Há dez anos, praticamente no fim de uma febre que os zumbis na cultura pop – como o auge da série The Walking Dead, além de filmes como Guerra Mundial Z e Meu Namorado é Um Zumbi – um jogo foi lançado já fim da era do PlayStation 3: The Last of Us.
Com um título que não parece remeter a um videogame e sim a um filme ou um livro, além de um pano de fundo um mundo pós apocalipse zumbi, The Last of Us foi um título que não prometeu nada e entregou um mundo de cair o queixo.
O jogo revolucionou o mundo dos games. Não apenas pelos seus belíssimos e imersivos gráficos, que permite ao jogador traçar de maneira simples várias estratégias pelos estágios do game, mas sim pela sua história profunda e dramática, com personagens bem trabalhados e carismáticos, sem contar a trama visceral. O game realmente nos passa a sensação e a tensão entre matar ou morrer em um mundo mergulhado no caos.
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Não que antes não houvesse franquias de games com enredos grandiosos, dignos de filme. Porém, só o primeiro jogo de The Last of Us, lançado em 2013, conquistou uma legião de fãs em pouquíssimo tempo. A experiência fez o coração bater forte tanto nos momentos de combate quanto nas lágrimas escorridas das cenas mais emocionantes da trama.
É inacreditável pensar que há dez anos um jogo, com um enredo aparentemente simples e uma jogabilidade chupada de outros jogos, mas altamente funcional e divertida, daria no começo de 2023 uma série que pode ser uma das melhores do ano, se não a melhor.
Será?
Aviso: o texto contém spoilers do primeiro episódio
O início de The Last of Us
O primeiro episódio, disponível na HBO Max, abre com um programa de auditório no ano de 1968, em que cientistas estão sendo entrevistados sobre a possibilidade de um fungo poder exterminar a raça humana. O legal aqui dessa cena é que um dos cientistas, o Dr. Neuman, é interpretado por John Hannah, que o atrapalhado e malandro Jonathan Carmahan do filme A Múmia (1999), o que já aquece nosso coração saudoso.
Nesta breve introdução, o Dr. Neuman alerta sobre o perigo que fungo Cordyceps (que aliás, existe na vida real! #medo) pode causar, caso evolua ao ponto de infectar humanos, ainda mais, devido às mudanças climáticas. Olha aí mais uma vez o entretenimento dando a mensagem sobre os perigos do aquecimento global, sempre bom frisar.
Logo após essa introdução, a história avança para o ano de 2013, em que acompanhamos um dia na vida de Sarah Miller (Nico Paker), uma jovem de 12 anos, criada por seu pai, Joel Miller (Pedro Pascal), um homem durão e trabalhador, que apesar do jeito bronco, é devoto à filha.
Diferente do game, em que as cenas de interação entre Sarah e Joel acontece horas antes da tragédia inicial da trama, a série mostra um dia inteiro antes dela, onde pai e filha tomam café juntos pela manhã. É introduzido também Tommy Miller (Gabriel Luna), irmão mais novo de Joel, no qual tem uma breve participação no início jogo.
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É interessante como já podemos notar o poder que o seriado tem de aprofundar coisas que o jogo não teve espaço de abordar. Através da visão de Sarah, vemos a tensão aumentar com os casos de infecção pelo Cordyceps, começando pelas reportagens pelos jornais, vários carros de polícia e bombeiros na rua, vizinhos se comportando de maneira estranha, até o caos se instalar de vez no final do dia.
Vale destacar também o tempo que a série dedicou ao fato de Sarah pegar um antigo relógio de pulso de Joel e o levar para consertar, com intuito presentear o pai. Quem jogou sabe o quanto o relógio é importante para Joel e a série fez questão de destacar a simbologia do adereço – que é marca do personagem.
Quando o caos finalmente se inicia, começa também o deleite dos fãs do game: a parte em que Joel e Tommy buscam Sarah para fugirem da cidade. Aqui há um plano de sequência que remete ao mesmo trecho do jogo. A visão em primeira pessoa dentro do carro, os diálogos praticamente idênticos, além do acidente de trânsito, faz com que Tommy se separe de Joel e Sarah. Já a cena em que o pai carrega a filha nos braços fugindo dos infectados até o trágico encontro com o soldado nos limites da cidade, resulta em uma das cenas mais tristes do jogo: a morte de Sarah.
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Essa cena ficou IDÊNTICA ao game. O cenário, o figurino dos personagens, as falas reproduzidas com exatidão, o desfecho trágico em que Sarah agoniza nos braços de Joel. É uma cena que dói de tão triste. É impossível não se emocionar com o sofrimento do pai enlutado. E assim como no game, termina aqui de fato a introdução do enredo.
A história avança em vinte anos, agora em 2033
O destaque é para a cena em que uma garotinha caminha na direção da zona de quarentena de Boston. A menina é fisicamente parecida com a Ellie do jogo (vivida pela atriz Ashley Johnson), e numa rápida olhada pensamos que de fato é a Ellie, mas não é. A garota, aparentemente, é a sobrevivente de um ataque de zumbis. Abordada pelos soldados, logo atestam sua infecção. Em uma cena chocante, vemos um dos soldados confortar a menina enquanto outro injeta algo em seu corpo.
Uma referência a Ellie do jogo ou seja uma indireta para os público que reclamou da escalação de Bella Ramsey para interpretar a protagonista? Só sabemos que a cena é tocante e marca a atmosfera angustiante que o enredo carrega até então.
A cena muda para o interior da zona de quarentena, em que vemos Joel trabalhando em uma incineração de corpos. Nesse momento, temos mais um exemplo de como The Last of Us se aprofunda em coisas na qual o jogo só trouxe uma pincelada: como é a vida dos humanos dentro dessas zonas que estão sob a brutal ditadura militar da Fedra.
A série mostra como os humanos precisam trabalhar dentro da manutenção da zona para conseguir os cupons de comida (a “moeda” desse mundo), em tarefas bastante desagradáveis, como limpar latrinas ou incinerar corpos. Vale destacar a cena em que Joel joga nas chamas, sem a menor cerimônia, o corpo de uma garotinha. Isso é uma das maneiras de mostrar a indiferença e a frieza que o personagem adquiriu ao longo desses vinte anos.
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O show também abre suas adaptações dos fatos na trama, alterando alguns fatores, mas sem alterar o produto final. Além de vermos Joel trabalhando, o vemos também como contrabandista, algo que no jogo é apenas citado.
A introdução da personagem Tess (Anna Torv) também recebeu mais atenção. No game, ela encontra Joel em seu apartamento, com o rosto machucado pelos capangas de Robert (Brendan Fletcher). Aqui, nos é mostrado ela sendo agredida pelo bandido e seus capangas para depois encontrar o Joel e dizer que ambos foram passados para trás por Robert. Temos, portanto, a sugestão que há um envolvimento amoroso entre Joel e Tess nessa parte.
Além disso, outra personagem que recebeu destaque foi Marlene (Merle Dandridge), a líder dos Vagalumes, uma milícia de revolucionários que luta contra a ditadura da Fedra. O objetivo dos Vagalumes foi bem mais trabalhado, pois não apenas buscam uma cura para o fungo, mas sim libertar a humanidade do domínio dos militares.
Quando conhece a garotinha rebelde e desbocada que está imune ao Cordyceps, Marlene não apenas busca derrubar Fedra, mas sim curar a humanidade, enxergando essa esperança em Ellie. Portanto, o elo entre as duas é melhor construído na série.
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É então que Marlene e Ellie se esbarram em Joel e Tess, pois todos foram enganados por Robert, no qual o bandido acaba morto (não por Joel) e Marlene fica muito ferida. Trata-se de outra dinâmica de cena diferente do game, que acabou expandido mais a história e entregou o mesmo resultado. Marlene quer contratar Joel e Tess para levarem Ellie com segurança para um esconderijo dos Vagalumes fora da zona, trabalho que a princípio os contrabandistas resistem em aceitar e Ellie mais ainda em ir com eles.
Outro trecho que o show replicou muito bem: a parte em que Joel e Ellie esperam no apartamento dele enquanto Tess e Marlene negociam o acordo. Essa parte mostra como os dois protagonistas se conhecem, com hostilidade e bastante desconfiança entre ambos. Entretanto, é ótimo ver Pascal entregando um Joel turrão e Ramsey nos dando uma Ellie debochada que adora provocar os adultos com piadinhas.
Apenas nessa parte, a atriz já calou a boca de muito hater que reclamou da falta de semelhança de Ramsey com a personagem no jogo. O que mais importa em uma adaptação não é a fidelidade externa do personagem, mas sim sua personalidade. E a Ellie de Ramsey cumpre muito bem esse papel!
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O desfecho desse episódio é justamente na parte em que Joel, Tess e Ellie saem da zona de quarentena em direção ao antigo prédio do Congresso, onde estão o resto dos Vagalumes de Marlene. Através do plano panorâmico do desfecho, podemos ver que ambientação provavelmente será bem fidedigna ao game nos próximos capítulos. Quanta emoção!
Expectativa para os próximos episódios
Antes dos créditos, temos algumas cenas do que está por vir. Parece que haverá uma adaptação de Left Behind, a DLC do game, que conta como Ellie foi mordida, além do aparecimento de Riley, amiga de Ellie. Outra coisa que a série promete é mostrar a relação entre Bill – um “amigo” de Joel e Tess – com o Frank, um personagem que é apenas citado no jogo.
Apenas nesse primeiro episódio e prévias, o show apresenta o compromisso que se manterá fiel a trama de The Last of Us, mas que vai aproveitar também para se aprofundar em histórias secundárias nas quais o game apenas pincelou. Se tudo isso for tão bem feito quanto no videogame, poderá ser sim a adaptação que os fãs estavam esperando – e no qual a franquia merece.
Destaque para a direção de dublagem brasileira, que manteve os mesmos dubladores dos personagens nos jogos. Uma decisão certeira, pois a série se preocupou em reproduzir com muita fidelidade as falas. Já o figurino e a construção dos cenários também ficaram bastante semelhantes. Até mesmo quem nunca jogou, mas viu alguém jogar The Last of Us, reconheceu elementos do game só de bater o olho na série, e isso é incrível demais!
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Afinal, enquanto os games têm um público mais restrito (ainda mais no Brasil, onde consoles e games são praticamente artigos de luxo), a TV pode abranger um público maior. Portanto, a trama da série não tem ser construída apenas para agradar os fãs vindo dos jogos, mas para captar o público que vem de fora dessa bolha. E com a quantidade de pessoas que nunca jogou The Last of Us, mas que acompanhou gameplays no YouTube e na Twitch, como se estivesse vendo uma série de fato, isso não será uma tarefa tão difícil de se fazer.
Todavia, ainda é cedo para comemorar. Haverá mais oito episódios pela frente, tanto surpresas ótimas quanto desagradáveis podem acontecer. Os games, infelizmente, carecem de adaptações respeitáveis e a HBO está com essa grande responsabilidade de entregar a melhor adaptação de um jogo para a TV. Pode ser a melhor de todos, a que vai ditar o padrão de qualidade que esse tipo de adaptação tem que ter. Porquê, o tanto de gamers que quebraram a cara com expectativas destruídas por filmes e séries que não chegam nem aos pés da trama dos games. Os fãs de Resident Evil que o digam, coitados…
The Last of Us merece uma adaptação digna de perfeição. Que os próximos episódios nos proporcionem ainda mais a emoção que o jogo entrega. Por favor, não nos decepcione, HBO.