A história em quadrinhos Paper Girls, com roteiro de Brian K. Vaughan e arte de Cliff Chiang, começa de uma maneira bem simples: quatro jovens entregadoras de jornais, daquelas de filme americano, se unem para fazer suas rotas na manhã após o Halloween. O objetivo é protegerem umas às outras dos bandos de garotos adolescentes que aproveitam a data para tocar o terror. Porém, o que elas não sabem é que alguns desses garotos estão menos interessados em curar a ressaca e roubar doces de crianças do que em vencer uma guerra temporal.
Após terem seus walkie-talkies roubados por meninos vestidos de preto, as pré-adolescentes Erin, Mac, KJ e Tiffany se envolvem em uma disputa entre duas facções futuristas pelo controle da viagem no tempo. De um lado, estão os old-timers, que condenam as viagens por acreditar que elas podem deixar sequelas na linha temporal. De outro, estão seus descendentes, que voltam para diferentes pontos do passado à procura de apetrechos que podem tornar o futuro um lugar melhor.
Com 30 edições lançadas entre 2016 e 2019 nos Estados Unidos, Paper Girls teve seu último volume lançado no Brasil em maio de 2021, pela Devir. A saga de Erin, Mac, KJ e Tiffany usa a viagem no tempo para falar de conflitos geracionais. Porém, a tônica central da história é a jornada de amadurecimento das protagonistas. Enquanto saltam dos anos 80 para o futuro distante e o passado pré-histórico, as meninas precisam fazer escolhas cada vez mais difíceis, encarar a própria mortalidade e aceitar quem verdadeiramente são.
O conflito de gerações em Paper Girls
A história de Paper Girls começa com Erin saindo de casa para entregar jornais na manhã seguinte ao Halloween, em 1988. Quando um grupo de garotos adolescentes começam a provocá-la, ela é resgatada por Mac, KJ e Tiffany. As três entregadoras convidam Erin para se juntar a elas, pelo menos por aquela manhã. Porém, as quatro acabam passando bem mais tempo juntas do que esperavam.
Após esbarrarem em dois garotos conversando em uma língua estranha, as meninas se veem no meio de um conflito geracional que envolve máquinas do tempo, soldados futuristas montados em pterodáctilos e um misterioso aparelhinho com uma logo de uma maçã mordida na parte de trás. Deslocadas no tempo, elas viajam para a pré-história, para o futuro distante e para o temido ano de 2016.
Em todas essas eras, elas são seguidas por combatentes dos dois lados de uma guerra temporal. Liderados pelo temido Grande Pai, os old-timers desejam cessar toda a viagem no tempo por medo dos impactos que ela pode ter no passado, no presente e no futuro. Do outro lado, estão os jovens que falam em uma língua estranha, que se deslocam pelo tempo, roubando do passado para dar ao futuro.
Dentre a formas usadas por Vaughan para diferenciar os old-timers de seus descendentes, a língua é a mais interessante. Enquanto o Grande Pai fala de uma maneira considerada padrão nos tempos de hoje, os soldados old-timers usam uma versão exagerada da linguagem da internet. Já os descendentes, vindos de um futuro ainda mais longínquo, falam uma língua totalmente nova, representada por caracteres incompreensíveis para as leitoras.
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O embate geracional também é frequentemente incompreensível, tanto para as leitoras quanto para as protagonistas. Embora passem o tempo todo falando sobre o quanto seus inimigos são perigosos, old-timers e descendentes muitas vezes agem de maneiras parecidas. Ao fim da história, até mesmo suas opiniões parecem as mesmas.
Porém, é preciso que eles se entendam naquilo que têm de diferente. Para que o conflito chegue ao fim, é necessário que os descendentes reconheçam que a viagem indiscriminada no tempo tem, sim, um custo. Já os old-timers – e o Grande Pai, em particular – precisam entender que eles jamais existiriam sem a viagem no tempo.
Erin, Mac, KJ e Tiffany são essenciais para que os dois grupos cheguem a um cessar-fogo. E o dilema que ambos os lados precisam enfrentar é análogo à jornada de amadurecimento das personagens. Afinal, crescer é uma viagem no tempo. E, ao mesmo tempo em que conhecer nossa história é essencial para que entendamos quem somos, buscar as ferramentas para melhorar o futuro sempre no passado pode ter consequências terríveis. O verdadeiro amadurecimento ocorre quando encontramos o equilíbrio entre relembrar o passado, viver o presente e se preparar para o futuro.
Erin, Mac, Tiffany e KJ: quatro jornadas de amadurecimento
Quando falamos de Paper Girls pela primeira vez, um ponto que causou um certo desconforto foi a maneira de falar de Mac, repleta de expressões homofóbicas. Outra questão foi a falta de espaço para o desenvolvimento das quatro protagonistas, que tornava ainda mais complicado para as leitoras digerir os balões de diálogo de Mac. Afinal, sem saber nada sobre a personagem, é difícil entender de onde vem e para onde vai tanto ódio.
Felizmente, ambos os problemas são resolvidos ao longo da série.
Entre um salto temporal e outro, tanto Erin quanto Tiffany se encontram com versões de si mesmas no futuro, e ambas se decepcionam. A forma como elas se relacionam consigo mesmas mais velhas ilumina as personalidades e as expectativas das garotas. Erin percebe que suas inseguranças podem fazer com que ela fique presa para sempre no mesmo lugar, ao passo que Tiffany tem a sensação de que está deixando de aproveitar a vida para jogar Atari.
Já KJ e Mac não conseguem encontrar suas “eus” futuras, mas descobrem coisas sobre si mesmas que mudam sua relação com o mundo ao redor. Mac vai até sua antiga casa e descobre que sua família se mudou depois que ela morreu de leucemia. Já KJ descobre que nutre sentimentos românticos pela amiga enquanto tenta ajudá-la a encontrar uma cura para a doença em algum lugar do futuro.
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Pouco a pouco, Mac percebe que sente o mesmo por KJ. Descobrimos, então, que os comentários preconceituosos da personagem vêm não apenas da necessidade de se mostrar durona por vir de uma família pobre e por ser a primeira menina entregadora de jornais da cidade, mas de uma homofobia internalizada. Como muitos meninos e meninas jovens que sentem atração por pessoas do mesmo gênero, ela aponta o dedo para os outros para evitar ser notada e sofrer preconceito.
Porém, o amadurecimento pelo qual as personagens passam está ameaçado. Logo nos primeiros volumes, a Erin do futuro diz não se lembrar das outras entregadoras nem das viagens no tempo que elas fizeram juntas. A Tiffany do ano 2000 também não se lembra de nada. Pior ainda: diz que não consegue entender o que deu errado na sua vida nos últimos 12 anos. Aquela manhã pós-Halloween de 1988 foi um ponto de virada para ela, mas ela não sabe por quê.
Aos poucos, as meninas descobrem que, antes de serem devolvidas aos anos 80, terão suas memórias apagadas. Não se lembrarão das escolhas difíceis que tiveram que fazer, nem dos horrores pelos quais passaram. Mac, por exemplo, não se lembrará de que está condenada a morrer jovem.
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Contudo, isso também significa que elas não se lembrarão de terem se tornado amigas, nem de tudo que descobriram sobre si mesmas. E é aí que tudo vai começar a dar errado. Voltada para um público jovem, enfrentando as dores do início da adolescência, Paper Girls usa a viagem no tempo como pano de fundo para uma história sobre crescer. E o que a HQ explica para as suas leitoras é que os traumas pelos quais passamos, assim como consciência da nossa própria mortalidade e o aprendizado do primeiro amor, são essenciais para que possamos amadurecer.
E o futuro?
Os anos 80 foram um ponto de virada para a forma como nos relacionamos com a infância. Foi na década de 80 que a publicidade infantil foi desregulamentada nos Estados Unidos pelo então presidente Ronald Reagan, abrindo espaço para a produção massiva de desenhos animados cujo principal objetivo era vender brinquedos, como Transformers e My Little Pony. Ao mesmo tempo, a crescente preocupação com o abuso sexual infantil e o pânico satânico, que logo se espalharam pelo mundo, fizeram com que os pais começassem a ter medo de deixar os filhos saírem para brincar na rua.
Somado ao fator nostalgia da geração millenial, esse ar de ponto de virada fez com que a década de 80 se tornasse um cenário comum para filmes e séries de coming of age nos últimos anos, principalmente quando a história envolve temas sobrenaturais. Porém, com exceção de algumas personagens específicas, obras como Stranger Things, It, e Super 8 (que se passa na virada dos anos 70 para os 80), são geralmente focadas em protagonistas masculinos.
Paper Girls é uma exceção bem-vinda à regra. Não apenas têm quatro meninas complexas como personagens principais, como o elenco de coadjuvantes é, em grande parte, feminino – desde Wari, a jovem mãe que as protagonistas encontram na pré-história, até a Dra. Qanta Braunstein, criadora da viagem no tempo.
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Em 2019, a Amazon Prime anunciou uma série baseada na HQ. Ainda não há nenhuma data de lançamento definida, mas já sabemos quem são as atrizes que interpretarão Erin, Mac, KJ e Tiffany: Riley Lai Nelet, Sofia Rosinsky, Fina Strazza e Camryn Jones, respectivamente. O roteiro é de Stephany Folsom, que trabalhou em Toy Story 4.
Embora não sejam poucos os fãs de quadrinhos espalhados pelo mundo, é fato que um seriado atinge um número muito maior de pessoas do que uma HQ, tanto por questões financeiras quanto de acessibilidade. Nesse sentido, portanto, uma adaptação de Paper Girls é uma excelente oportunidade de trazer para o público uma nova perspectiva sobre um tipo de história que já está se tornando um pouco gasta.
Entretanto, fica a dúvida do quão bem Paper Girls será traduzido para as telas. O estilo de arte de Cliff Chiang é essencial para a forma como a história é contada nos quadrinhos. Nos momentos mais desinteressantes da trama, os painéis bonitos e dinâmicos ajudam a prender a atenção. Passar o clima que Chiang cria nos quadrinhos para a televisão sem perdas é praticamente impossível, mas esperamos que a série consiga construir outra atmosfera tão cativante quanto.