Amor proibido. Um dos melhores temas para criar uma série adolescente. Adrenalina, tensão e a paixão de um romance proibido são utilizadas para fazer o público jovem suspirar. Temos um casal de lados opostos e inimigos, cada um de famílias juradas de morte, nações sob estado de guerra ou de raças diferentes. Se for então um casal lésbico como protagonista, melhor ainda. Essa é a proposta central de First Kill (Primeira Morte, em tradução livre), uma vampira e uma caçadora de monstros que se apaixonam e terão que lutar com suas famílias para viverem esse amor.
A proposta é ruim? Longe disso. Como diria o meme com fundo de verdade, o que mais a comunidade LGBTQIA+ quer ver são personagens com representatividade, vivendo aventuras comuns, histórias que casais héteros vivem em cinemas e seriados, como assaltar um banco. No caso de First Kill, uma luta entre vampiros e caçadores de monstros. Entretanto, vale ressaltar que sempre houve uma proximidade entre vampiros e lésbicas, desde Carmilla, obra do autor Joseph Sheridan Le Fanu.
O enredo de First Kill
First Kill conta a história de Juliette Fairmont (Sarah Catherine Hook), uma jovem vampira da raça dos Imaculados – vampiros tão antigos e poderosos que podem andar tranquilamente sob o sol – e Calliope “Call” Burns (Imani Lewis), a caçula de uma tradicional e prestigiada família de caçadores de monstros.
Enquanto os Fairmont são uma família rica e influente na cidade de Savannah, que disfarça sua natureza sombria como cidadãos de respeito da sociedade, os Burns são os recém chegados na cidade, pois devido ao trabalho, precisam se mudar constantemente para exterminar criaturas das trevas. Os Burns chegam em Savannah, seguindo o rastro de monstros que infestam seu cemitério. No entanto, mal sabiam que iriam esbarrar em um clã antigo de Imaculados.
Como descendentes de seus respectivos clãs e com o peso de carregar as tradições em suas costas, tanto Juliette quanto Calliope sentem a pressão de cumprir uma tradição importante: a primeira morte. No caso da vampira, matar sua primeira presa será como debutar na sociedade vampírica. Já no caso da caçadora, é como um rito de passagem para se tornar efetivamente uma caçadora da guilda, onde poderá receber missões como a de seus pais e irmãos.
O problema é que Juliette e Calliope se apaixonam uma pela outra. Sim, no melhor estilo de Romeu e Julieta. Essa influência shakespeariana é tão forte que até mesmo o nome da protagonista vampira é inspirado na heroína trágica de Shakespeare, além de outras referências ao dramaturgo inglês.
A produção de First Kill
O show é original da Netflix, estreado em 10 de julho de 2022. First Kill é baseado em um conto da autora Victoria “V. E.” Schwab, uma escritora bem conhecida em terras brasileiras devido a algumas publicações como Vicious (2013), Um Tom Mais Escuro de Magia (2015) e A Vida Invisível de Addie LaRue (2020).
O conto “Primeira Morte” faz parte da antologia Vampiros Nunca Envelhecem, também publicado no Brasil, e serviu de base para a série. Do conto, Schwab escreveu um episódio piloto junto a produtora e showrunner Felicia D. Henderson, que acabou sendo vendido para a plataforma.
Além de Schwab e Henderson, a produção contou com a atriz Emma Roberts, que ficou entusiasmada com a história de Primeira Morte e a princípio iria atuar no seriado, mas preferiu ficar atrás das câmeras desta vez. Com um elenco jovem de tímidas participações em séries e filmes – como Sarah Hook, que fez uma ponta em Invocação do Mal 3 – e de rostos conhecidos no elenco adulto como Elizabeth Joanna Mitchell que faz a Margot Fairmont, a mãe de Juliette, outrora Dra. Juliet Burke da série Lost.
Fora isso, no elenco como um todo há atores e atrizes poucos conhecidos, cujos rostos você deve ter visto de relance em algum filme ou série, sempre em um papel pequeno e esquecível. Talvez isso explique a qualidade da atuação.
Ideia boa, já a execução…
A premissa parece interessante. Boa escritora por trás da ideia, uma atriz renomada na produção e uma das plataformas de streaming mais fortes da atualidade. E ainda assim, First Kill não entregou nem metade do que prometeu.
Bom, se avaliar o programa sob a ótica das séries adolescentes dos anos 2000, talvez dê para relevar. É possível ler várias avaliações de usuários no Google dizendo que a série era algo que pessoas LGBTQIA+ queriam ver quando adolescentes, ou que finalmente fizeram uma série adolescente com lésbicas como protagonistas.
Sim, é bom se sentir finalmente representado em uma série de TV, ainda mais quando se passa a vida toda tendo que engolir a heteronormatividade do entretenimento em geral. Porém, seria ainda melhor se tais shows tivessem a qualidade que merecem ter.
First Kill tem uma ideia geral ótima, mas é só isso. Se for encontrar uma palavra para descrever toda a série essa palavra seria “superficial”. Os conceitos, as atuações, os diálogos, a fotografia e até mesmo os efeitos especiais, tudo é superficial quando não tosco. Portanto, a única coisa interessante é o casal Call e Juliette, mas é somente isso. Tudo que se segue é apenas para sustentar a narrativa do casal lésbico formado por uma vampira e uma caçadora de monstros.
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O que é uma pena, pois a ideia teve um potencial desperdiçado. Por exemplo, o conceito dos vampiros Imaculados, uma sociedade vampírica secreta e matriarcal, é interessante e carecia de mais atenção. Trata-se de uma chance de empoderamento feminino desperdiçada pelo roteiro. Além disso, faltou explicar melhor coisas como a imunidade dos Imaculados ao sol, seu sangue que paralisa e o ritual da serpente, no qual Juliette tinha que passar após cumprir sua primeira morte.
No entanto, do lado dos caçadores, é legal ver que são pessoas negras e latinas em posição de poder, com boa condição social e não marginalizados, como geralmente são retratadas na TV. Mas para por aí. Se do lado dos vampiros há superficialidade em seu conceito, os caçadores não passam de arquétipos e lugares comuns. Eles matam monstros, pois é o trabalho, pois os monstros são do mal. Só. Nada é aprofundado. O ódio e a hostilidade dos caçadores é tão rasa que mais parece um preconceito que transborda ignorância pura, tanto que fica caricato demais.
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A família de Call é toda arquetipada: Theo (Phillip Mullins Jr.), o irmão mais velho responsável e talentoso; Apollo (Dominic Goodman), o irmão do meio fanfarrão e imprudente, Jack (Jason R. Moore), o pai, caçador estimado e chefe de família e Talia (Aubin Wise), a mãe ferozmente protetora. Todos esses personagens parecem não ser mais de uma linha de descrição de personalidade e todos os diálogos são vazios e clichês demais.
Não que a família de Juliette seja melhor. O pai (Will Swenson) e mãe são apaixonados um pelo outro, além de protetores com a filha mais nova. Já o núcleo da avó e matriarca do clã de vampiros é tão superficial que é facilmente esquecível, quando deveria ser uma personagem marcante e misteriosa.
Eleanor (Gracie Dzienny), a irmã mais velha de Juliette, é a personagem mais interessante desse núcleo. Uma mistura de vampira sanguinária com patricinha malvada, que possui poderes curiosos e uma personalidade maquiavélica e manipuladora. Porém, todo o potencial cai por terra com o esvaziamento do roteiro, que é o norte da série.
A personalidade das duas protagonistas também não colabora muito. Juntas são fofas, mas separadas, com suas próprias questões, empacam a trama. A recusa da Juliette em se alimentar de sangue é exagerada demais, pois ela não é do tipo filha rebelde, pelo contrário, é próxima de seus pais e muito afetiva com eles. No entanto, por que ela se recusa ser uma vampira de fato? Ela ama a humanidade apenas porque frequenta a escola e tem um melhor amigo humano?
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Isso seria até verossímil se Juliette fosse mais presente na escola, tivesse vários amigos e agisse como uma jovem mais festiva. Mas ela não passa da típica adolescente tímida, retraída, que vive arrastada pelo amigo extrovertido para socializar e prefere a segurança da mansão de sua família. De novo, onde vem esse amor pela humanidade e a repulsa de beber sangue humano? Não é algo que o desenrolar de First Kill consegue sustentar.
Já a Call é aquela adolescente que tem dificuldade de se relacionar devido às constantes mudanças de cidade. Até aí, tudo bem. Call admira o trabalho de sua família e anseia em se tornar uma caçadora, beleza. Ela é uma habilidosa artista marcial e sabe utilizar várias armas brancas. Bacana. Agora, qual a dificuldade de caçar monstros? O medo do principiante? É normal. Mas, é somente isso. Clichê. Nada aprofundado. Quando juntas, Juliette e Call até que funcionam, mas separadas, são tão disfuncionais quanto o resto da série.
O maior mistério da trama, entretanto, gira em torno de Olivier (Dylan McNamara), irmão gêmeo de Eleanor e vampiro renegado da família. O vampiro charmoso e misterioso, era para ser. Olivier se relaciona com uma bruxa, que faz aparições rápidas e cheia de firulas, que mais enchem linguiça do que realmente acrescenta algo. O fato desses dois estarem por detrás de alguns assassinatos e aparições de monstros em Savanna – que deveria ser o ponto alto da trama – acaba sendo uma interrogação sem pé e sem cabeça.
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A personagem da bruxa mal tem falas e é tão caricata que não se leva a sério. Ou seja, mais uma vez o roteiro se apoia em conceitos e lugares comuns do que realmente aprofunda as coisas. Há uma hostilidade entre Eleanor e Olivier que de tão mal explicada mais atrapalha do que realmente conduz a história.
E se os problemas entre atuações e desenvolvimento fraco, os efeitos específicos são tão mal feitos que parecem aqueles CGI dos anos 90, ao ponto de serem totalmente “cringes”. Como que a Netflix é capaz de produzir uma série como Stranger Things, perfeitamente ambientada nos anos 80, com efeitos especiais e maquiagem de alta qualidade, e produzir First Kill com efeitos tão toscos? Nota-se claramente que o streaming não equilibra bem suas produções.
Se para alguns filmes e séries originais há tanto investimento na qualidade, porque se dá ao trabalho de fazer então séries de maneira preguiçosa? Vai do 8 ao 80 nesse desequilíbrio de qualidade de produtos. É por essas e outras que sempre há uma grande incógnita quando a plataforma anuncia uma nova produção original. Só dá para saber se é boa ou não vendo. E não há meio termo: ou é algo excelente ou é algo tosco. Essa gangorra já devia ter se equilibrado, passou da hora.
Conclusão
Para resumir First Kill: um baita de um queerbaiting.
Óbvio que a comunidade LGBTQIA+ carece de mais representatividade no entretenimento, mas não pode ser feita de qualquer jeito. Não queremos ver apenas um beijo lésbico/gay, queremos ver um enredo que nos prenda do começo ao fim. Queremos personagens profundos e bem construídos, não apenas arquetípicos que pouco acrescentam.
A representatividade não deve ser apenas um conceito ou algo colocado apenas para estar naquele lugar. Ela deve ser natural, orgânica, ser capaz de emocionar, de prender a atenção, gerar empatia para aí, sim, realmente trazer alguma representação para o público.
Ou seja, não apenas ser mais uma série adolescente. Existem milhares dessas e que apenas um pequeno grupo de adolescentes vai gostar, mas por pouco tempo. First Kill não tem a capacidade de prender o público até o oitavo e último episódio da primeira e única temporada. Só Juliette e Call conseguem carregar essa curiosidade, porém, o final das duas decepciona. E não dá vontade de rever.
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Um dos pontos que a Netflix considera em renovar suas séries é a quantidade de usuários que as terminam até o fim. Se esse número não for expressivo, então não é rentável renová-la. Porém, isso levanta uma pergunta: por que, então, se dá ao trabalho de fazer um show tão fraco, com pouco investimento, para o resultado final ser ruim? Triste desperdício de série. Uma pena. Melhore, Netflix, você pode fazer melhor que isso e sabe muito bem!