Mulheres nos Quadrinhos: Pia Guerra

Mulheres nos Quadrinhos: Pia Guerra

A quadrinista e chargista Pia Jasmin Guerra nasceu em Hoboken, Nova York, em 1971. Filha de um músico chileno e uma mãe finlandesa, Guerra se mudou para o Canadá ainda criança e se naturalizou canadense. Atualmente, vive em Vancouver ao lado do marido Ian Boothby, roteirista de histórias em quadrinhos como “Futurama Comics” e “The Simpsons Comics”.

O interesse de Pia Guerra por histórias em quadrinhos foi despertado quando criança, aos 10 anos. Ao que parece, teve como influência a própria família e os “X-men“, de Chris Claremont. Segundo conta em entrevista publicada em 20 de setembro de 2002, seu primeiro contato direto com histórias em quadrinhos foi por meio de um exemplar de “X-Men” esquecido pelo seu primo, Patrick, na mesa de café da sua casa. Sua mãe, vendo o interesse da filha por quadrinhos, não impôs limites às suas leituras (via CBR).

Pia Guerra
Pia Guerra e Ian Boothby (Foto: disponível em Forum BD)

Ainda sobre estes primeiros contatos com quadrinhos, a artista diz: “Eu estava desenhando muito naquele momento [quando criança]. Então, quando eu vi que havia histórias e arte combinando desta forma, funcionou perfeitamente para mim”.

Já na adolescência, no período em que cursava o ensino médio, começou a desenhar charges para o jornal da escola Terry Fox Secondary School, na cidade de Port Coquitlam, Canadá. A habilidade de Pia com ilustração despertou a atenção das pessoas próximas a ela. Pouco depois, foi convencida a participar de convenções de arte. Daquele momento em diante, um aspecto marcante de sua identidade artística começava a ser definido: a crítica política.

Em Global News lemos que, provavelmente, sua primeira exposição foi de um quadrinho político na Galeria de Arte de Vancouver. A ilustração exibida na referida galeria foi produzida na ocasião em que estavam ocorrendo cortes de verbas para os abrigos de proteção à mulher. Comovida com a situação, Guerra ilustrou uma mulher com o olho roxo ao lado de uma criança com os dizeres “Vamos para casa logo, papai está chegando em casa”.

Pia Guerra
“Dream Big” em TheNib.com
Pia Guerra
“Rat’s Nest” disponível no Twitter

Seu receio de viver como artista em virtude das experiências de sua família fez com que Guerra retardasse sua decisão de fazer da arte sua profissão. A despeito de seu talento e de sua trajetória, até se estabelecer nas produções mainstream, não foi fácil! Pia Guerra trabalhou como ilustradora independente, produzindo manuais de jogos e storyboards (esboços sequenciais) para comerciais por anos e, segundo ela, esperou por seis para ser considerada para trabalhar para Vertigo. Sobre essa oportunidade, Pia assegura que foram muitos nãos, até que: “Finalmente, Heidi me ligou e me perguntou se eu me importava de desenhar muitas mulheres, então eu pensei em tentar desenhar mesmo que provavelmente fosse outro ‘não’ dos poderes, mas eu consegui e aqui estou no ‘Y’”.

Dentre os seus vários trabalhos no meio mainstream, destacam-se as ilustrações da história em quadrinhos “Spider-Man Unlimited Vol 03, #10”, publicada pela Marvel em 2005, da “Bart Simpson’s Tree house Of  Horror”, publicada pela Bongo Comics em 2007, assim como da antologia “Comic Book Tatoo”, publicada em 2008 pela Image Comics. Guerra ilustrou também “Doctor Who: The Forgotten”, publicada pela IDW Publishing em 2009, e “Shrouded”, publicada pela Torchwood Magazine em 2010.

Seus trabalhos de maior prestígio foram a coparticipação na distopia “Y: the last man” (“Y: o último homem” em português), criada em parceria com Brian K. Vaughan e publicada pela DC/Vertigo de 2002 a 2008, e seus quadrinhos políticos (charges). Destes, os que receberam maior atenção e se tornaram “virais” foram os que abordavam a imigração, o tiroteio na Marjory Stoneman Douglas em Parkland, Florida, e o presidente Donald Trump.

Pia Guerra
Capa de “Y: O último homem” (Imagem: Panini Comics)

Y: O último homem

Publicada no Brasil pela Panini em dez volumes entre 2009 e 2012 e republicada em versões de luxo de 2015 a 2019, a premiada “Y: o último homem” (Eisner Awards como melhor série continuada, 2008) é uma história em quadrinhos de ficção científica. Trata-se de um universo pós-apocalíptico em que se erradicou do planeta todas as criaturas que possuíam cromossoma Y, exceto o protagonista, Yorick Brown, e seu animal de estimação, o macaco Ampersand.

Os seis anos de publicação renderam 60 edições que retratam, em linhas gerais, os caminhos do jovem sobrevivente Yorick Brown, um artista desempregado que segue sua jornada com o fito de reencontrar com sua amada, Beth, ao lado de várias outras mulheres que procuram, entre outras coisas, garantir a sobrevivência da espécie humana – como a cientista Dra. Allison Mann, que procura desvelar as razões da imunidade de Yorick.

Para criar a referia produção, Vaughan e Guerra rejeitam o resistente modelo de masculinidade e patriarcado hegemônico – leia-se masculinidade tóxica – e, para tanto, procuram problematizá-lo. Contudo, durante a jornada dos personagens, fica evidente que a quase extinção dos homens não extinguiu o tipo de masculinidade que estava impregnado tanto em homens quanto em mulheres. Em outras palavras, a distopia também problematiza um aspecto da experiência social de nossos dias, o que faz de Y uma interessante abordagem a respeito das identidades essencializadas.

Nesse sentido, “Y: o último homem” desestabiliza a masculinidade dominante (HILL, 2016) e, seguramente, também problematiza as representações dos modelos de feminilidade e feminismos, pois mesmo sendo um homem o personagem principal, as mulheres também desempenham papéis fundamentais na “denúncia” da masculinidade hegemônica.

Recentemente, sites especializados divulgaram que, em breve, as/os leitoras/es da série quadrinística poderão assistir à adaptação para as telinhas. A FX divulgou oficialmente que já está em fase de produção a adaptação de “Y: the last man”. O episódio piloto foi dirigido por Melina Matsoukas em 2018, mas a data para o lançamento da série ainda é incerta (via CBR e SYFY Wire).

Apesar de ter alcançado grande sucesso com “Y: o último homem” e ter aprendido muito com a experiência, Pia Guerra declara, em entrevista concedida à SYFY Wire (2019), que não pretende abraçar outro projeto longo tão cedo: “Eu não poderia, de forma alguma, fazer mais 60 edições. Isso foi insano e eu fui realmente ingênua entrando nessa. E foi depois de dois anos dentro, penso, que eu percebi ‘Eu estou no número 10 e isso vai até os 60!’ […] Então, sim, eu tenho uma melhor perspectiva agora sobre como isso funciona e eu não quero fazer de novo”. 

Deste modo, sua atenção atualmente está direcionada a trabalhos que podem ser desenvolvidos aos poucos, sem grandes pressões quanto ao cumprimento de prazos, como a produção de quadrinhos políticos e as ilustrações de capas de histórias em quadrinhos e, nas horas vagas, a criação de sua primeira história em quadrinhos solo.

Pia Guerra
Me the People (2018) (Imagem: divulgação)
Pia Guerra
“Bad Dude” em Me the people (2018) (Imagem: divulgação)
Pia Guerra
“Hero’s Welcome” em Me the people (2018) (Imagem: divulgação)

Pia Guerra

“Big Boy” em Me the People (2018) (Imagem: divulgação)Embora Pia Guerra tenha produzido charges desde a adolescência, o grande boom dos seus quadrinhos políticos aconteceu a partir da publicação da sua charge Big boy. Nela, vê-se um “infantil” Donald Trump sentado no colo de Steve Bannon, ex-assessor político dele, e os dizeres “É isso aí, quem é menino crescido agora?” e Trump responde “Eu sou menino crescido”. Bannon se tornou uma referência da direita populista e delirante, inclusive no Brasil.

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Foi a partir daí que Pia foi convidada a contribuir regularmente com o website de quadrinhos editoriais TheNib.com e com o The New Yorker. Além disso, também publica regularmente no Twitter. Como desdobramento das suas produções de quadrinhos políticos, em outubro de 2018, durante os preparatórios para as eleições de meio mandato nos Estados Unidos, Pia Guerra publicou sua coleção de charges em Me the people pela Image Comics.

Sobre este último lançamento, a artista diz que “desenhar foi uma maneira de fazer parte da ‘resistência’” e é assim que a premiada quadrinista canadense coloca-se como parte da resistência contra a misoginia e o racismo que parecem reencontrar seus lugares durante o governo de Donald Trump. Seu lugar artístico, sem dúvidas, é o da mulher que responde às interpelações políticas de nossa era.

Nestas quase duas décadas ilustrando, Pia Guerra acumulou prêmios como Harvey Awards (2003), (Joe) Shuster Awards (2006), Spike TV’s Scream Awards (2008) e, ao lado do também quadrinista Jose Marzan Jr., o Eisner Awards (2008).

Para conhecer mais sobre Pia Guerra, não deixe de ler Vertigo’s ‘Last (Wo)Man’ Standing: Pia Guerra Talks About Hit Series ‘Y‘ e Talkin’ Politics with Me The People’s Pia Guerra & Lil’ Donnie’s Mike Norton.

Outras sugestões de leitura: Alternative Masculine Performances in American Comics: Brian K. Vaughan and Pia Guerra’s “Y: the Last Man” e We Don’t Need Another Hero’: Agent 355 as an Original Black Female Hero in ‘Y: The Last Man.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

Jaqueline Cunha é Pesquisadora de Histórias em Quadrinhos de autoria feminina, Mestra em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás, graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás e membro da Associação de Pesquisadores de Arte Sequencial (ASPAS). Jaqueline também se interessa por temas relacionados a Literatura, cinema e estudos acerca dos feminismos, identidades de gênero e sexualidade.
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