Seguindo sua predileção por misturar realidade e ficção, a diretora Chloé Zhao traz em seu novo filme, Nomadland, um retrato sobre os idosos nômades que vivem em automóveis nos Estados Unidos. Ela coloca como protagonista a atriz Frances McDormand, no papel de Fern, uma personagem ficcional que interage com pessoas reais interpretando elas mesmas.
Fern, assim como a maioria dos nômades retratados, faz de uma van sua moradia após a crise econômica de 2008, que fez com que uma fábrica na pequena cidade onde morava fechasse, arruinando economicamente sua população. A situação foi tão severa que todos os moradores foram embora, e o CEP da cidade foi descontinuado.
Fern embarca em uma viagem rumo ao sul, fugindo do inverno rigoroso, e aprendendo várias lições sobre a vida na estrada com nômades veteranos, como Linda May, Charlene Swankie, e Bob Wells. Todos eles compartilham alguns momentos de afeto com Fern, antes de partirem em busca do próximo emprego temporário para se manter.
A pobreza como oportunidade para exploração
Muitas empresas viram na existência desses nômades uma oportunidade lucrativa. A Amazon foi uma das que investiu em parcerias com campos de estacionamento e programas de empregabilidade de idosos. É uma mão de obra barata, e improvável de formar sindicatos, vide sua condição nômade.
No filme, entretanto, a empresa é retratada como uma grande parceira dessas pessoas, em vez de exploradora. Quando Fern precisa de um empréstimo, ela diz que vai voltar a trabalhar uma temporada no galpão da Amazon e logo terá o dinheiro para pagar a pessoa de volta.
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O filme, inclusive, conseguiu filmar dentro de um galpão real da empresa, algo que imaginamos que não seria permitido caso Nomadland tivesse um tom crítico à mesma. Esse retrato, porém, é surpreendente, visto que a companhia tem uma conhecidíssima má reputação no que diz respeito a condições trabalhistas.
A tragédia sob uma lente de aceitação
Fern também é mostrada em outros trabalhos físicos desgastantes, mas o longa retrata a situação com neutralidade, ou no máximo uma pitada de tristeza resignada. Nenhum dos nômades que Fern encontra reclama muito sobre a vida, ao contrário do que conta o livro de mesmo nome no qual o filme foi baseado, escrito pela jornalista Jessica Bruder.
Chloé Zhao parece mais preocupada em retratar a condição de seus personagens de forma mais singela e delicada. É uma opção interessante, já que também não seria uma escolha fácil expor cruamente toda a dureza da vida que levam, sob o perigo de explorar insensivelmente aquelas pessoas para a composição do filme.
Porém, infelizmente Zhao acaba despolitizando demais sua obra. A narrativa se agarra a uma visão deveras individualista ao apresentar a protagonista vivendo aquela vida mais por opção do que necessidade. Durante o filme, Fern recebe 3 convites para morar com amigos e familiares, mas recusa todos eles. Em outro momento, ela diz a uma de suas ex-alunas que ela não é sem-lar (homeless), apenas sem-casa (houseless).
Dessa maneira, a obra tenta criar um mistério em torno do motivo pelo qual Fern se recusa a largar a vida nômade, apenas mencionando brevemente uma história prévia com seu marido, agora falecido. Pouco sabemos sobre sua história com família e amigos.
Essa composição casa com as referências aos filmes western, com os quais Nomadland tem sido comparado. Tanto por suas belas paisagens do oeste americano, quanto pela exaltação da individualidade e autossuficiência. A protagonista é resignada e trabalhadora, mesmo frente a sua trágica situação. Em outra cena, pessoas não-nômades comparam a vida de Fern aos “pioneiros” que exploraram o velho-oeste e expandiram as fronteiras do país.
Contemplação, melancolia e romantização em Nomadland
A tentativa de exaltação dos nômades retratados pode vir de uma boa intenção, sem querer expô-los como vítimas. Porém, também esconde o real contexto que os levou a essa vida. Um dos sinais mais claros disso é como boa parte da crítica vem recebendo o filme.
Em uma resenha, o jornalista David Walsh pede para os leitores imaginarem se os elogios romantizadores feitos a Nomadland fossem feitos ao filme As Vinhas da Ira (também adaptado de um livro, sobre uma família estadounidense buscando sustento após a crise de 1929). Elogios tais como:
“O filme é uma crônica sobre a vida na estrada aberta, sobre a beleza da paisagem, da estrada, e das pessoas viajando por ela.”
Como As Vinhas da Ira expõe claramente a indignação da família pela situação econômica do país e de suas vidas, tal descrição seria um insulto ao filme. Já em relação a Nomadland, não causa tanto estranhamento, porque o caminho que a diretora decidiu seguir estimula essas leituras.
As paisagens realmente são lindíssimas e melancólicas, ajudadas pela trilha sonora de piano ao fundo. Nomadland é um filme agradável de assistir, embora um pouco triste. Mas é difícil não se perguntar em algum momento se não devíamos estar mais indignadas que tristes. Ao mesmo tempo que já estamos saturadas de informações revoltantes nos encontrando todos os dias nas redes sociais e nos jornais, também não parece ajudar muito baixar o tom político num filme sobre questões sociais para torná-lo mais palatável.
Apesar desse tom não-ameaçador facilitar a aceitação do filme nos círculos de premiação (e o filme teve uma carreira muito exitosa em festivais pelo mundo), é gratificante ver Chloé Zhao ganhar o Oscar de Melhor Direção, mais de uma década depois de sua antecessora, Kathryn Bigelow. Agora finalmente temos duas mulheres ganhadoras, em mais de noventa anos de premiação. Não sabemos se, como Nomadland, devemos nos resignar e celebrar as pequenas vitórias, ou, como As Vinhas da Ira, nos revoltar com a disparidade que vai mudando a passos de tartaruga nas premiações da academia.
Edição e revisão por Isabelle Simões.