Ataque dos Cães: uma análise sobre sexualidade reprimida e masculinidade tóxica

Ataque dos Cães: uma análise sobre sexualidade reprimida e masculinidade tóxica

Ao som do dedilhado de um violão, enquanto encaramos uma tela preta que vai exibindo os créditos iniciais, ouvimos a voz de um garoto. Suas falas que vão fazer total sentindo com o desfecho da obra se intercalam com o letreiro que identifica o início do longa como capítulo I. É também através de um letreiro que somos informadas em que local e a época o filme vai se passar: Montana, 1925. E assim que a primeira imagem nos é revelada, uma ambientação com planícies e ajuntamentos de gados nos entrega o que se trata de um western. Já o som do violão se encaixa perfeitamente com o que observamos, dando um tom de tensão e agressividade, que é algo que paira durante toda a obra.

É dessa forma que somos inseridas como espectadoras ao universo de Ataque dos Cães (2021), de Jane Campion. O longa é uma adaptação do livro The Power of the Dog (1967), escrito por Thomas Savage. A história nos apresenta aos irmãos George Burbank (Jesse Plemons) e Phil Burbank (Benedict Cumberbatch), que fazem parte de uma rica família de fazendeiros e são os responsáveis por tomar conta de uma extensa propriedade. O roteiro escrito pela própria Campion busca ser fiel a essência do romance no qual foi inspirado, e o imaginário poético da obra lembra bastante o trabalho mais famoso da diretora, o filme O Piano (1993). Afinal, ambas as obras tratam de um tempo distante e trazem personagens que possuem desvios condenáveis pela sociedade

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Ataque dos Cães marca o retorno de Campion à direção de longas. Ela estava afastada dessa função desde 2009, quando dirigiu O Brilho de uma Paixão. A diretora neozelandesa foi a segunda mulher na história do Oscar a ser indicada à categoria de melhor diretora pelo filme O Piano. E atualmente se tornou a primeira mulher a concorrer ao Oscar de melhor direção mais de uma vez. Já que sua segunda indicação se deu agora na edição que vai acontecer este ano, pelo próprio Ataque dos Cães.

Jane Campion e Benedict Cumberbatch nos bastidores de Ataque dos Cães.
Jane Campion e Benedict Cumberbatch. Imagem | Reprodução

O filme se trata de um western que à primeira vista parece ser uma narrativa que se encaminha para tratar da relação de dois irmãos que possuem personalidades radicalmente diferentes. Contudo, o longa deliberadamente ritmado se propõe a seguir além da composição familiar que exibe. Assim, a obra que se encontra disponível na Netflix, nos apresenta um enredo que se lança em um destino emocionalmente complexo e que funciona como uma profunda crítica a um retrato de masculinidade tóxica e de crueldade psicológica, que se encontra hospedado em um majestoso cenário montanhoso que aloja seus personagens.

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Assim que conhecemos os irmãos Burbank não demora muito para entendermos como funciona a personalidade de cada um. Phil é considerado o irmão mais inteligente e é quem detém o respeito dos empregados da fazenda. Ele possui ensino superior, sabe tocar banjo de forma excelente e está sempre armado com sua perspicácia afiada, que quase sempre é cruel e agressiva. Como fazendeiro busca ser justo com as pessoas que trabalham com ele, mas ainda assim os considera inferior. Dificilmente socializa e evita os artifícios da vida civilizada, dando preferência a se manter envolvido com os trabalhos da fazenda.

Seguindo para uma personalidade oposta a do irmão, George é um ser agradável, gosta de se vestir bem e busca se relacionar com outras pessoas. Além disso tudo, ele é extremamente paciente com os insultos intermináveis de Phil. Porém, há algo que podemos observar que os irmãos Burbank têm em comum. Cada um a seu modo, ambos são pessoas extremamente solitárias.

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Ainda entre as primeiras cenas do longa conhecemos Rose (Kirsten Dunst). Ela é a cozinheira e proprietária de um estabelecimento que funciona como restaurante e pousada. Ao receberem os peões da fazenda Burbank, Rose fica magoada com o fato de Phil ficar debochando de seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee), já que o caubói considera um problema o adolescente não ter um comportamento considerado másculo. Após encontrar Rose chorando por conta disso, George tenta consolá-la.

George (Jesse Plemons) e Rose (Kirsten Dunst) em Ataque dos Cães.
George (Jesse Plemons) e Rose (Kirsten Dunst) após o casamento | Imagem: Netflix

Tal aproximação resulta em casamento, e Rose e seu filho se mudam para a propriedade dos Burbank. A moça rapidamente entra em desacordo com a intensa cultura machista e preconceituosa do ambiente. Assim, ela passa a sofrer por ter que se enquadrar na alta sociedade, já que agora é esposa de um homem rico. Além de ter que lidar com o fato de o cunhado não aceitá-la e se sentir ofendido com sua presença repentina na casa.

Alerta: O texto abaixo possui alguns spoilers do filme

A sexualidade reprimida de Phil

Benedict Cumberbatch tem um histórico de personagens sensíveis, neuróticos, inteligentes e talentosos. Basta lembrar de suas interpretações mais famosas, como: Alan Turing (Jogo da Imitação, 2014), Dr. Estranho (franquia Marvel) e Sherlock Holmes (na série Sherlock 2010-2017). Em Ataque dos Cães, seu personagem segue nessa linha, mas seu lado sensível e gentil é quase que inexistente para quem convive com ele. Phil associa gentileza e sensibilidade a quem não possui modos viris. Dessa forma, ele busca não expor nada que possam associá-lo ao que não é másculo para não descubram que ele é gay.

A sexualidade reprimida em Ataque dos Cães, filme de Jane Campion.
Phil (Benedict Cumberbatch) | Imagem: Netflix

O próprio ator afirmou que passou várias semanas preparando-se para o personagem. Ele teve até aulas de castração de bois, o que é colocado em prática em uma das cenas do filme. Tal cena de Ataque dos Cães pode servir como metáfora para a condição do próprio Phil, que se sente castrado por não poder expor sua sexualidade. Em um ambiente e uma época que era pouquíssimo acolhedora, quando se tratava de diferenças, Phil é alguém determinado a viver uma vida áspera. Ele direciona sua sexualidade reprimida em hostilidade e agressividade, implicando em ocorrências devastadoras para quem está a sua volta.

Dessa maneira, o segredo de Phil lhe custa nunca poder revelar quem ele é realmente. E o que as pessoas ao seu redor veem como sinônimo de masculinidade é, na realidade, um turbilhão de sentimentos, desejos e vontades reprimidas. O personagem vê no ato de humilhar os outros uma ferramenta de comunicação, ainda que cruel, demonstrando ser uma de suas poucas características mais humanizadas.

Os medos e inseguranças dos personagens

Em Ataque dos Cães, o casamento de Rose e George pode ter acontecido tanto pelo fato de eles terem se apaixonado rapidamente, ou porque rolou uma forte empatia entre os dois. No entanto, ele também funciona como uma forma de George se afirmar em cima de seu irmão. Phil se mostra totalmente descontente com o casamento, mas George não dá a mínima importância para a não aprovação do irmão.

Enquanto isso, Rose e Peter enfrentam todas as desaprovações sociais direcionadas a eles. Rose é uma viúva que cria um filho sozinha e acaba de se casar novamente com alguém que faz parte de uma classe social elevada e bem distante da sua. Ela é tratada com indiferença a todo momento, em especial por seu cunhado. Toda a sua dedicação para agradar quem quer que seja é tratada com desdém por Phil. Dessa forma, é extremamente sofrido e desgastante para ela estabelecer seu valor dentro de um patriarcado rural que considera a mulher um ser inferior.

Rose (Kirsten Dunst) em Ataque dos Cães | Netflix
Rose sendo obrigada a socializar em um jantar. | Imagem: Netflix

O personagem de Cumberbatch persegue Rose e a humilha frequentemente. Em uma das cenas de Ataque dos Cães, por exemplo, Rose está tocando piano. Entre erros e acertos, vemos ela se esforçando para acertar a melodia. Mas ao vê-la se dedicando ao instrumento, Phil começa a tocar habilidosamente seu banjo de um outro cômodo. Tal fato desconcentra Rose e busca mostrar que ele é muito melhor que ela tocando um instrumento musical.

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Para atordoá-la ainda mais, ele busca assoviar de uma forma específica sempre que ele quer que a cunhada saiba que ele a está observando. Phil produz um espaço tóxico para Rose e seus efeitos são desconcertantes. Como consequência, ela se entrega ao alcoolismo para poder suportar viver no novo lar.

Peter também tem que lidar com a hostilidade de Phil, porém, por mais que o caubói se empenhe em humilhá-lo, o garoto busca não se deixar abalar. Dessa forma, Peter parece ser a única pessoa da trama que se sente confortável sendo ele mesmo. Ele não tem vergonha de se mostrar uma pessoa mais delicada que gosta de fazer trabalhos manuais, como recortar flores de papel, ou brincar com um bambolê. O garoto também não se importa em rejeitar as normas sociais que a masculinidade impõe, normas estas que Phil parece levar muito a sério. E isso irrita Phil, muito provavelmente porque ele não teve coragem de ser como Peter.

Peter (Kodi Smit-McPhee) em Ataque dos Cães com um bambolê.
Peter com um bambolê. Imagem: Netflix.

A excelente fotografia do longa colabora muito para expressar essa natureza reprimida de Phil. O trabalho da australiana Ari Wegner com as teleobjetivas é incrível. É sensacional ver a forma como ela consegue capturar montanhas e colinas com todos os detalhes, assim como faz quando filma os personagens em primeiro plano.

Também é válido lembrar que Ataque dos Cães possibilitou à Wegner entrar na disputa pela estatueta do Oscar na categoria de direção de fotografia. Em 94 anos essa é a segunda vez que uma mulher concorre em tal categoria. É lamentável ver que a Direção de Fotografia é uma das funções do meio cinematográfico que mais apresenta dados desiguais relacionados à gênero.

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Wegner, portanto, consegue tirar o máximo de proveito dos cenários: as cordilheiras abertas, regiões montanhosas e os ajuntamento de gados que entram em contraste com as cenas internas, exibem ambientes melancólicos. Uma ótima cena é quando Phil olha para as planícies e os peões perguntam o que ele viu lá. E ele simplesmente responde que “se não consegue ver, não tem”. Nos é mostrado uma quantidade de planos que a medida que se alternam conseguem expor de forma sutil que aquela região mexe com os sentimentos do protagonista. Por outro lado, é notável que aquelas planícies escondem segredos que Phil jamais revelaria, pois nos é trazido um cenário que sempre parece esconder ameaças. É filosoficamente fascinante.

Ari Wegner e Jane Campion
Ari Wegner e Jane Campion. Imagem | Reprodução.

A sutil sensibilidade de Ataque dos Cães

É interessante observar que os três principais personagens masculinos de Ataque dos Cães choram em algum momento. Peter chora após Phil implicar com ele enquanto servia os peões no restaurante, George ao se emocionar enquanto dança com Rose, e Phil quando ouve George e Rose transando. Cada uma dessas sequências é retratada de uma forma muito respeitosa, legitimando o sofrimento de cada um. Desse modo, vamos entendendo que a masculinidade é retratada na obra como uma prisão, a qual Phil se mantém preso até a morte. Já George está aos poucos se libertando dela e Peter busca nunca se deixar prender.

O adolescente Peter não se intimida com a vida na fazenda e busca aprender a ser um caubói sem deixar de ser quem ele é. Isso leva Phil a se aproximar do garoto, o que faz com que Rose entre em desespero, com medo de que Phil faça algo contra seu filho. Enquanto isso, vamos assistindo ao filme buscando compreender para aonde vai essa relação.

A sutil sensibilidade de Ataque dos Cães
Phil e Peter acabam se aproximando. Imagem: Netflix.

Muito provavelmente, boa parte das pessoas que assistiram ao filme sentiram falta de um final mais claro e menos abrupto. Podemos nos sentir um pouco confusas com o desfecho direto. Mas a ideia do roteiro não parece ter como foco querer apenas surpreender com um gran finale, mas sim fazer com que o público mergulhe em todo o contexto narrativo. A trama de Ataque dos Cães vai se desenvolvendo de forma inteligente e aos poucos vai expondo as várias camadas de seus personagens, o que resulta na revelação final da obra.

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E assim, com um elenco fantástico, Jane Campion explora temas intensos que envolvem humanitarismo, reflexão, sexualidade e família. Talvez você finalize Ataque dos Cães com mais perguntas do que respostas. Até porque o western costuma ser considerado um gênero mais difícil de entrar por ser muito contemplativo, vide clássicos consagrados como Era uma Vez no Oeste (1968) e Três Homens em Conflito (1966), ambos de direção de Sergio Leone, um dos maiores diretores do gênero. Por mais que exista tiros e perseguições, a ação costuma ser lenta nessas obras.

E Ataque dos Cães é construído para ser ainda mais contemplativo, pois não temos tiroteios, nem duelos ou coisas do tipo. Contudo, Campion usa uma abordagem diferente, fazendo também uma crítica a forma como a masculinidade normalmente é retratada em um gênero que é classicamente dominado por homens. O que nos faz pensar, por exemplo, nos inúmeros personagens vividos por Clint Eastwood ou Charles Bronson, atores que ficaram famosos graças aos westerns.

Clint Eastwood ficou famoso por trabalhar em inúmeros westerns.
Clint Eastwood ficou famoso por trabalhar em inúmeros westerns. Imagem | Reprodução.
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Por interpretarem vários protagonistas em filmes desse gênero, eles são até hoje considerados por muitos como um sinônimo de masculinidade, os heróis brutos. E sim, eles realmente salvavam o dia nas narrativas aos quais estavam inseridos, mas eram conservadores, machistas e preconceituosos. Vocês conseguem imaginar qualquer personagem da fase western do Clint em crise com sua sexualidade? Ainda mais em um gênero que durante muito tempo retratou os indígenas sempre como os vilões. Um gênero que não abria espaço para pessoas negras e LGBTQIA+ e que normalmente tratava a mulher como uma figura passiva e objetificada.

Sendo assim, as colocações de Jane Campion subvertem o gênero western e nos fazem refletir sobre questões sociais. E embora, cronologicamente falando, a história se passe há quase 100 anos, várias das situações abordadas no longa ainda são bem atuais. Ataque dos Cães é o tipo de obra subversiva da atualidade que merece não só ser lembrada como exemplo de como fazer um bom western, mas também como uma articulação contemporânea artística que se opõe ao machismo e patriarcado.

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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