Através de cenários nostálgicos e incertos, o filme Aftersun leva o espectador em uma jornada através das memórias da personagem Sophie (Frankie Corio), que revive uma viagem de férias passada com seu pai, Calum (Paul Mescal), durante sua infância. O filme é dirigido por Charlotte Wells e marca sua estreia como diretora em longas-metragens.
Apesar de Sophie e Calum serem inspirados nas memórias da própria Wells a respeito de sua infância e de sua relação com seu pai, os personagens seguem seus próprios caminhos, em uma história que deixa inúmeras lacunas. Essas ausências são quase tão protagonistas quanto Sophie e Calum.
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Aftersun: as tentativas de reconstruir alguém
Ao olhar para o passado, Sophie tenta compreender seu pai através das memórias pouco confiáveis de sua infância. Calum é um personagem que se apresenta ao espectador em pedaços, sem que seja possível desvendá-lo em sua totalidade. Na verdade, o público não passa nem perto disso. É possível observar seu sofrimento, mas nunca compreendê-lo com certeza.
Sob esse prisma, Aftersun é uma reflexão a respeito do olhar infantil diante do mundo doloroso de um adulto. É difícil para Sophie reconstruir aquilo que foi vivido na inocência. Com a maturidade, vêm novas dúvidas, sofrimentos e angústias. Dores que um dia perturbaram Calum, e que para Sophie permanecem um mistério, um mistério que fica cada vez mais pesado à medida em que ela entende o peso de crescer, ser adulta e, até mesmo, de ser mãe.
O distanciamento que o espectador sente de Calum é o mesmo de Sophie. As peças que faltam para nós são as mesmas que faltam para ela. A nossa agonia é, na verdade, a agonia dela. A infância é, muitas vezes, uma jornada agonizante pelo mundo dos adultos, onde não é possível compreender com certeza aquilo que é deixado nas entrelinhas. Esse mistério faz com que a curiosidade rapidamente se converta em frustração e, um dia, em desilusão e angústia. Especialmente quanto a vida adulta chega sem que as perguntas que não foram feitas na infância possam ter sido respondidas.
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Sobre a dificuldade de reconstruir a imagem de uma pessoa perdida, em entrevista ao The Guardian, Wells falou a respeito das evoluções da tecnologia na criação de registros. A diretora contou que tem apenas um vídeo do pai, onde ele mal aparece. Ela compara a sua geração com a anterior nesse sentido, destacando o quanto, em tempos passados, era ainda mais difícil acumular registros de uma pessoa querida, e de reviver esses registros após a partida desse alguém.
Talvez a dificuldade que Sophie encontra em reconstruir e reconhecer seu pai através de uma nova ótica seja a mesma que qualquer pessoa encontra ao olhar para trás e perceber que os quadros criados pela infância podem ter sido retratos mais borrados do que gostaríamos de admitir.
Nas relações entre pais e filhos, existe a agonia de ter crescido e a agonia de estar crescendo, sem saber exatamente o que aguarda do outro lado, tendo apenas os pais como um espelho incerto da vida adulta. Nas memórias oscilantes de Sophie, fatos e suposições se misturam, e não é possível saber sequer se Calum era de fato tão sincero com a filha, ou se ela só gostaria que ele tivesse sido.
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Sob um mesmo sol
Ainda assim, as agonias da infância e da vida adulta podem não ser tão diferentes quanto parecem, ao menos sob alguns aspectos. Em certos momentos, Sophie e Calum parecem tomados pela mesma melancolia, suprimidos por uma espécie de pressão que os anos de maturidade falham em explicar, sendo tão esclarecedores quanto a inocência da infância. A partir dessa ótica, é possível refletir sobre a vulnerabilidade do indivíduo perante o sofrimento, que torna a vida um mistério tão assustador e incerto para um adulto quanto seria para uma criança.
Na mesma entrevista ao The Guardian, Charlotte Wells falou a respeito da recepção de Aftersun e das discussões sobre saúde mental que o filme evoca. “Há uma abertura para pessoas mais jovens falarem sobre saúde mental que não existia quando eu era adolescente” afirma.
A diretora ainda falou a respeito das diferentes formas como as gerações se relacionam com diversos temas. Aftersun se passa na década de 90 e tanto a infância e adolescência de Sophie quanto de Calum também foram marcadas pelas mudanças do mundo ao redor deles – e pela facilidade ou dificuldade de tocar em determinados temas.
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Aos onze anos, Sophie quer crescer, mas ao mesmo tempo olha para as angústias do pai e reflete, em sua própria incerteza, sobre o que pode haver do outro lado. A celebração de seu aniversário marca ainda mais a passagem do tempo, aproximando-a de uma realidade tão complicada e, ainda assim, tão inevitável.
Apesar das diferenças geradas pela época, idade e pelos papéis dentro de uma relação familiar, Sophie e Calum ainda estão sob o mesmo sol, ao menos por um período de tempo. Se os mistérios daquilo que não é explicado, revelado ou colocado em palavras afetam de alguma forma as imagens de Calum, eles não diminuem o amor e o afeto que Sophie sente por ele.
Confrontando as memórias confusas e as imagens perdidas da infância, está o amor que Sophie sentia por seu pai, atemporal e resistente à angústia. Sua maturidade é agridoce, a compreensão de algumas verdades tão complicadas sobre a vida parece chegar de forma tardia. No entanto, embora algumas coisas sejam difíceis de reconstruir, o amor é precioso por ser mais sólido do que as imagens borradas daquilo que, um dia, não fomos capazes de compreender.
Aftersun está disponível na plataforma MUBI do Brasil.