. Assim como a música, a história também passou por um processo de embranquecimento ao longo dos anos.

Tudo começa com a figura do cowboy no século XIX, logo após o fim da Guerra Civil nos Estados Unidos. Apesar de Hollywood retratar, em sua maioria, tal grupo apenas como pessoas brancas, segundo pesquisa realizada pela revista Smithsonian em 2017, um a cada quatro cowboys da época era negro.

Loren Katz, historiador estadunidense e escritor do livro The Black West (O Oeste Negro, em tradução literal), explica que isso se deve à falta de oportunidades dos escravizados após sua libertação.

Dessa forma, muitos negros foram enviados para lutar por território contra os povos nativos ou até mesmo para cuidar de fazendas de gado durante a época da expansão territorial nos Estados Unidos.

Logo após a Guerra Civil, ser cowboy era uma das poucas vagas abertas para homens negros que não queriam trabalhar como ascensoristas, entregadores ou outras ocupações semelhantes.

– Loren Katz

Nat Love e Bill Picket, dois cowboys negros dos Estados Unidos no século XVIII.
Nat Love e Bill Picket, dois cowboys negros dos Estados Unidos no século XVIII | Foto: Sociedade Histórica da Universidade de San Diego e North Fort Worth

Nesse contexto, os moradores das áreas rurais dos Estados Unidos iniciaram processos de criação de canções e ritmos, misturando instrumentos. O que realmente caracteriza o estilo até hoje é o som do banjo, de origem africana.

Segundo o Museu Virtual de Instrumentos Musicais, o instrumento foi trazido pelos escravizados da África para os Estados Unidos e para as ilhas caribenhas, e se popularizou no país durante o século XIX. O gênero, como o conhecemos hoje, é uma mistura de ritmos e instrumentos provenientes da África e da Europa.

O apagamento racial na música country

Apesar da origem que remete ao povo escravizado, assim como os cowboys norte-americanos, a country music enfrentou um processo de apagamento racial. Primeiramente, deve-se notar a segregação racial que caracteriza grande parte da história dos Estados Unidos.

Esse fato limitava o acesso dos afro-americanos à indústria musical como criadores. Como resultado, enquanto gêneros como o blues e o gospel eram dominados por artistas negros, a música country ganhou notoriedade principalmente em comunidades rurais brancas.

Além disso, a comercialização e o marketing desempenharam um papel importante na definição da imagem do gênero. Gravadoras e executivos da indústria muitas vezes moldavam a música country para atender às preferências do público branco, minimizando a presença de músicos afro-americanos.

Os estereótipos e percepções culturais também contribuíram para a marginalização dos artistas negros dentro do gênero, perpetuando a ideia de que a música country era uma expressão exclusiva da cultura branca, ignorando suas raízes multiétnicas.

O country não é o único gênero musical que sofreu apagamento racial ao longo do tempo

Assim como a country music, o rock and roll também tem origens negras que foram apagadas aos poucos de sua história.

Elvis Presley, apesar de ser conhecido até hoje como o “rei do rock”, não foi o precursor do ritmo. O gênero em questão é, na verdade, derivado do blues, um estilo musical predominantemente negro, com artistas de destaque como Ella Fitzgerald, B.B King e Robert Johnson

Enquanto Elvis colhia os frutos do sucesso, muitos dos músicos negros que criaram e sustentaram o gênero enfrentavam discriminação e marginalização na indústria da música. Sua posição de destaque na história do rock destaca as disparidades estruturais que persistiam na indústria da música e na sociedade em geral.

Embora Presley tenha lucrado imensamente com sua interpretação, diversos músicos negros cujas músicas e estilos ele incorporou não receberam reconhecimento adequado nem foram devidamente compensados por suas contribuições. Um exemplo marcante disso é a canção Hound Dog, uma das mais conhecidas na voz de Elvis Presley.

Em 1952, Big Mama Thornton, uma das únicas mulheres na cena do blues da época, gravou a canção, que originalmente era mais lenta e tinha traços de sua personalidade na performance.

Quatro anos depois, o grupo de músicos brancos Freddie Bell and The Bellboys gravaram a canção em um ritmo mais dançante. Meses depois, Elvis Presley a regravou, obtendo notoriedade para a música sem creditar devidamente quem a performou originalmente.

Big Mama Thornton, compositora original de "Hound Dog"
Big Mama Thornton, compositora original de “Hound Dog” | Foto: Divulgação

Beyoncé tem potencial para resgatar as raízes da música em Act II

Mesmo após quebrar recordes com o lançamento de apenas dois singles de seu novo álbum Act II, Beyoncé teve suas músicas barradas das rádios country dos Estados Unidos.

As emissoras em questão alegaram que, por ser uma cantora pop, a artista não teria espaço em suas programações. No entanto, precisamos lembrar que ela não é conhecida como Queen B à toa.

A magnitude de Beyoncé já exaltou as raízes pretas da música quando Renaissance focou na house music, estilo precursor da música eletrônica, que também sofreu apagamento cultural ao longo do tempo.

A origem do gênero se dá em clubes underground de Chicago e Nova York na década de 1980, locais comumente frequentados pelo público negro e gay.

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Beyoncé em imagem promocional do álbum Renaissance
Imagem promocional do Renaissance | Foto: Divulgação

O resgate da música country por Beyoncé como uma expressão negra ocorre em meio a polêmicas envolvendo cantores brancos acusados de racismo.

Assim, o lançamento do Act II se torna um protesto em memória daqueles que deram início a algo e foram esquecidos por aqueles que tentaram apagar sua cultura.

Ao unir sua nova incursão musical com a Ivy Park Rodeo, uma colaboração de sua marca de roupas com a Adidas, Beyoncé não apenas enaltece suas próprias raízes, mas também oferece potencial de crescimento para uma cultura que foi apagada.

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Uma jornalista apaixonada por música, literatura e cinema. Seus maiores hobbies incluem criar playlists para personagens fictícios e falar sobre Taylor Swift nas redes sociais.
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