Mulheres nos Quadrinhos: Emil Ferris

Mulheres nos Quadrinhos: Emil Ferris

O lançamento da premiada história em quadrinhos autoral “Minha coisa favorita é monstro“, no original “My favorite thing is monsters”, em fevereiro de 2017, nos Estados Unidos, fez emergir o nome de Emil Ferris como uma potencial quadrinista de sucesso. A referida produção recebeu comentários elogiosos de grandes nomes das histórias em quadrinhos, como Art Spiegelman e Alison Bechdel, além dos prêmios Eisner Award 2018 em três categorias: melhor escritora/artista, melhor história em quadrinhos e melhor colorista. Em janeiro de 2019, Ferris recebeu também o prêmio Fauve D’Or, conhecido igualmente por Golden Wildcat, como livro do ano no Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême.

Com a tradução de Érico Assis, “Minha coisa favorita é monstro” acaba de ser lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras, no selo Quadrinhos na Cia. A tradução para a língua portuguesa vem logo depois das traduções para o alemão, o espanhol, o italiano e o francês, o que sugere que estamos diante de uma obra relevante para pensarmos o estatuto da quadrinhologia de autoria feminina no mundo.

Emil Ferris
“Minha Coisa Favorita é Mostro”, Quadrinhos na Cia. (2019)

Emil Ferris (1962) é uma quadrinista norte-americana, natural de Chicago. Filha de pais artistas – sua mãe, Eleanor Spiess-Ferris, era pintora surrealista, e seu pai, Mike Ferris, era designer de brinquedos e autor de eight-pagers (quadrinhos pornográficos inspirados em personagens famosos) – Ferris manteve contato desde os primeiros anos com variadas formas de arte. Segundo afirma em entrevista concedida a Alex Dueben (CBR, 2017), a arte foi a religião estabelecida pela família e seu templo foi o Art Institute.

Foi ainda na infância que nasceu em Ferris o interesse por histórias de terror/horror, especialmente os B-movies, filmes comerciais de baixo orçamento, e pelas histórias em quadrinhos. Usufruindo da coleção de histórias em quadrinhos do pai, ela foi se moldando como leitora e crítica da forma como as HQs contam histórias:

“Eu amava quadrinhos, mas sempre ficava frustrada com as histórias. Eu sempre quis mais texto. Eu sempre senti que tinha que realmente estudar esses desenhos, e que poderia haver mais equidade entre texto e imagem e eles poderiam trabalhar de forma diferente juntos. Eu queria desacelerá-lo (CBR, 2017).”

Emil Ferris
Ferris no Festival Internacional de Angoulême (reprodução)

O seu relativo descontentamento com a forma dos quadrinhos pode ser percebido em sua produção autoral. Escritos em forma de um diário, como se fosse num caderno em espiral e ilustrado com canetas esferográficas, a artista inova na estética dos quadrinhos. O resultado do trabalho entre ilustração e texto é surpreendente!

Mas, antes de explorar algumas particularidades da obra “Minha coisa favorita é mostro”, vale conhecer um pouco mais sobre o itinerário pessoal e profissional da artista.  Segundo se lê em NY (2017), ela não teve uma vida fácil. Para sobreviver, limpou casas, trabalhou como garçonete para, somente mais tarde, vir a trabalhar e a sobreviver como artista. Em sua trajetória como artista, desenvolveu brinquedos para o McDonalds, trabalhou com animações e foi ilustradora freelancer na maior parte do tempo.

A vida de Ferris piorou significativamente quando, na ocasião em que celebrava seu aniversário de 40 anos (2001), mãe solo de uma menina de 6 anos, ela foi picada por um mosquito culexs e contraiu a febre do Nilo Ocidental. Na forma mais grave da infecção, o vírus afetou seu sistema nervoso central acarretando, além das frequentes febres que a levavam a delírios e alucinações, problemas neurológicos como encefalite e meningite. Em virtude disso, ela enfrentou uma paralisia temporária dos membros inferiores e da mão direita (NY, 2017).

Com o passar do tempo e muitas sessões de fisioterapia, Ferris recuperou aos poucos os movimentos da mão direita e das pernas, mas ainda hoje se locomove com a ajuda de uma bengala ou de uma cadeira de rodas – dependendo do nível da dor. Com o avanço dos movimentos das mãos, voltou a praticar ilustração ao lado da filha e, posteriormente, ao ser contemplada com uma bolsa de estudos em 2010, matriculou-se no curso de Creative Writing program na School of the Art Institute of Chicago.

Emil Ferris
Autorretrado produzido para Chicago Magazine (reprodução)

Uma das consequências criativas dessa experiência difícil foi o quadrinho “Minha coisa favorita é monstro”, criado com esferográficas e canetas, que levou aproximadamente 6 anos para ficar pronto e foi recusado por 48 editoras antes de chegar ao Brasil. Como Ferri coloca em entrevista concedida ao programa Fresh Air, National Public Radio (NPR), em 30 de março de 2017:

Eu posso dizer honestamente que esta obra não existiria se não tivesse sido picada. A experiência [de ter sido picada e ter seus movimentos limitados pela doença] realmente uniu minha bravura em torno da recuperação da capacidade de desenhar, andar, viver e criar”.

“Minha coisa favorita é monstro” é uma produção autoficcional. Nela é possível perceber como a autora lança mão de suas experiências com o “monstruoso” em diferentes fases da sua vida. Por monstruoso, diferente e outro, entende-se as pessoas que não se encaixam nos padrões socialmente construídos de normalidade.

As experiências com as ideias de outridade e de monstruosidade que foram vivenciadas pela artista desde sua primeira infância ofertaram matéria-prima viva para sua obra. Pelo menos, é o que fica subentendido em uma entrevista quando ela relata sua luta contra uma escoliose severa que a impediu de caminhar nos primeiros anos de vida – ela só conseguiu caminhar quando estava com aproximadamente 3 anos – e que a obrigou a usar um gesso ortopédico por aproximadamente 9 meses.

Emil Ferris
“Minha coisa favorita é monstro”, Fantagraphics (reprodução)
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Devido a sua grave curvatura espinhal, ela era diferente dos demais, caminhava diferente e se via como diferente. Percebia-se como uma garota “estranha”, inclusive no que toca a sua identidade sexual, uma vez que se sentia atraída por mulheres. Para se aproximar das pessoas, a jovem Ferris aproveitou a sua “monstruosidade”:

“Eu era muito solitária no recreio porque não podia correr. Eu era um monstrinho. Percebi que se eu começasse a contar histórias de fantasmas e horror, eu teria um pequeno grupo de crianças. Eu acho que é onde a contação de histórias começou para mim. Foi uma maneira de fazer conexão. Foi uma maneira de ter amigos.” (CBR, 2017).

Em virtude da ausência de representatividade do “outro” na vida real, Ferris acabava se encontrando nos filmes de terror/horror. É em Dracula’s daughter (1936), por exemplo, numa cena de quase beijo entre duas mulheres, a filha de Drácula e Janet, que Ferris vê a conexão entre ficção e realidade. Contudo, a autora insiste que a outridade atrelada a ela não a diminuiu. Ao contrário, a artista parecia se divertir, como deixa transparecer na entrevista, e acaba reproduzindo suas experiências com o monstruoso no texto e na ilustração de “Minha coisa favorita é monstro”.

Emil Ferris
“Minha coisa favorita é monstro”, Fantagraphics (reprodução)

“Minha coisa favorita é monstro” foi programada para ser lançada em 31 de outubro de 2016, dia de Halloween, mas devido a alguns contratempos em seu transporte só foi possível realizá-lo em 14 de fevereiro de 2017, no Valentine’s Day. Outros percalços, além dos problemas de saúde mencionados, atingiram a escritora. Durante o processo criativo, ela sofreu com gravíssimos problemas financeiros, com momentos de privação de habitação e perdas emocionais.

No entanto, ela concentrou suas energias na produção do projeto. Concluído o trabalho, a editora que o publicaria não se reconheceu no material e decidiu não publicá-lo. Totalmente sem dinheiro, Ferris e seu agente começaram a bater de porta em porta até serem considerados pela Fantagraphics. Ao total, Ferris diz ter recebido 48 cartas de rejeições de 50 submetidas.

Emil Ferris
“Minha coisa favorita é monstro”, Fantagraphics (reprodução)

“Minha coisa favorita é monstro” trata-se de um quadrinho no formato diário em que a autora inter-relaciona os “horrores” e as experiências com as “monstruosidades” da vida real (bissexualidade da autora e o nazismo, por exemplo) com os “horrores” ficcionais (como lobisomem e vampiros).

Ambientado em 1968, a personagem principal é uma garota de 10 anos, Karen, que é obcecada por filmes e histórias em quadrinhos, histórias de terror e de detetive – qualquer semelhança com a autora da obra não é mera coincidência. Na trama, Karen, a autora do diário, normalmente se vê ora como um monstro, ora como detetive. Como monstro, seu maior desejo é possuir poderes para garantir longevidade às pessoas queridas. Nos seus episódios como detetive, ela se coloca como investigadora da morte de sua bela e jovem vizinha que era sobrevivente do holocausto, Anka Silverberg.

Emil Ferris

Emil Ferris

Trechos de “Minha Coisa Favorita é Monstro”, Quadrinhos na Cia (reprodução)

É principalmente a partir dos episódios de investigação conduzidos por Karen que a história de “Minha coisa favorita é monstro” se descortina. Além de referências históricas, entre elas, o terror nazista, a produção também chamou a atenção dos críticos pelas várias referências às grandes produções artísticas, como, por exemplo, a reprodução da tela “The Nightmare” (1781), de Henry Fuseli, e pela inclusão de temas tão caros como identidade, sexualidade e violência.

A tradução para o português da obra de Emil Ferris é mais uma oportunidade de ampliação de nossos horizontes em relação à produção feminina das HQs. A obra possibilita conhecer subjetividades femininas que foram interpeladas pelos estigmas socialmente construídos, mas que, sobretudo, resistiram convertendo a sombra em arte.

Caso queira conhecer um pouco mais sobre Emil Ferris, não deixe de visitar seu site www.emilferris.com.


Emil FerrisMinha coisa favorita é monstro

Emil Ferris

Quadrinhos na Cia.

416 páginas

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Escrito por:

Jaqueline Cunha é Pesquisadora de Histórias em Quadrinhos de autoria feminina, Mestra em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás, graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás e membro da Associação de Pesquisadores de Arte Sequencial (ASPAS). Jaqueline também se interessa por temas relacionados a Literatura, cinema e estudos acerca dos feminismos, identidades de gênero e sexualidade.
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