Escondida no catálogo da HBO Max, O Bebê é uma minissérie de horror e comédia britânica criada por Lucy Gaymer e Sian Robins-Grace. Ao longo de oito episódios, a série acompanha a saga da jovem Natasha (Michelle de Swarte) para se livrar de um bebê assassino.
“Interpretado” pelos gêmeos Albie e Arthur Hills, com a ajuda de uma excelente equipe de efeitos visuais, o bebê aparece do nada na vida da protagonista. Natasha nunca quis ter filhos, mas a presença repentina de um bebê em sua vida não é questionada por nenhum de seus amigos e familiares. Para piorar as coisas, o bebê está disposto a matar ou, no mínimo, ferir gravemente todos os que ameaçam se colocar entre ele e sua nova mãe.
É uma premissa, para dizer o mínimo, curiosa. Extremamente fofinho, o bebê não inspira medo logo de cara. Misturar horror com comédia não é para poucos e, muitas vezes, a série parece que vai descambar para uma fábula moral bem conservadora. Porém, Gaymer e Robins-Grace conseguem fazer a história funcionar. Com um humor bem peculiar e um horror inesperadamente realista, O Bebê é uma série divertida e que nos leva a pensar sobre a forma como tratamos a maternidade em nossa sociedade.
Leia também >> A maternidade sufocante de “A Filha Perdida”
Por meio da história de Natasha, O Bebê questiona a maneira como mães são excluídas do convívio social. A partir das outras personagens, a série traz outras questões que cercam a relação entre mães e filhos, como a maternidade compulsória e a romantização do que significa ter um bebê.
O final tem um quê de lição de moral, mas foge do feijão com arroz azedo de frases como “o amor tudo vence” e “ser mãe é padecer no paraíso”. Em O Bebê, o importante é entender que mães são seres humanos, com necessidades e falhas, e que você também já foi o bebê demônio de alguém.
Aviso: o texto abaixo contém spoilers da série
Duelo de monstros: o bebê X a maternidade compulsória
A combinação do horror com a comédia poucas vezes rende bons resultados, principalmente quando a parte do horror é levada a sério. Encontrar o que existe de ridículo naquilo que mais nos assusta, e vice-versa, não é tarefa para fracos. Em muitos casos, um gênero engole o outro, e o produto final vira ou um bolinho açucarado com poucos ingredientes que causam espanto, ou um bom e velho filme de terror com umas tiradas cômicas de vez em quando. O equilíbrio não é fácil de achar.
E, em alguns momentos, O Bebê parece que vai perder o foco. Em um episódio ou outro, o final nos deixa com a sensação desagradável de que a série vai ser apenas mais uma história sobre como é lindo ser mãe. Porém, logo no episódio seguinte, as coisas mudam, e a série volta aos eixos. O equilíbrio entre o riso e o medo está sempre presente em O Bebê, mesmo que cada episódio tenda mais para um gênero do que para o outro.
A comédia, na série, está no absurdo da situação de Natasha. Nós rimos quando o bebê simplesmente cai nos braços dela no meio de uma praia deserta e quando ela leva um dedo decepado para a casa da irmã (Amber Grappy) no meio de um entrevista com uma assistente social. Rimos quando a estranha Sra. Eaves (Amira Ghazalla) aparece na vida de Natasha com planos mirabolantes para matar o bebê, cujas maldades ela já acompanha de perto há décadas.
Leia também >> Mães de Verdade: as diversas facetas da maternidade
Porém, conforme a trama avança, as risadas dão lugar pouco a pouco ao medo. Há elementos de horror em todos os episódios de O Bebê, principalmente nas formas cruéis e sangrentas que o monstrinho do título escolhe para dar cabo de suas vítimas. Contudo, dois episódios se destacam na hora de falar sobre o lado assustador da série. Um deles é um massacre com possessão básico, bem dentro do esperado para uma minissérie de terror. Já o outro é um pouco mais complexo.
O quinto episódio de O Bebê é uma história de origem. Michelle de Swarte dá o lugar de protagonista para Tanya Reynolds (Sex Education), que interpreta Helen, a mãe biológica do bebê. Na década de 1960, Helen era uma mulher lésbica presa em um casamento heterossexual infeliz e grávida de seu primeiro filho. O que começa como uma história de libertação, com Helen deixando o marido para ficar com sua amada, logo se torna um pesadelo. A promessa de uma criança tira de Helen toda a sua recém-conquistada autonomia, fazendo com que ela seja devolvida à força à família e seja obrigada a levar a cabo uma gravidez que não traz consigo nada além de sofrimento.
De longe o mais assustador da série, o episódio que conta a origem do bebê não tem quase nada de horror. Ao menos, não no sentido tradicional. O gore e o sobrenatural ficam em segundo plano. O que importa é a dor de Helen face à crueldade das instituições e da vida cotidiana.
Leia também >> No útero não existe gravidade: o terror psicológico dos dias na obra de Dia Nobre
Helen é obrigada a ser mãe. Afinal, é isso o esperado de mulheres da sua geração e classe social. A partir do momento em que engravida, Helen é obrigada a ter o filho. Mais do que tudo, é obrigada a tê-lo com um marido que não ama, em uma casa que representa apenas opressão. Quando o bebê nasce, é esperado que ela o ame e queira o seu bem. E quanto mais se exige de Helen, menos ela é capaz de dar. O verdadeiro monstro do episódio não é o bebê, mas o patriarcado em uma de sua facetas mais brutais: a maternidade compulsória.
Diante de todas as violências cometidas em nome da ordem patriarcal, parece exagero dizer que a obrigação de ser mãe é uma de suas facetas mais brutais. Contudo, em O Bebê, fica claro o quanto essa obrigação pode ser cruel. A história de Helen é uma história de transformação de uma pessoa em máquina. O amor é impossível porque se trata de um sentimento humano, e Helen é totalmente desumanizada. Todos os desejos, toda a complexidade, tudo aquilo que faz de Helen quem ela é vai pelo ralo a partir do momento em que ela tem no útero um embrião.
Ódio e romantização da maternidade
A maternidade compulsória é apenas uma das muitas formas desumanizadoras de tratar a relação entre mãe e filho. A solidão, o julgamento e a romantização da maternidade também são pesos constantes para quem é mãe. Todas essas formas de lidar com a chegada de um bebê na vida de uma mulher também aparecem em O Bebê.
No primeiro episódio da série, Natasha é apresentada quase como uma adepta do movimento childfree. Além de não querer ter filhos, ela trata mal as amigas que são mães, julgando-as porque não podem mais beber como antes e até mesmo porque os bebês ousam chorar no meio do sagrado pôquer semanal. Já sua irmã, Bobbi, é o completo oposto. Louca para ser mãe, Bobbi acredita que adotar um filho será a solução para todos os problemas do seu relacionamento com a esposa e não consegue entender a infelicidade de Natasha com o bebê.
A oposição entre Natasha e Bobbi é importante para a série não cair no moralismo conservador. Fica claro desde o começo que Natasha precisa aprender uma lição. Ela precisa entender a solidão, o cansaço e o desespero das amigas mães para passar a ser mais gentil com elas. Porém, Bobbi também precisa mudar. Suas expectativas irreais com relação à maternidade podem fazer mal para ela e até mesmo para o bebê, como explica a assistente social que recomenda que ela espere mais um ano para refazer o processo de adoção.
Leia também >> I Am Mother: tecnologia, desconhecido, maternidade e humanidade
A diferença entre as duas irmãs vem da forma como cada uma lidou com a ausência da mãe durante a infância. Barbara (Sinéada Cusack) saiu de casa quando Bobbi ainda era pequena para se juntar a uma comunidade alternativa. Natasha estava mais ou menos na pré-adolescência. Enquanto Bobbi se reaproximou de Barbara, Natasha a culpa por ter ido embora e sente raiva ao descobrir que a mãe tem um ateliê cheio de estatuetas de argila de uma mulher abraçada com as filhas.
Barbara é uma figura complexa, e parte de entender a realidade de ser mãe passa por compreender suas motivações. A história de Barbara é muito próxima da de Helen, embora as duas sejam separadas por duas décadas e alguns avanços sociais. Barbara não é a melhor mãe do mundo, mas também não é o monstro que Natasha criou: Barbara era uma mulher em depressão, isolada do mundo, que não teve escolha a não ser ir embora. E grande parte de sua dor vinha justamente da sensação de ter fracassado como mãe.
Um mundo cheio de bebês do mal
Crianças e bebês demoníacos podem representar muitas coisas em histórias de terror. Às vezes, o horror vem da estranheza de carregar outro indivíduo dentro de si, como em O Bebê de Rosemary. Em outros casos, vem da possibilidade de colocar o perigo para dentro de casa, como em A Órfã, ou da simples ideia do lobo em pele de cordeiro, como em O Anjo Malvado. Saber que você pode ser parcialmente responsável por trazer ao mundo um sujeito independente que pode crescer e fazer coisas horríveis também é bastante assustador. Quem duvida pode dar uma olhada em qualquer versão de A Profecia.
Contudo, em O Bebê, não é nada disso que está em jogo. O bebê, como diz a Sra. Eaves, é algo bem mais antigo, a carência e o medo do abandono. Ao escolher uma mãe para si, o bebê exige atenção constante e amor incondicional. Ele cria um novo medo na mulher a quem se apega: o medo de não ser o suficiente. Esse é um medo que sempre se comprova, afinal, nenhuma mãe é suficiente para o que se espera das mães. E tentar ser suficiente, tentar dar para o bebê tudo o que ele quer, é uma receita para a infelicidade.
Leia também >> Por que ficções científicas adoram falar sobre maternidade?
O bebê da série não representa a ansiedade da gravidez, nem o medo de ter um desconhecido dormindo no bercinho ao lado. Tampouco representa a maternidade compulsória. O bebê é apenas o que o nome diz: um bebê, com toda a carga que um bebê traz.
Por fim, o que fica para Natasha é que todas as suas amigas, conhecidas e parentes que são mães, já tiveram um bebê maligno para chamar de seu. Para nós, o que fica é a certeza de que todas já fomos o bebê do mal de alguém. Não por nossa culpa, mas por culpa do peso que ter um filho coloca sobre uma mulher. Para reduzir essa epidemia de bebês do mal, é preciso tornar o mundo mais humano para as mães.