Na diversidade de cenários e personagens, Anéis de Poder é uma singela aventura por um mundo já conhecido, mas com muito para ainda oferecer. Tal perspectiva – ao contrário do esperado por grande parte do fandom – apenas enriqueceu o vasto mundo de Tolkien, ao invés de diminuí-lo. As discussões ali abordadas só foram possíveis graças a um grande esforço em se manter fiel às delicadezas desse mundo e abraçar um público tantas vezes esquecido, através da inclusão de personagens não-brancos e destaque para personagens femininas, por exemplo.
A história do bem e do mal
“O mal não dorme, ele aguarda. E assim que baixamos a guarda ele nos cega.”
A dualidade preferida das fantasias é a oposição do bem e do mal. Em Senhor dos Anéis há uma clara disputa pelo lado do bem (a sociedade do anel, os elfos, o povo de Númenor) e o lado do mal (orcs, Saruman, etc). Mas nem sempre é fácil definir algo como bom ou mau. Há sempre aqueles que tropeçam, por assim dizer. Como Boromir (Sean Bean), por exemplo. E sabemos que na vida, não há nada totalmente bom ou ruim. E que as guerras, no geral, não são travadas por esse motivo – a preservação do bem – pois o bem é relativo. Fomes, doenças, o pertencimento a um lugar ou comunidade, são motivadores muito maiores para guerras. Assim como a cobiça. E Anéis do Poder volta seu olhar para isso.
Os elfos, não apenas uma vez, tiveram a sua soberania questionada. Tanto ao precisarem da ajuda de seres “inferiores” quanto ao descobrirem certa fragilidade de sua raça. Além disso, os anãos puderam ser vistos como muito mais além do que burros, feios e brutos, como a representação um tanto superficial da adaptação cinematográfica da trilogia Senhor dos Anéis. E os homens não são mais tão sujeitos a caírem em tentação do que qualquer outro ser. Especificamente os “homens menores”, os homens do sul.
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Mas, em Anéis de Poder, os elfos, na verdade, são aqueles que buscam armamento e ferramentas para seus conflitos, muito motivados por cobiça e orgulho. Já os homens, lutam porque sentem fome, pois perderam suas casas e já não possuem mais um sistema no qual acreditar.
A história sobre a confecção dos anéis de poder e a ascensão de Sauron é mais complexa do que apenas o bem contra o mal. E para compreender isso, é preciso contar sobre a amizade de um elfo e um anão; um grupo de pés-peludos que encontraram algo misterioso na floresta; um menino que tem um segredo e vive só com sua mãe. O formato de série foi perfeito para aproveitar esses pontos de vista. O roteiro é cuidadoso o suficiente para lidar com isso, e nos render, por meio dessa grande história, pequenas narrativas, complexas, belas e relevantes.
Memórias da guerra em “Anéis de Poder”
Evidentemente, a personagem Galadriel (Morfydd Clark) é um dos maiores atrativos da série. A personagem é uma das figuras mais poderosas e intrigantes desse universo e Anéis de Poder nos dá a chance de descobrir mais sobre seu passado. Embora a Terra Média seja quase completamente diferente daquela em que Bilbo e Frodo viviam, alguns rostos ainda podem ser reconhecidos, como o de Galadriel, que como elfa, vive por séculos e séculos. Dessa forma, há muita coisa nova em Anéis de Poder, mas algumas foram apenas… vistas com outros olhos.
No primeiro episódio, Galadriel tem uma interação muito interessante com outro personagem conhecido: Elrond (Robert Aramayo), o meio-elfo. A maioria deve se lembrar dele como o pai severo de Arwen (Liv Tyler) – sim, sogro de Aragorn – mas aqui, ele é um jovem elfo sonhador. A beleza do roteiro se dá justamente em trazer as ideações de personagens que ainda não haviam enfrentado a guerra da qual se resta o Um Anel. Sobre o que essas pessoas pensavam? O que fizeram quando a guerra chegou? Quem elas eram antes de Sauron desolar a Terra Média?
Elrond era um sonhador. Escrevia, era diplomático. Mas Galadriel pensava como uma guerreira. Era uma comandante, preparada para combater o mal que lhe tirou sua casa e seu irmão. As lembranças de uma vida feliz e pacífica longe da Terra Média são manchadas com as lembranças dos corpos, das cinzas e destruição trazida por Balrog. Assim, Galadriel é o centro de uma das principais discussões da série: até que ponto nos diferimos do mal que tentamos combater?
Uma rainha no trono de Númenor; uma Pé Peluda pelas colinas
Mas Galadriel não é a única figura feminina de destaque. Ao contrário do que ocorreu nas duas trilogias para o cinema (Senhor dos Anéis e O Hobbit, ambas de Peter Jackson), Anéis de Poder possui personagens femininas diferentes entre si e com histórias distintas para contar. Temos uma pé-peluda (antecedente dos hobbits) chamada Nori (Markella Kavenagh) e uma rainha no trono de Númenor, chamada Miriel (Cynthia Addai-Robinson).
Nori é uma das personagens mais carismáticas da série, pois transmite toda a peculiaridade que já conhecemos dos hobbits. Mas, dessa vez, vemos esse traço em uma menina! Nori é aventureira e questionadora, seu arco tem um toque de infantilidade que corresponde muito com o tom que Tolkien escreveu muitos momentos de seus livros. O escritor também fez livros infantis, afinal. Contudo, se engana quem pensou que a história de Nori seria menos emocionante por esta ser jovem.
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Na verdade, além de ter um papel importante em um dos mistérios da temporada, a pequena pé-peluda também é um exemplo de coragem e bondade, o que nos proporciona diálogos lindos. Seja entre ela e sua amiga ou os pais, seja entre ela e o Estranho, a presença de Nori retoma a essência da simplicidade das obras de Tolkien e a personagens queridos como, é claro, Bilbo Bolseiro (Martin Freeman).
Por outro lado, Miriel interage com Galadriel, sendo ambas lideranças de seus povos. A relação entre as duas não é a de companheirismo ou amizade. Na verdade, a profissionalidade e diplomacia impera entre as duas. É importante trazer as mulheres para papéis diferentes daqueles que já vimos no universo de Tolkien: a política é um lugar para mulheres também. Se há confiança na relação entre as duas é devido à admiração conquistada após trabalhos bem-feitos e à demonstração de lealdade por seus valores.
O amor entre os seres
Seja no trono ou nas colinas, a presença de mulheres em Anéis de Poder é um ponto muito positivo, principalmente se levarmos em conta que, apesar dos avanços na representatividade feminina no cinema e TV, a violência contra tais personagens ainda é um ponto muito problemático, sendo muitas vezes a única nuance delas a ser explorada.
A não banalização da violência é fundamental para contar histórias em que a violência está presente e afeta diferentes pessoas – ou, no caso de fantasias, outros seres também. Portanto, quando há uma cena em que a tensão existe para uma árvore ser derrubada e Arondir diz “Ánin Apsene” (que pode ser traduzido como “me perdoe”), reconhecemos que qualquer ato de violência impacta algo ou alguém, por mais insignificante que pareça ser.
O fato de Galadriel ter estado vulnerável no meio de homens em tantos momentos e não ter passado por nenhuma agressão física ou sexual, seria uma utopia ou um mero conto de fadas? Novamente, o que parece acontecer é uma não banalização da violência. Ao invés de constantes gatilhos para as personagens femininas e principalmente, para o público feminino, as questões de invalidação da mulher e violência contra ela está presente de maneira responsável.
Talvez, pareça ser muita ingenuidade do roteiro acreditar que era assim que as mulheres eram tratadas no mundo imaginado de Tolkien. Mas o que é a fantasia senão espelhos sonhadores de nosso mundo? Se é possível imaginar um mundo em que magos criam fogos de artifícios, é possível imaginar um mundo onde a paz reine por completa, inclusive para as mulheres. E mais: um mundo onde haja esperança na luta.
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Arondir, enquanto par romântico de Bronwyn (Nazanin Boniadi), mais parece um príncipe encantado do que um elfo guerreiro. E a amizade profunda e verdadeira entre Durin e Elrond gera desconfianças sem fim para quem assiste. Por que é tão difícil acreditar nessa realidade de amor entre os seres? Anéis de Poder gera um exercício fantástico de repensar nossa humanidade e vontade de mudança. Porque para mudar o mundo precisamos, antes de tudo, imaginá-lo.
O que Tolkien diria de Anéis de Poder?
Alguns dos descontentamentos em relação à temporada foi, como já citado, a escalação de atores não-brancos e mulheres. E nesse sentido, a justificativa dada pelos fãs – em sua maioria, a parte masculina e não-racializada do fandom – é: isso não é “fiel” aos livros.
Pensar dessa forma é dar uma autoridade e imobilidade que não existe na literatura. Embora não fosse abertamente racista ou misógino, sabe-se que Tolkien reproduzia pensamentos dominantes de seu tempo e lugar. Ele escreveu ficção através de sua visão católica, masculina e europeia do mundo. Reformular algumas ideias para que esse mundo não reproduza mais ideais problemáticos não é necessariamente modificar e, muito menos, estragar a obra.
Alguns conceitos, como o embate entre o bem e o mal, foram ainda melhor explicitadas na série do que nos filmes desse universo. Tolkien não pensava em um mal absoluto, como discutimos anteriormente. E ressaltar as partes boas de sua obra – é o que Anéis de Poder busca fazer – não é ofuscá-las. A série, ao mesmo tempo que mantém, muda. Sendo assim, é uma produção ousada, que se importa com o que está narrando, de fato.
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Igualmente, a não-violência antes citada também parece ser um fator que causou desinteresse para o público. Também lançada em episódios semanais, A Casa do Dragão (House of Dragon), da HBO, usa recursos muito conhecidos do meio narrativo para atrair a atenção geral. No caso, há nudez, conteúdo sexual e violência explícita. O que não é um problema, claro. Mas histórias que não trazem estímulos e respostas tão imediatas não podem perder o merecimento por isso.
A Terra Média não ser um lugar tão violento para minorias – em especial no que se representa na série – não é um problema. Desde que questões de gênero e raça sejam bem discutidos e com boas construções no roteiro, diferentes abordagens são sempre bem-vindas. O mesmo serve para contra-argumentar a respeito do “ritmo lento” da série. Tais comentários chegam a ser um tanto irônicos se considerarmos o ritmo dos próprios livros de Tolkien, os quais são excessivamente descritivos, ressaltando a beleza dos cenários e os diálogos das personagens muito mais do que as ações de combate.
Não é um adeus
Outras temporadas para a série já estão previstas e as gravações da segunda já foram iniciadas. Anéis de Poder é, atualmente, a série mais cara da história e, no entanto, não teve um retorno em audiência como era esperado. Mas o fato é que ela voltará. Afinal, não sabemos se em algum momento as histórias desse universo se esgotarão, perderão seu sentido. Por ora, não é um adeus. Ainda existem aventuras esperando por nós.