Triângulo da Tristeza: mais um filme sobre gente rica (será?)

Triângulo da Tristeza: mais um filme sobre gente rica (será?)

Nos últimos anos, obras que retratam pessoas ricas têm ganhado muito destaque. Em séries e filmes, as viagens de milionários estão gerando narrativas muito interessantes. White Lotus, série da HBO, foi vencedora de diversos Emmy’s em 2021 e 2022. Glass Onion, novo filme de Rian Johnson, produzido e distribuído pela Netflix, também focou em representar a classe social dos mais ricos e teve sucesso entre o público. Já O Menu, é um suspense bem diferente, mas que também traz o elemento da viagem de um grupo de milionários. Triângulo da Tristeza, longa de Ruben Östlund, consegue reunir o melhor das obras sobre ricos: com ironia e genialidade, o filme é uma das grandes pérolas de 2022.

Por que falar sobre pessoas ricas?

Primeiramente, por que falar sobre pessoas ricas? Enquanto as minorias ganham, pouco a pouco, um mínimo de reconhecimento para falar sobre suas próprias lutas e realidades no audiovisual, algumas pessoas ainda retratam o outro lado da moeda: aqueles poucos que detém grandes fortunas e fazem parte de uma parcela pequena, mas extremamente privilegiada, da população mundial. Estamos falando sobre a elite, aquela que sempre teve espaço e voz, e enquanto a sociedade for dividida em classes sociais, sempre terá. Contudo, mesmo sempre tendo sido representada, essa parcela da sociedade é dificilmente alvo de críticas.

Através do sarcasmo, algumas narrativas têm tentado reverter o modo passivo com o qual se encara o papel dos milionários nos problemas ambientais e sociais do mundo. Refletir sobre os prejuízos que a condição de milionário pode trazer é revisitar uma tradição muito antiga, principalmente europeia e estadunidense, sobre o consumismo, o glamour e a meritocracia. Os mocinhos deixam de ser os ricos atraentes – e, aliás, a atratividade é posta em cheque nessas narrativas – pois estes, se tornam vilões. Ou, em críticas mais “mornas”, idiotas. Como é o caso da comédia Glass Onion.

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Triângulo da Tristeza: por que falar sobre pessoas ricas?
Cena de Triângulo da Tristeza (2022) | Imagem: Reprodução

Desse modo, representar pessoas ricas de um jeito pejorativo é uma forma mais discreta, mas não menos inteligente, de falar sobre as desigualdades do mundo. Ainda assim, é muito cômodo colocar os milionários mais uma vez no centro das narrativas. Mesmo que seja para criticá-los. A desculpa sempre vai se voltar para o fato de que são ficções que beiram a comédia. Mas críticas sociais precisam mesmo ser tão filtradas assim? Uma praia paradisíaca pode mesmo camuflar um oceano de podridão?

A tripulação de Triângulo da Tristeza

O longa de Ruben Östlund começa com uma cena um pouco à parte – mas que se conecta com seu desfecho – explicando o próprio título. Em uma audição de modelos, é aconselhado que Carl (Harris Dickinson) suavize o seu triângulo da tristeza, uma região da testa, entre as sobrancelhas, muito marcada conforme a idade avança. Carl é o protagonista dessa história, junto com sua namorada, a modelo Yaya (Charlbi Dean), a qual é apresentada na sequência de cenas seguinte.

Durante boa parte desse início, conhecemos a relação entre os dois modelos. Carl discute com Yaya, alegando que os dois deveriam dividir as contas dos encontros. Esse diálogo, extenso e imersivo, é fundamental para compreender o que os dois personagens representam: Carl é um retrato da masculinidade frágil no século XXI, tendo suas fraquezas expostas através das relações de poder. Yaya, por outro lado, é uma mulher jovem, empenhada em se proteger nesse mundo em que o valor das mulheres se dá por suas aparências e submissões nos relacionamentos.

Classe social em Triângulo da Tristeza
Cena de Triângulo da Tristeza (2022) | Imagem: Reprodução
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Ao realizarem uma viagem em um navio luxuoso, o casal conhece alguns dos passageiros e funcionários. Entre esses personagens está Abigail (Dolly De Leon), uma camareira; Paula (Vicki Berlin), principal chefe do navio; Dimitry (Zlatko Buric), um milionário russo da indústria de fertilizantes e Jorma Bjorkman (Henrik Dorsin), um solteirão que acaba de se tornar milionário.

A princípio, há uma ridicularização dos mais ricos, como as piadas sobre a futilidade do trabalho de Yaya como influencer e a piada sobre Dimitry ser rico por “vender merda”. Parece cômico que essas pessoas, dentre tantas no mundo, tenham dinheiro suficiente para fazer todas as loucuras que quiserem.

Todavia, há o capitão do navio. Woody Harrelson surge como uma luz no filme, anunciando que não se trata apenas das pessoas. Os milionários não são meros idiotas e a crítica sobre seus erros não precisa se esconder por trás de complexas metáforas e comparações. Há, então, um novo elemento na equação: o famoso “sistema”.

Sistema X pessoas

A cena do jantar do capitão vinha sendo adiada no filme para que houvesse tempo de conhecer melhor os personagens. E, quando finalmente acontece, parece levar Triângulo da Tristeza ao ápice de seu humor e também ao seu – quase – desastre. Há um diálogo divertidíssimo e inesperado entre o capitão, um estadunidense comunista, e Dimitry, o russo capitalista, enquanto tudo se torna caótico ao redor deles.

Com as ondas fortes, o navio balança, fazendo os tripulantes vomitarem. É uma sequência engraçada, nojenta e que beira o pastelão. Nesse momento, o filme se torna algo diferente: é inteligente ao mesmo tempo que não pretende esgotar o debate. Triângulo da Tristeza reajusta seu tom de comédia e fala em alto e bom som tudo o que quer dizer.

Cena de Triângulo da Tristeza (2022)
Cena de Triângulo da Tristeza (2022) | Imagem: Reprodução

Estamos tão acostumados a ver mensagens urgentes nas entrelinhas, que quando ditas no alto-falante, elas nos chocam. Colocar um discurso em um filme, no qual o capitão diz que os Estados Unidos é uma nação imperialista que destrói países na América Latina e que assassinou líderes justos em seu próprio território, não significa ser genial. Ruben Östlund fez algo tão superficial que consegue surpreender, porque talvez, nem tudo deva precisar de uma grande análise semiótica. Talvez, fazer piada com ricos passando mal seja simplesmente isso. E talvez, para dizer que os Estados Unidos financia a violência contra grupos minoritários e colonializa países de terceiro mundo, basta dizer.

Uma das frases ditas por Woody Harrelson, através de seu personagem, é:

O último capitalista que penduramos será aquele que nos vendeu a corda.

O capitão não parece tão diferente do próprio diretor, conduzindo exatamente o que propõe criticar. Östlund não parece cem por cento alinhado à extrema-esquerda. Mas aparenta estar empenhado em mostrar, por meio de filmes, como o capitalismo é um sistema maléfico. E isso não deixa de ser uma reflexão sobre as desigualdades de gênero e raça, uma vez que essas diferenças só existem porque o capitalismo existe.

A masculinidade frágil

Assim como o diretor filma pessoas ricas – sendo ele mesmo, rico – também se volta para a masculinidade, sobretudo a masculinidade branca e cis. Carl, personagem central do enredo, é tudo o que os homens brancos e cis do século XXI se recusam a admitir que são: independentes emocionalmente, inseguros e sujeitos à mesma estrutura de poder que tanto defendem.

Carl, desde o primeiro momento, se mostra um homem inseguro. Quando discute “quem deve pagar a conta” com Yaya, demonstra sua necessidade por estar sempre no poder, mesmo que, de modo paradoxal, nunca esteja. Yaya, consciente de que o corpo que no momento é sua ferramenta de trabalho um dia vai ser desvalorizado socialmente, espera um marido que possa sustentá-la. Quando, no terceiro ato do filme, Carl e Yaya acabam parando em uma ilha, Carl novamente se vê como dependente de uma mulher. Dessa vez, para a sobrevivência literal.

A masculinidade frágil abordada no longa
Cena de Triângulo da Tristeza (2022) | Imagem: Reprodução
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A insegurança de Carl e as preocupações de Yaya se centram em suas duas formas de dominação, em jogo o tempo todo no longa: sexo e dinheiro. Yaya fala sobre o desejo de ser uma “esposa-modelo”, mas não porque desconhece os ideais feministas. Na verdade, por conhecê-los, sabe que o corpo feminino deve seguir um padrão muito rígido e quase inalcançável para que seja o suficiente para sustentá-la financeiramente. Se ela, por exemplo, engravidasse, ou engordasse apenas, seu trabalho estaria comprometido. Ou seja, mesmo no universo super privilegiado dos mais ricos, há uma nítida diferença entre homens e mulheres.

Isso não é uma crítica à indústria da moda, embora seja uma base para a situação, mas mais sobre o conceito de sensualidade, e como isso se articula na estrutura de poder de uma sociedade patriarcal e capitalista. Nesse sentido, Yaya sabia que, se tinha o controle da situação, era algo momentâneo. Se seu dinheiro depende de sua aparência, ela nunca poderia ser de fato independente. E Carl parece nunca compreender isso. Ele confunde amor e poder o tempo todo no filme. Na tentativa de sobreviver, ele precisa admitir que depende de uma mulher para tudo. Sejam suas necessidades físicas ou emocionais. Mas isso o frustra, porque enquanto o homem, parece doloroso não ser a pessoa no poder.

Por fim, a tristeza

Quando o navio afunda, os passageiros sobreviventes se unem, na ilha mais próxima, tentando sobreviver. Ao fazerem isso, são transportados para uma nova sociedade, na qual os ricos não têm mais nada a oferecer. Assim, ficam sujeitos à Abigail, a camareira, que tinha mais habilidades de sobrevivência. E então, todos os sentimentos conflitantes de Carl e Yaya colapsam.

Triângulo da Tristeza possui, no fim, uma essência melancólica. As pessoas, tão sufocadas pelo próprio sistema em que vivem, são mergulhadas na tristeza. A própria Yaya, tão amparada na própria ideia de feminilidade, se sente traída. O sexo também era sobre poder, e sendo assim, ela não tinha mais nada a oferecer.

Cena de Triângulo da Tristeza (2022)
Cena de Triângulo da Tristeza (2022) | Imagem: Reprodução

Talvez a pergunta “por que falar sobre pessoas ricas” não seja a mais adequada, afinal, mas “como falar sobre pessoas ricas?”. De todas as obras que têm sido feitas para falar sobre essa classe social, sempre há, no fim, um ato de violência. É a alegoria final que essas narrativas trazem. Ora, o sistema capitalista sempre falha, por isso, por meio de um ato de violência, é possível demonstrar sua natureza. Mas os efeitos do capitalismo são muito menos literais.

Carl cede qualquer coisa para sobreviver, ao mesmo tempo que se zanga por não ser o homem provedor. Yaya não consegue ver uma outra mulher como sua igual, porque o dinheiro ainda a faz colocar a outra em um patamar acima ou abaixo de si. A tristeza que invade os personagens em diversos momentos, mesmo em uma comédia tão leve, é, por si só, uma violência do sistema capitalista.

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Não é possível se conhecer quando sua personalidade é moldada por aquisições materiais. Tampouco é possível ter algum valor enquanto pessoa, enquanto por toda a sua vida você se definiu por algo que deveria ser um meio de viver como dignidade. Esse filme não tenta romper conceitos e inovar completamente o cinema. Nem poderia. O que ele transmite é tão simples e claro que talvez seja delicioso por esse exato motivo. Não deveria ser difícil entender o que precisa ser entendido sobre a desigualdade social e as tragédias da lógica imperialista. Com isso, voltamos à questão inicial: por que não dar mais espaço para pessoas, que são maioria mas seguem sendo inferiorizadas? É difícil que os privilegiados lutem contra seus privilégios, mas como Ruben Östlund disse em uma entrevista:

Eu não vejo realmente nenhuma razão para confrontar outro grupo social senão aquele em que estou conectado.

Triângulo da Tristeza não traz uma resposta pronta para nenhuma questão. É apenas um filme. Ou, como o próprio diretor sugere, um espelho. Isso pode abrir portas para pensar no próprio mercado audiovisual atual. Ademais, é uma sátira sobre a timidez em retratar pessoas ricas com o mesmo entusiasmo com que elas ignoram os problemas do mundo.

O filme está em exibição nos cinemas e chega na Prime Video dia 2 de março.

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Estudante de Letras na Universidade de São Paulo, apreciadora de boas histórias e exploradora de muitos mundos. Seus sonhos variam entre viajar na TARDIS e a sociedade utópica onde todos amem Fleabag e Twin Peaks.
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