Maíra Vasconcelos: “Algumas ideias para filme” e a poesia gritante

Maíra Vasconcelos: “Algumas ideias para filme” e a poesia gritante

Algumas ideias para filme de terror, de Maíra Vasconcelos, é um livro de poemas que desperta os gritos da infância, pequenos horrores, juntamente com perdas. Escrita de maneira simples, a poesia de Maíra nos conduz ao universo da menina/mulher que busca sua identidade.

Poesias têm tudo a ver com o voo dos pássaros, com o amor, com a alegria, enfim, com a vida. Também fala das dores, da noite, do assombro, além do luto e da tristeza. Mas parece estranho imaginar que poesias também abordam assuntos relacionados aos horrores cotidianos, o terror social, assim como a fome e os traumas da infância, que são invisíveis aos olhos da maioria das pessoas, ou ignorados e, muitas vezes, não temos coragem de enfrentar. Do mesmo modo, o estupro, a miséria humana e a violência doméstica são tópicos que a literatura traz à tona.

Maíra Vasconcelos e a edição de "Algumas ideias para filme"
Maíra Vasconcelos e a edição de “Algumas ideias para filme” | Foto da poeta por Alexandra Vilas Boas (Reprodução)

um país
pode ser cuidado como um jardim
mas antes retirem de suas terras
os assassinos, se for possível

(poema de Maíra Vasconcelos)

Escritoras brasileiras

Se olharmos para o passado entenderemos as raízes da opressão e da violência contra a mulher, e como a sociedade foi  construída, culturalmente e socialmente. Assim,  histórias de vida e experiências dão o tom da escrita, assim como atravessamentos de discursos externos.

Quando a mulher se coloca como sujeito de sua própria escrita, uma nova narrativa surge, a partir de suas memórias pessoais. Portanto, a escrita da mulher com seus sentimentos, seus aprendizados, suas dores, com o abuso e o preconceito sofridos e dentro da sua história política, falam sobre o que a sociedade esconde. Por exemplo, as escritoras Gilka Machado, Maria Firmina dos Reis, Nísia Floresta e Pagu deixaram em seus textos uma escrita revolucionária.

As escritoras brasileiras, na atualidade, estão ganhando chão quando o tema é a denúncia da realidade social e as imposições do capitalismo ao corpo feminino. É o caso da escritora Mariana Salomão Carrara, no seu livro Se Deus me chamar não vou, e Jarid Arraes com seu livro de poemas Um buraco com meu nome.

nem tanto
nem tão
pouco
um limbo
de pele
embaçada
tenho cor
de lágrima
quando
foge

Cor – Jarid Arraes

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Uma outra escritora, que também tem como tema central a mulher, é Angélica Freitas. Seu livro O útero é do tamanho de um punho subverte a imagem idealizada da mulher em nossa sociedade.

a mulher é uma construção
deve ser
a mulher basicamente é pra ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor
particularmente sou uma mulher
de tijolos à vista
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida
digo que sou jornalista
(a mulher é uma construção
com buracos demais
vaza
a revista nova é o ministério
dos assuntos cloacais
perdão
não se fala em merda na revista nova)
você é mulher
e se de repente acorda binária e azul

Algumas ideias para filmes de terror

Maíra Vasconcelos não romantiza, apesar de sua linguagem poética, ao contrário, questiona: a morte, o abandono, o luto e outros temas que causam incômodo, mas que devem ser discutidos. Tal como uma criança que se vê em um mundo onde as relações de dominação fazem parte da vida, em todos os ambientes.

as formigas caminham no chão da cozinha
uma procissão dentro de casa
as criança pisa nas formigas
o pássaro se assusta na gaiola
a criança grita:
ela matou a inocência sem querer

Com o uso de metáforas, somos atravessados por situações de exploração e animalidade. À primeira vista pode parecer tolice nos questionarmos sobre “de onde vem meu bife?” Ou em “quantos trabalhadores foram massacrados pelo mercado?” Mas aqui Maíra mostra a violência naturalizada, em um dos poemas que denuncia o que ocorre todos os dias e que nos passa despercebido:

Uma vaca foi morte de manhã
e ninguém parou de trabalhar
mataram 250 vacas na manhã seguinte
e nenhum vizinho deixou de varrer a rua
mataram mil vacas à noite
o sangue correu pelo Rio das Velhas
atravessou as cidadezinhas da redondeza
exalou um cheiro desconhecido
apodreceu alguns peixes e sapos
mas as vacas não voltariam para se vingar
nem para puxar o pé de quem dorme
ou para assombrar os moradores
as vacas viraram história, essa história
que minha tia agora me conta
e vejo as vacas vivas
muito vivas
até a hora do almoço

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Literatura enquanto denúncia da realidade social

A literatura vem como um instrumento de resistência, e pode, dessa forma, revelar a violência e a opressão sofrida pelas mulheres. Estamos entre incertezas e vulnerabilidades, desigualdades sociais, e como o corpo feminino é construído socialmente. Assim, os poemas de Algumas ideias para filmes de terror, poderiam ser filmes de terror, e Maíra Vasconcelos nos convida a questionar e a lutar contra o sistema opressor e autoritário. Afinal, a poesia também é lugar para repensar a sociedade.

há uma casa no alto
antiga e desabitada
à espera de um corpo vivente
uma casa tão lúcida
da necessidade de alguém
que nem sei se existe
tamanho trabalho e ousadia:
a casa precisa ser repensada

A autora

Maíra Vasconcelos nasceu em Belo Horizonte e mora em Buenos Aires. É autora de Um quarto que fala, seu primeiro livro, publicado pela editora Urutau, 2018 e da plaquete O livro dos outros – poemas dedicados à leitura, pela editora Ofícios Terrestres, 2021.

Escrito por:

Gabriela é carioca, pesquisadora na área de Saúde do Trabalhador e frigoríficos. É escritora, e revisora de textos.
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