“O Senhor dos Anéis” é uma obra clássica, inovadora na fantasia, como na Alta Fantasia e trilogias, reinventa o gênero de aventura fantástica, sendo de extrema importância para a comunidade literária dali em diante, e é indiscutível a capacidade do seu autor em criar cenários fantásticos que apenas a mão inventiva das mentes poderia criar— não apenas projetar em sua mente, mas principalmente, transpor a linha da imaginação e realidade.
O universo literário de Tolkien tornou-se real na vida de várias gerações devido à exímia capacidade dele em erguer mundos usando das palavras, por vezes longas, dado a metáforas, descrições minuciosas tanto de pensamentos e emoções quanto de planos geográficos. Talvez por conta disso tenha sido possível que Peter Jackson tenha, em 2001, alcançado o êxito ao lançar aquela que seria a trilogia cinematográfica de fantasia a marcar o mundo do cinema tão profundamente quanto Tolkien marcou o mundo da escrita. A trilogia conseguiu atingir a marca de 17 Oscars, sendo 30 nomeações.
De uma tecnicidade impecável e marcante para sua época, não há controvérsia alguma sobre a dedicação extensa e árdua que diretor, companhia e atores colocaram na realização do projeto. “A Sociedade do Anel“, “As Duas Torres” e “O Retorno do Rei” são uma verdadeira homenagem de alguém apaixonado pelos livros com todo seu coração. É perceptível. Os amantes mais vorazes da saga, os mais envolvidos com universo, de certo não pouparam lágrimas no desfecho da trilogia. O último filme é um épico – do gênero e do cinema. Tanto sucesso alavancou a carreira de muitos atores iniciantes e trouxe imenso prazer a alguns já renomados. Christopher Lee, por exemplo, pediu ao diretor para fazer parte do filme. O intérprete de Saruman era fã da obra de Tolkien há décadas e esta é apenas uma amostra do poder que cerca esse marco da cultura mundial.
O primeiro livro foi publicado em 1954 no Brasil e no mesmo ano lançou-se o segundo, para que no ano seguinte viesse “O Retorno do Rei“. Tolkien originalmente os redigiu durante o período da Segunda Guerra Mundial, quase não o finalizando, sendo estimulado por sua esposa a não deixar seu sonho de lado. Assim, entre 1937 e 1949, ele se dedicou àquele que seria um livro único, mas, eventualmente, foi dividido numa trilogia e lançado em 1954.
A questão das mulheres nas obras de Tolkien sempre foi tópico de discussão. É notória a falta de protagonismo feminino num universo completamente mágico e repleto de criaturas fantásticas. Em paralelo, e ainda mais nítido, há a problemática de inexistirem personagens não brancos na mitologia do escritor inglês. Muitos tentam justificar essas duas faltas dele com argumentos montados basicamente na época no qual foi escrito, e talvez isto seja menos sobre época e mais sobre a pessoa de Tolkien. Afinal de contas, alguém capaz de criar um universo de alta fantasia, repleto das mais diversas formas de mágica, não deveria ter sua falha justificada pela época – a qual ele era inventivamente à frente. A falta de representatividade na obra dele pode sim ser creditada ao ambiente e personalidade do autor. Ninguém deve ser imune à crítica, por mais que sejamos admiradoras de suas criações. Portanto, segue adiante uma breve análise das três personagens femininas com maior destaque durante tanto os livros como os filmes baseado nessa história.
O questionável brilho da Estrela Vespertina
Arwen, filha de Elrond, elfa de alta linhagem e protegida em sua morada, Valfenda (Lothlorien), é colocada num pedestal de beleza impossível de se atingir. Ela é a criatura mais bela de sua época; inatingível, protegida, estereotipada. Nos escritos de Tolkien, Arwen não tem forma alguma de protagonismo. Se a leitora quiser saber mais um pouco sobre sua história, terá de ler não a história principal do Senhor dos Anéis, mas o seu apêndice. A história da mulher vai ser encontrada nas páginas finais que são, muitas vezes, ignoradas por diversos leitores casuais que não estão errados em fazê-lo. Cada um sabe seu próprio estilo de leitura. Cabe ao autor endossar sua história sozinho – e dentro dela, Arwen é uma coadjuvante numa categoria de Virgem Maria.
Sua história com Aragorn é o pilar de toda a trama da elfa, além de uma comparação com outra elfa, baseada na esposa de Tolkien, que abandonou a imortalidade para viver o amor com seu amado, humano igual a Aragorn. Nos livros, porém, sequer cabe à ela o momento onde protege a Sociedade, que pode ser visto no primeiro filme. Ele pertence à Glorfindel, personagem substituído por opção criativa do diretor Peter Jackson diante da falta de participação feminina no conteúdo original. E mesmo essa adaptação não agrada os fãs mais “hardcore”, que preferiam ver Glorfindel no lugar dela, protegendo os viajantes, e que as cenas de Arwen fossem restritas às que lhe cabe em origem. Veríamos uma história de amor que envolve espera, espera, mais espera, provação e sacrifício – a provação de Aragorn perante Elrond e a infinita espera e sacrifício de Arwen, que abre mão de sua vida eterna e da existência entre os seus para desfrutar do sentimento que compartilha com Aragorn.
Aqui não cabe julgamento ao romance entre eles, mas sim ao fato de que Arwen é solenemente a única “prejudicada” na narrativa. A mulher abre mão do que lhe torna quem é por conta do amor; o homem prova-se, ascendendo à posição de Rei, mas Arwen já estava além do título de Rainha entre os humanos. Ela detinha a oportunidade de vida eterna, ainda que entre uma raça fadada ao esquecimento, mas ela deixa de ir embora com os seus para ser castigada com a viuvez e tristeza profunda após a morte de seu amado. Uma famosa frase da mesma deixa claro de que preferia viver uma vida com ele do que a eternidade sem seu amado. É um sacrifício, um sacrifício triste, amargo, que poderia ser perdoado, caso estivéssemos num universo onde mulheres têm participação ativa, mas Arwen é uma das únicas três no meio de tantos homens e lhe cabe o fardo do sacrifício. A mortalidade é o preço do amor para as mulheres.
Leia também:
» [MANGÁ] “GUIN SAGA”: a notável obra medieval criada por uma mulher
» [SÉRIES] “The Last Kingdom” e a representação feminina em séries medievais
» [LIVRO/CINEMA] Representação feminina nas obras de fantasia épica e a falácia da fidelidade histórica
Cabe a Liv Tyler, nos filmes, fazer uma entrega com mais força para além da beleza de sua Estrela Vespertina. Muitos protestaram a participação de Arwen em cenas que não lhe pertenciam ou sua personalidade e poderes ampliados nos filmes, mas isto é mais um retrato de misoginia moderna do que um clamor de paixão pelos livros. Afinal de contas, não há ofensa alguma em ampliar a participação de uma das já raras mulheres do conto. Os filmes do “O Senhor dos Anéis” foram criados para os anos 2000 e é perceptível o cuidado de Peter Jackson com toda saga, seu amor por ela. Criticar a adaptação de Arwen torna-se vazio.
O poder e rebeldia da Senhora de Lórien
Galadriel destoa das demais personagens por conter um background muito mais rico; entretanto, este não será completo na obra do “O Senhor dos Anéis” – encontram-se noutras continuidades do imaginário de Tolkien, a exemplo de “Contos Inacabados” e “O Silmarillion“. Mas o foco aqui remanesce no universo da trilogia do Anel, onde ela é a personagem feminina mais poderosa. Apesar de não especificado nos filmes, Galadriel talvez seja a mais forte entre todos eles, homens ou mulheres. Em sua juventude, foi líder de uma rebelião e, posteriormente, recusou voltar para Valinor, seu local de origem. Apenas após o final da saga do Anel que ela retorna – isso também não encontra-se incluso em detalhes na obra de “O Senhor dos Anéis”, sendo distribuído pela mitologia de Tolkien.
É curioso, porém, observar que em diversas passagens os homens consideram intimidante encarar a elfa diretamente nos olhos, pois ao vê-los é como se despir por completo diante de alguém, expor seus medos e segredos mais íntimos. Uma mulher poderosa merece admiração, mas uma idolatria distante. Seu poder ofusca o do marido, Celeborn, quem padece como mero coadjuvante.
Tolkien muito baseou as personagens femininas em mulheres de sua vida e na conjuntura social da Primeira e Segunda Guerra Mundial, portanto, não é difícil perceber que, apesar de tamanho poder, Galadriel é vista sob o prisma de intocável, de criatura única, dentre tantos outros homens predominantes. Na adaptação da obra, a mesma é interpretada por Cate Blanchett, que dá um ar etéreo para sua personagem durante a saga de “O Senhor dos Anéis”. Mas o próprio escritor, numa carta, refuta a comparação da mesma à Virgem Maria e uma possível associação com santidade à personagem e diz que ela foi uma penitente rebelde agraciada com o perdão após recusar o poder do Um Anel.
Apesar da resposta de Tolkien, o retrato de Galadriel acaba dando espaço sim para tal interpretação de santidade durante o recorte do “O Senhor dos Anéis”, visto que a mesma é colocada num pedestal reforçado pela adaptação cinematográfica. Ela chega a emanar uma aura ao seu redor, destacando sua posição acima dos demais. Galadriel é a Mãe ou a figura distante; poderosa, a mulher a ser temida, amada, mas de rara humanização.
A mais nobre cavaleira de Rohan
A Senhora Branca de Rohan é, juntamente com Galadriel, ou talvez acima dela, a personagem mais querida pelos fãs dos filmes. Ou mesmo dos livros, quem sabe. Éowyn foi criada para servir seu povo, dentro da corte de Rohan, sobrinha do Rei Théoden de Gondor. Temos dentro de Éowyn uma amplitude de mulheres que encontram-se numa só. Éowyn ganha no quesito humanização, talvez pelo fato óbvio de ser de fato uma humana na mitologia. Mas vai além disso. Ela vai da resiliência à luta, abraçando a heroína de guerra da fantasia. Entra no conceito de Joana D’arc, salvadora, guerreira, que vai para a batalha após se vestir como um cavaleiro homem, pois num mundo gravemente dominado por eles, as mulheres não tinham espaço no campo de guerra. E ao fazê-lo, não apenas toma a vitória com as próprias mãos sob uma das criaturas mais poderosas da trama, como esse triunfo a torna uma lenda para aquelas garotinhas que tiveram a oportunidade de encher seus olhos nas telas do cinema ao ver a cena interpretada por Miranda Otto. A célebre frase “I am no man” é repetida à exaustão em diversas formas de mídia, criando um amor pessoal de diversas mulheres e homens pela personagem.
A problemática entra quando usam de tais conquistas dela para diminuir outras personagens. É comum, no cotidiano da cultura pop, que personagens guerreiras sejam muito mais celebradas e findem por criar uma rivalidade. No caso do “O Senhor dos Anéis“, há um paralelo entre Éowyn e Arwen, pois ambas são apaixonadas por Aragorn. A guerreira se declara para ele e sofre rejeição, outro detalhe que pode fazer muitas pessoas se relacionarem com ela – mas antagonizar ambas é de uma cultura machista.
Não há rivalidade alguma entre elas, ambas vivem em dois mundos diferentes e são ligadas pelo amor ao mesmo homem, mas, principalmente, pela dedicação a uma Terra Média novamente em paz. A Senhora de Rohan encontra seu final feliz depois de sofrer severo ferimento no campo de batalha, e durante sua recuperação apaixona-se por Faramir, quem a aprecia e tem sua própria jornada digna durante a história. Mas tal detalhe pode passar despercebido, pois seu retrato vem nos apêndices e nos filmes, apenas numa cena estendida, não ganhando seu momento de finalização, onde compreende que vai abandonar a vida de batalhas e viver uma vida em paz.
Ambos os livros e filmes fazem de Éowyn um marco em suas histórias, arriscando dizer que no filme isso é bem mais destacado do que nos escritos. O diretor tinha que, de algum modo, dar destaque ao universo feminino negligenciado por Tolkien; afinal de contas, não apenas de fãs homens sobrevivem os amantes da obra.
Legado
São personagens femininas marcantes: seja através das mãos de Tolkien ou dos filmes. Porém, contrariando seus momentos de glória, às mulheres não é dada a mesma profundidade que aos homens – ou o mesmo cuidado. O imaginário do “O Senhor dos Anéis” sobrevive dos homens e seus feitos. Para elas, fica um desfecho sempre atrelado ao encontro da paz nos braços do amado, com Galadriel fugindo à regra. E mesmo que tal assunto seja tema de diversos debates ao longo de décadas, talvez este jamais cesse, pois aos leitores cabe o julgamento pessoal.
A escritora V.E Schwab falou sobre o perigo de tornarmos certos autores intocáveis ou requisitos. Marcos que ou você ama, ou lê, ou está fora do círculo. Ela fala sobre portas e é essa uma proposta que parece válida: Tolkien é uma porta. Uma porta de entrada para a fantasia, uma porta famosíssima e importante. Mas não deve ser visto como intocável ou não digno de crítica, ou fazer menos de quem não acompanha sua obra. Como Schwab diz, numa tradução aproximada ao português: “mas não existe apenas uma porta pela qual devemos encontrar amor pela leitura, ou nada. Na verdade, tal restrição é perigosa, limitadora. O que acontece quando é dado um livro a um leitor em construção e dito a ele que se ele não ama tal livro, você não ama fantasia?“.
Tolkien é um marco e suas personagens femininas também, mas é apenas uma porta. Está tudo bem encarar a porta, sair dela, debater sobre ela. O amor por personagens, leitura e personagens femininas é seu. Encontre sua porta, entre nela e revire seu mundo do avesso com quantas análises você quiser.
Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.