White Lotus: uma narrativa sobre poder

White Lotus: uma narrativa sobre poder

White Lotus é uma serie de duas temporadas da HBO lançada em 2021. Inicialmente uma minissérie de apenas seis episódios, seu sucesso trouxe uma segunda temporada em outubro de 2022. Em 2023, faturou duas estatuetas no Globo de Ouro – melhor série limitada e melhor atriz coadjuvante, com Jennifer Coolidge.

White Lotus se passa na rede de hotéis de luxo de mesmo nome: na primeira temporada, acompanhamos a equipe de funcionários e os hóspedes no Havaí, e no retorno da série temos um novo elenco na unidade de Sicília.

Além do quadro geral – resorts extremamente luxuosos em cenários paradisíacos -, o fio condutor da série é o convívio dos hóspedes extremamente ricos com o mundo ao seu redor. É um grande retrato das interações deles com suas famílias, amigos, funcionários, o cenário, e seu próprio passado e presente. A flor “White Lotus”, além do nome da cadeia de hotéis, também tem como referência a Odisseia de Homero: pessoas que comem a flor de lótus ficam inebriados e não sentem vontade de voltar para casa.

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Ambas temporadas se iniciam com um corpo: alguém morreu, mas a audiência não faz ideia de quem, ou como. A história regride para o começo e, no decorrer dos episódios, se acelera até o final derradeiro de um ou mais personagens, não sem antes desenvolver diversas dinâmicas dentro de cada núcleo.

White Lotus é uma tentativa de pintar um quadro sobre relações de poder social e financeiro, focando na perspectiva dos super ricos. Na segunda temporada, adota o olhar de gênero se sobrepondo aos outros recortes.

Aviso: o texto contém alguns spoilers leves das 2 temporadas

Primeira temporada: um olhar cínico sobre classe e colonialismo

Uma das primeiras cenas da série são os hóspedes chegando de barco na paradisíaca Mauí, com a equipe de funcionários aguardando na costa. Armond (Murray Bartletts), o gerente, passa instruções de forma acelerada para a nova funcionária, Lani (Jolene Purdy). Segundo ele, é importante não manter uma presença muito marcante ou específica: “(…) a meta é criar para os hóspedes uma impressão geral de imprecisão (vagueness) que pode ser muito satisfatória (…) eles recebem tudo que querem mas nem sabem o que querem, ou que dia é, ou onde estão, ou quem somos, ou que merda está acontecendo.A fala, dita entre ordens diretivas como ‘lave a camisa’ e ‘sorria’, dá o tom da série.

Primeira temporada de White Lotus: um olhar cínico sobre classe e colonialismo
Armond (Bartletts), Lani (Purdi), Belinda (Rothewell) e outros funcionários acenando para os hóspedes | Imagem: Reprodução

Contamos com diversos núcleos: os recém casados em lua de mel Rachel (Alexandra Daddario) e Shane (Jake Lacy), que são respectivamente uma jornalista cheia de ideais e confusa quanto ao próprio futuro, e um jovem herdeiro extremamente confiante quanto ao seu lugar no mundo. Tanya McQuoid (Jennifer Coolidge) é uma ricassa que acaba de perder a mãe e quer lançar as cinzas no mar, e vai evidenciando no decorrer da série o quão triste e caótica é sua forma de viver a vida –  enxergando em Belinda (Natasha Rothwell), gerente do spa do White Lotus, uma salvação.

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A família Mossbacher rende diversas tramas por si só, que incluem pai, mãe, filhos e agregada: a CEO e workaholic Nicole (Connie Britton), em um casamento sem romance ou vida sexual aparente com Mark (Steve Zahn), homem que ganha substancialmente menos e está em crise com a própria masculinidade após descobrir que o pai era gay. O filho adolescente desinteressado (Fred Hechinger), e a filha universitária (Sydeney Sweeney) que tenta se distanciar da família como alguém socialmente consciente, porém presa no estereótipo “meninas malvadas”, e sua amiga Paula (Brittany O’Grady) – que não é rica, e é uma das únicas pessoas não-brancas da história. 

Essa salada de personagens se afunda no caos: um herdeiro mimado que não teve o quarto que quis, uma recém casada em crise de identidade, um adolescente que se redescobre como parte de uma equipe de remo havaiana, um romance entre uma hóspede e um jovem nativo da ilha, uma mochila cheia de drogas que se perde. Armond, o gerente, é peça essencial para a história e contribui para o ritmo acelerado e progressivamente mais sombrio que a série toma. Álcool, drogas e remédios tarja preta são parte da trama e ditam, principalmente, o sabor narrativo da história.

A escolha pelo Havaí é simbólica: a ilha estado unidense teve a população local oprimida e o território tomado em nome do turismo paradisíaco. Todos os hóspedes, exceto Paula, ignoram o contexto racial e histórico daquelas praias, e os elementos nativos são colocados unicamente como entretenimento dentro do hotel. Colonialismo é citado mais de uma vez nos debates acalorados da família Mossbacher, mas sempre de forma condescendente.

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White Lotus traz personagens tridimensionais, e nenhuma relação deixa de retratar a discussão sobre poder aquisitivo. O roteiro cultiva um prazer quase voyeurístico para que a audiência observe esse grupo de pessoas tão profundamente ricas mas também tão humanas, em um nível quase patético. Sem spoilers, o tom que ronda a atmosfera da série até o último segundo é de um niilismo resignado: essas pessoas são horríveis, mas são como são e governam o mundo.

Tanya (Coolidge) na primeira temporada da série
Tanya (Coolidge), de luto, pouco antes de tentar jogar as cinzas da mãe no mar | Imagem: Reprodução

A primeira temporada não deixa de cair na mesma armadilha que seus hóspedes tão alienados: seu uso genérico de elementos da cultura e história havaiana não deixa claro se são um meta-comentário sobre o tema ou desleixo do criador. Ainda assim, o retrato do privilégio branco feito por White Lotus é simultaneamente sedutor e desesperador.

Segunda temporada: masculinidade em foco

O começo da segunda temporada de White Lotus repete a fórmula da anterior: corpos (não se sabe quantos ao certo) são encontrados, e a cena é cortada para a chegada dos hóspedes na praia. A gerente Valentina (Sabrina Impacciatore) usa um terno colorido como Armond usou na versão havaiana da história, e se irrita com a ineficiência do grupo sorridente de funcionários.

O barco atraca com, dentre outros hóspedes, a única personagem remanescente da temporada anterior: Tanya McQuoid, agora casada, e uma hóspede frequente da rede de hotéis – “sempre que me hospedo em um White Lotus, coisas maravilhosas acontecem”.

A narrativa em Sicília tem um ritmo diferente do anterior: uma cadência menos acelerada, que toma pausas deliberadas para compor visualmente a história. Quadros renascentistas decoram praticamente todas as cenas de interiores, conversando com os personagens e as dinâmicas. A própria sequência de abertura é repleta de significados simbólicos, combinando o nome do elenco com imagens que refletem seus principais conflitos e características na história.

Abertura da segunda temporada de White Lotus
Cena da abertura da segunda temporada | Imagem: Reprodução

A segunda temporada carrega menos cinismo que a primeira, trazendo o olhar de gênero como o viés principal. Nessa narrativa, o jogo de privilégios financeiros e patriarcais está dado, mas vemos personagens jogá-lo de formas distintas e muito mais conscientes do que na história anterior. Essa dinâmica é retratada principalmente com três personagens: Daphne (Meghan Fahy), Lucia (Simona Tabasco) e Mia (Beatrice Grannò).

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Daphne é inicialmente retratada como a esposa troféu e alienada de Cameron (Theo James), um homem clássico do mercado financeiro. O casal está de férias com Ethan (Will Sharpe) e sua esposa Harper (Aubrey Plaza) –  que se tornaram ricos recentemente e são muito mais informados, inteligentes e também infelizes com o próprio casamento.

A narrativa, portanto, avança dando cada vez mais agência para essa “esposa troféu”: sua filosofia é fazer o que for necessário para processar a existência e não ser “vitimizada pela vida”. Sua posição simultaneamente ativa e resignada é dicotômica tanto ao marido quanto à Harper, a outra esposa.

Em seguida, temos Lucia, uma prostituta italiana que leva sua amiga Mia, aspirante a cantora, para a vivência no hotel – esta, rapidamente, se torna sua “parceira no crime”. Lucia é inicialmente ousada e despreocupada, mas com momentos de dúvida e receio durante a trama; e Mia, que começa decepcionada com homens e sem nenhuma intenção de trabalhar com a amiga, dá uma virada e rapidamente enxerga benefícios e passa a adotar a mesma ousadia.

As duas personagens se complementam, e sua amizade é um motor inicial importante. Ambas são as jogadoras que entram nesse jogo de riqueza como as perdedoras – não são hóspedes, não têm dinheiro – mas estão prontas para utilizar o que têm para avançar.

Mia (Grànno) e Lucia (Tabasco) na segunda temporada
Mia (Grànno) e Lucia (Tabasco) de mãos dadas no hotel | Imagem: Reprodução
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Um dos núcleos mais fascinantes é o que mais interage com Lucia: a família Di Grasso, com pai (Michael Imperioli), filho (Adam DiMarco) e avô (F. Murray Abraham) em uma viagem de “resgate às origens”. Dominic é o marido traidor recém separado, Bert é o velho patriarca galanteador e despreocupado, e Albie é o filho que sente vergonha do pai, buscando uma outra forma de interagir com as mulheres – “eu gosto de pássaros bonitos e feridos”, diz ele para Portia (Haley Lu Richardson).

Os três são o contraste de uma mesma masculinidade através do tempo, com o sonho normalizado do homem chefe da casa e uma esposa subserviente de um lado, por parte do pai e avô, e o medo da solidão em um mundo menos tolerante com essa masculinidade do outro, personificando o neto.

Albie, por outro lado, se esforça excessivamente para ser o cuidador inofensivo das mulheres que encontra, confiando na imagem menos agressiva como forma de vivenciar suas relações com mais sucesso. Busca se distanciar do fracasso do casamento do pai, um casanova, performando a imagem do cara legal – mas sem deixar de enxergar mulheres como objeto, talvez menos sexual, mas como receptoras do seu cuidado parcimonioso.

Segunda temporada de White Lotus: masculinidade em foco
Albie (DiMarco), Bert (Abraham) e Dominic (Imperioli) no aeroporto, observando uma garota bonita que passou | Imagem: Reprodução

A relação sexual é um pilar essencial nas dinâmicas de poder debatidas, e o hotel White Lotus de Sicília é palco de uma masculinidade patriarcal que tenta se posicionar como dominante, mas tem um interior frágil. Ela é posta à prova de diversas formas, apresentando as nuances necessárias para uma discussão interessante sobre gênero. A conexão com o próprio desejo e o exercício de sexualidade de cada personagem refletem em todas as esferas, desenvolvendo uma história em camadas.

White Lotus e o super rico intragável

Eat the rich” (comam os ricos) é uma expressão que aparece frequentemente quando criticam os super ricos nos EUA. White Lotus aparece como mais um dos sinais dessa tendência na indústria cultural: diversos artigos estado unidenses comentam sobre a narrativa, que vem sendo vista em filmes como Entre Facas e Segredos 2: Glass Onion, The Menu e outros. Milionários estão personificando cada vez mais o mal como vilões na cultura pop.

White Lotus se destaca adotando a perspectiva de seus personagens privilegiados e apostando nas suas falhas e humanidades como principal forma de crítica. Em alguns momentos, a história cai em caricaturas e parece reproduzir a alienação que quer retratar, parecendo deixar de lado personagens não-brancos e seu ponto de vista. No entanto, a tridimensionalidade que caracteriza praticamente todos os sujeitos permite uma trama bem desenvolvida e envolvente.

Carregando esse zeitgeist contemporâneo, a série é uma sátira que no geral tem sucesso no que se propõe. As duas temporadas de White Lotus têm um elenco muito bem dirigido e um texto repleto de pérolas interessantes, bem recebidos pelo público e pela crítica. Seus acertos estão principalmente nas sutilezas das relações, e a segunda temporada foi ainda mais fundo do que a primeira. Se for esse o caminho da série, podemos apertar os cintos para uma terceira temporada extremamente fascinante!

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Bia é formada em economia, pesquisadora e escritora. Obcecada por internet e cultura, gosta de escrever para entender o mundo. É leitora assídua de todo tipo de ficção, ama debater filmes e faz perguntas sobre quase tudo - pelo prazer de buscar a resposta.
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