Mulheres nos Quadrinhos: Trina Robbins

Mulheres nos Quadrinhos: Trina Robbins

As histórias em quadrinhos foram concebidas, ao longo de sua trajetória, como um campo predominantemente masculino desde a produção até o consumo. No entanto, ao contrário do que se crê, a participação feminina na produção e no consumo de histórias em quadrinhos remonta à convencionada origem comercial das mesmas. Ou seja, a despeito da influência exercida por homens na produção dessa mídia, as mulheres são parte de sua história desde a fase inicial. Neste sentido, lançar luzes sobre essa realidade é fundamental para a superação das narrativas que invisibilizam as mulheres.

Reordenar a história das mulheres no interior da história dos quadrinhos não é uma tarefa fácil. A dificuldade em fazê-lo se deve principalmente ao caráter de “descartabilidade” que era atribuído às HQs. Ao que tudo indica, na fase inicial, não havia uma preocupação das editoras em manter registros dos artistas envolvidos nas publicações. Em virtude disso, muitas informações se espalharam ou se perderam.

Uma das peças fundamentais no reordenamento da história da mulher na produção de histórias em quadrinhos é Trina Robbins. Ao longo de sua vida, ela se dedicou à produção de HQs, às pesquisas sobre quadrinhos de autoria feminina e à promoção de trabalhos desenvolvidos por mulheres quadrinistas.

Com 80 anos, Trina Robbins atua no ramo há mais de 40 anos, é (co)autora de cerca de 30 produções quadrinísticas, 13 livros de não ficção e organizadora de 4 reintroduções de quadrinistas pioneiras no mercado. É indiscutível o fato de que Trina Robbins ajudou a moldar o desenvolvimento das HQs e a maneira de perceber as mulheres no interior delas, principalmente na paisagem estadunidense. Mas, como foi a trajetória “da última sobrevivente?

Trina Robbins: história em quadrinhos sob o ponto de vista feminino

Trina Robbins
Na foto: Trina Robbins (reprodução)

A judia Trina Perlson nasceu em Queens em 17 de agosto de 1938. Irmã de Harriet, filha de Bessie, professora, e de Max, alfaiate. Aprendeu a ler aos 4 anos e cresceu devorando os livros que apareciam em casa, inclusive histórias em quadrinhos. Nestas, Trina sempre procurava por mulheres protagonistas, suas HQs favoritas eram Patsy Walker (1944), Millie the model (1945-1965), Katy Keene (1945 – 1960?), Junior Miss (1946), Miss America (1943), entre outras.

Na década de 1960, Trina decidiu abandonar o Queens Collegue e entregar-se à boêmia. Mudou-se para Los Angeles e, durante o período em que viveu lá, tomou decisões das quais se arrepende hoje, como o fato de ter posado nua para revistas masculinas.

Em 1962, casou-se com o empresário Paul Jay Robbins e passou a se chamar Trina Robbins. Mesmo depois de separados (1966), Trina optou por manter o nome do ex-marido, pois, segundo conta em seu livro “Last girl standing”, ela odiava o sobrenome Perlson que havia sido atribuído arbitrariamente à sua família quando se mudaram para Ellis Island, Estados Unidos.

“O nome da família era Perechudnik, o que significa algo como “pequeno carpinteiro”. Naturalmente, os agentes da Ilha Ellis decidiram que Perechudnik não era ‘americano’ o suficiente, então eles mudaram.” (ROBBINS, 2017)

Foto: Trina Robbins na juventude. (reprodução)

O início da carreira de Trina Robbins

O despertar da sua carreira como quadrinista começou com a publicação do que ela chamou de “proto-quadrinhos”, um painel que trazia a personagem Suzy Slumgoddess, uma adolescente hippie, com um balão de fala carregado. O referido painel havia sido produzido, segundo Trina, como uma forma de agradecimento ao Allen Katzman do jornal underground East Village Other. A gratidão era devida pelo suporte diante de momentos de “bad trip” causados pelo uso de ácidos.

Antes de trabalhar como quadrinista, Trina também atuou como modelo nu para revistas masculinas e para fotos artísticas com Ruth Bernhard. Como costureira/estilista/empresária, foi dona de uma boutique com o nome de Broccoli. Naquele tempo, Trina chegou a costurar para pessoas famosas como Cass Eliot do grupo “The Mamas & The Papas”, por exemplo. Numa relação de permuta, ela produzia roupas para a equipe do East Village Other e eles sediam espaço para a publicação de propagandas da sua boutique. As referidas propagandas eram produzidas em forma de tirinhas chamadas “Broccolistrip”. Em 1968, Trina chegou a ter uma coluna sobre moda alternativa no jornal.

Foi a partir dessas experiências que Trina Robbins de fato começou gradativamente a mergulhar no universo dos quadrinhos undergrounds. Sua relação com a equipe do East Village Other ajudou na aproximação com o renomado quadrinista Robert Crumb (1943), considerado pai dos quadrinhos undergrounds.

“Eles me deram uma cópia do Zap # 1. Eu fiquei boquiaberta! De alguma forma, nunca me ocorreu – nunca ocorreu a nenhum de nós! – que poderíamos produzir quadrinhos inteiros, quadrinhos reais como Marvel e DC, mas com nossas histórias neles.” (LGS, 2017)

Primeiro painel de Robbins – Imagem de “Last girl standing” (reprodução)

O contato com Crumb colaborou duplamente com o horizonte artístico de Trina. Num primeiro momento, pela abertura de possibilidades de produção de quadrinhos capazes de romper com o mainstream, como aconteceu com a obra underground Zap#1. Posteriormente, o descontentamento com as publicações misóginas e violentas de Crumb, acabou inspirando Trina na criação de novos caminhos, que estavam além tanto do universo quadrinístico dominante como do underground incapaz de romper com o machismo.

Descontente com o fato dos quadrinistas undergrounds que procuravam romper com padrões estabelecidos pelas produções mainstream, mas não ofereceram abertura para a participação de quadrinistas mulheres, ela se juntou a outras mulheres a fim de criarem publicações de autoria inteiramente feminina.

A primeira antologia de quadrinhos de autoria feminista, “Ain’t me Baby”, foi inspirada e nomeada a partir do também primeiro jornal feminista underground, “Ain’t me baby”. A inscrição de mulheres quadrinistas no cenário underground, povoado principalmente por homens, conduziu a imaginação de Trina Robbins por caminhos que marcaram a história das mulheres quadrinistas.

Ain’t me Baby
Na imagem: Capa e parte interna de “Ain’t me Baby”. (reprodução)

Em 1971, surgiu outro trabalho com participação de Trina Robbins intitulado “All Girl thrills”. O sucesso dos primeiros empreendimentos impulsionou o nascimento de outro ainda maior, a antologia de quadrinhos “Wimmen’s comix”, que circulou por vinte anos (1972-1992).

Em “Wimmen’s comix #1” encontramos o que pode ser considerado como o primeiro quadrinho de autoria feminina a veicular uma narrativa lésbica: “Sandy comes out”. A história é baseada na descoberta da homossexualidade de Sandy Crumb, colega de quarto de Trina Robbins e irmã de Robert Crumb.

“Wimmen’s comix”, segundo Trina Robbins, contribuiu para dar visibilidade a grandes nomes dos quadrinhos como Phoebe Gloeckner, autora de “A child’s life and other stories”, e Carol Tyler, autora de “Soldier’s Heart”, por exemplo.

Wimmen’s comix
Na imagem: Capas de “Wimmen’s comix”. (reprodução)

Em 1972, ao mesmo tempo em que “Wimmen’s comics” estava sendo pensada, Trina Robbins produziu e publicou o quadrinho undergroundGirl fight comics” pela Print Mint. Tratava-se de uma publicação inteiramente produzida por Trina Robbins, que teve seu segundo volume publicado em 1974.

Em 1976, Trina Robbins recebeu um convite para publicar na revista francesa “Ah! Nana!”. Nos seus dois anos de existência (1976-1978), a revista foi proibida de circular por conta dos conteúdos envolvendo homossexualidade e incesto. A revista publicou nove edições inteiramente produzidas por mulheres. Além de Trina Robbins, publicaram nela Chantal Montellier, Florence Cestac e Nicole Claveloux.

Sandy comes out
Trecho de “Sandy comes out”. Imagem: reprodução

Na década de 1980, Trina Robbins desenhou e roteirizou “Mulher-Maravilha” para a DC Comics. Segundo a artista, seu intuito era prestar uma homenagem ao ilustrador original da super-heroína, Harry G. Peter. Ela também produziu para a Marvel a série “Misty” a fim de reproduzir o sucesso de uma série de quadrinhos voltada para o público feminino nos anos 1950 e 1960, intitulada “Millie, the model”.

Na década de 1990, trabalhou para a Marvel na produção de “Barbie Comics”. Sobre seu envolvimento com a produção de Barbie, ela afirma:

“A boneca, Deus nos ajude, realmente é uma loira burra. Eu tenho que dizer que não possuo uma boneca Barbie – eu tenho orgulho de dizer isso. Mas as histórias em quadrinhos realmente … eu sou uma das três escritoras, e todos as três escritoras são feministas, somos todas mulheres e fazemos o melhor que podemos.”

Trina Robbins: reescrevendo a história das histórias em quadrinhos

Trina Robbins
Na foto: Trina Robbins (reprodução)

A partir da década de 1990, Trina Robbins passou a desempenhar o papel de pesquisadora dos quadrinhos. Décadas dedicadas à pesquisa resultaram em cinco publicações que mapeiam as produções de autoria feminina e contribuem para a reescrita da história das HQs: “Women and the Comics” (1983), “A Century of Women Cartoonists” (1993), “From Girls to Grrrlz: A History of Women’s Comics from Teens to Zines” (1999), “The Great Women Cartoonists” (2001) e “Pretty in ink” (2013).

Além do necessário mapeamento, a artista/pesquisadora também passou a reintroduzir no mercado quadrinístico produções que foram relegadas ao esquecimento, entre elas: “Nell Brinkley and the New Woman in the Early 20th Century” (2001), “The Brinkley Girls: The Best of Nell Brinkley’s Cartoons from 1913-1940” (2009), “Miss Fury Sensational Sundays: 1941-1944” (2011/2013), e “Lily Renée, Escape Artist: From Holocaust Survivor to Comic Book Pioneer” (2013).

Entre as produções mais recentes de Trina estão “Babes in Arms: Women in Comics During the Second World War” (2017), a autobiografia “The last girl standing” (2017) e, para 2020, a reintrodução de “Gladys Parker: A Life in Comics, A Passion for Fashion”.

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Do ponto de vista formativo, o rico percurso de Trina Robbins representa a possibilidade de compreender o empenho de mulheres em favor da produção de histórias em quadrinhos que destonam e criticam aquelas obras centradas em personagens masculinos.  A inscrição feminina no universo dos quadrinhos é um fato da história das mulheres que merece nossa atenção, ao contrário do que certo “nerdismo masculino” ventila atualmente.

As fontes dessa experiência cultural ao longo da história recente das mulheres são a copiosa produção quadrinística legada por Trina e outras mulheres. Essas fontes revelam tramas e desafios vividos por mulheres criativas que estavam insatisfeitas com uma ordem cultural e social que não as incluía e que não lhes dava voz e espaço suficientes na cultura do entretenimento. Debruçar-se sobre elas significa conhecer um pouco da luta de mulheres pelo respeito profissional e pela representatividade.

Escrito por:

Jaqueline Cunha é Pesquisadora de Histórias em Quadrinhos de autoria feminina, Mestra em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás, graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás e membro da Associação de Pesquisadores de Arte Sequencial (ASPAS). Jaqueline também se interessa por temas relacionados a Literatura, cinema e estudos acerca dos feminismos, identidades de gênero e sexualidade.
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