Desde 2013, Netflix cria conteúdos exclusivos e mantém uma produção constante de séries. Uma delas é a comédia dramática Orange Is The New Black (Jenji Kohan, 2013-presente), carinhosamente conhecida também como OITNB. A série foi baseada na autobiografia de Pipe Kerman, condenada a um ano e meio de prisão. A própria empresa justifica a necessidade de uma programação exclusiva: sem uma programação original, a plataforma de streaming estaria apenas licenciando produtos de outras empresas e seria facilmente substituível. [Contém spoiler da 5ª temporada]
Ser grande o suficiente para produzir uma série como OITNB cria uma identidade imprescindível para distinguir-se de outras empresas. A fórmula parece ter dado certo – diz a lenda que Orange Is The New Black já foi renovada até a sétima temporada, o que é uma situação incomum até mesmo em canais abertos. Um risco para a Netflix, já que não é possível ter certeza que a série terá fôlego para tanto. No entanto, os(a) fãs agradecem.
Mas, qual a grande sacada de OITNB? Primeiro, o tema é relevante e pouco representado na tv aberta. Quem está acostumado/a a ver série sobre presídios femininos tão perto da realidade? Essas histórias não costumam ser contadas. Por outro lado, este tipo de série parece estar modificando também a forma como a audiência assiste a seus programas favoritos. Quando as temporadas são lançadas, muita gente passa o final de semana inteiro vendo todos os episódios de uma só vez, em um processo de recepção conhecido como binge-watching ou maratona.
Já os(a) roteiristas escrevem cada episódio como se fosse um filme. Assim, podem aprofundar mais em um personagem sabendo que as cenas dos próximos capítulos serão de outro. O que a Netflix faz é tomar posse de um tipo de narrativa audiovisual que já faz parte do repertório de quem assiste para criar produções originais, quem mantêm os principais elementos estéticos de uma série de televisão, como enredos polêmicos e personagens protagonistas de caráter duvidoso e contraditório.
Com mais canais à disposição, a audiência se dispersou e as empresas produtoras de conteúdo perceberam que, em alguns casos, pode ser suficiente ter um público pequeno, fiel e dedicado. Muitas vezes, esse público tem um maior grau de instrução e não é muito fã da telinha.
Em geral, as séries produzidas pela Netflix são divididas em temporadas com 13 episódios, como costumam ser nos canais pagos dos Estados Unidos. Para garantir o interesse do espectador entre uma temporada e outra, que leva um ano, os roteiristas utilizam o chamado gancho de tensão, ou seja, terminam de uma forma tão emocionante que a audiência fica louca para chegar a temporada seguinte para saber como tudo vai continuar.
A interrupção abrupta desse acompanhamento pode fazer com que as produtoras de conteúdo voltem atrás depois de decidirem cancelar uma série. Foi o que aconteceu com Sense8. A série tinha sido cancelada por causa dos altos custos de seus episódios, mas, Netflix teve que voltar atrás e prometer um último e definitivo capítulo, devido às reclamações de fãs decepcionados/as, no mundo inteiro.
Por outro lado, existe um aprofundamento das personagens protagonistas de OITNB e elas têm distintas nuances e contradições, ou seja, são bem diferentes do chavão herói/mocinha que ainda costumamos ver por aí. Por exemplo, a personagem protagonista de Piper Chapman (Taylor Schilling) possui características como egoísta, contraditória, impulsiva e volúvel ao mesmo tempo em que tenta ser uma pessoa de boa índole. Seu comportamento oscila ao longo da série, assim como sua orientação sexual, ainda que nas últimas temporadas, ela tenha preferido as meninas: Stella Carlin (Ruby Rose) e Alex Vause (Laura Prepon).
Orange também conta com uma interessante diversidade de personagens secundárias, que são apresentadas em cada episódio e contam suas histórias através de flashbacks, bem ao estilo da badalada Lost (Jeffrey Lieber, J. J. Abrams e Damon Lindelof, 2004-2010). Dessa forma, as narrativas não dependem da protagonista e vários núcleos coexistem, como nas telenovelas brasileiras.
Orange destaca-se como um produto audiovisual contemporâneo e oferece a possibilidade de contestação dos antagonismos de gênero, isso é, a série discute as estruturas sociais convencionais, especialmente as relacionadas ao gênero e também à raça, à classe, à etnia, à idade e à sexualidade. Os personagens são mais humanos, realistas e próximos de uma audiência mais preparada e contestadora, diferente da que costuma apenas seguir a programação da tv aberta. Há uma valorização do anti-herói e da anti-heroína, que encaram as misérias do mundo. Em OITNB, as mulheres são fortes.
Outro aspecto inovador é o rompimento com os padrões sexuais determinados. O que isso significa? A sociedade onde vivemos tem a mania de ditar que comportamento é apropriado para um “homem” e/ou para uma “mulher”. Esses comportamentos são fixos e adequados à necessidade dessa sociedade que, por outra parte, exclui quem não cumpre com esses requisitos. Assim, se você não se comporta como “uma mulher de verdade” ou um “homem de verdade” está à margem e deve sempre ser diminuída, normalizada e/ou oprimida. OITNB desconstrói, em grande parte, essas regras. Na série, as diferentes identidades de gênero transitam sobre corpos e subjetividades distintas e plurais, permitem uma reflexão aprofundada de questões sociais, raciais e sexuais.
A prisão de Litchfield, cenário das aventuras das nossas anti-heroínas, representa um lugar invisível no imaginário social, ou seja, um cenário que as pessoas evitariam pensar sobre; representa as exclusões, a não normalidade, a desordem. É nesse local, onde as mulheres resistem ao domínio dos homens que as oprimem também por serem negras, idosas, lésbicas e transgêneras. Esse enfrentamento é feito de várias formas, como através do isolamento, da loucura, do apego religioso, do sexo, da formação de guetos raciais, étnicos e etários.
Os corpos nus das mulheres são um caso à parte. A série não mostra corpos glamourosos, mas, sim naturais, com todas as suas características, algumas consideradas fora do padrão de beleza socialmente imposto. São gordos, velhos, flácidos, fortes, siliconados, magros. E eles aparecem em ambientes pouco ou nada sedutores, como o banheiro coletivo. Dessa forma, funcionam como elemento de contestação ou afirmação, mas, não são um atrativo sexual em si para o olhar masculino, como costumam ser mostrados no audiovisual.
Além disso, em OITNB, as características consideradas masculinas, como autoridade, e femininas, como o afeto, misturam-se nos mesmos personagens, que podem existir em diferentes momentos da vida da pessoa. Por exemplo: Galina “Red” Reznikov (Kate Mulgrew) é durona e líder das brancas na prisão e, antes de entrar lá, era uma mulher submissa ao marido que queria fazer amizade com outras esposas de homens russos.
A briga entre os personagens de Joe Caputo (Nick Sandow) e Natalie “Fig” Figueroa (Alysia Reiner) para dirigir o presídio também evidencia uma troca de papéis. Até mesmo quando os personagens se envolvem sexualmente, muitas vezes, quem dá as cartas é ela, que assume um papel de liderança dentro do presídio e na cama. Joe Caputo, por sua parte, mostra-se mais sensível às causas das detentas do que Fig, ainda que nunca consiga fazer muita coisa por elas. As últimas temporadas têm mostrado mais violência e menos ingenuidade entre essas mulheres.
No entanto, as grandes transgressões e resistência das detentas se dão justamente através do afeto que desenvolvem. O afeto é uma potência que não pode ser controlada pelos poderes econômicos, políticos e autoritários e, por isso, é libertador. Assim, os guardas não conseguem inibir os relacionamentos lésbicos nem a amizade entre as mulheres.
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Parece que mesmo nas piores condições, os bons sentimentos são a resposta e a principal transgressão. também sentimos afeto por essas mulheres e temos saudade delas. Vamos ver como as meninas enfrentam os soldados que invadiram Litchfield, no último episódio, da quinta temporada, para tomar o local depois da rebelião liderada pelas mulheres negras.
Fontes:
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Almeida Lima, Cecília; Gouveia Moreira, Diego e Costa Calazans, Janaina (2015). Netflix e a manutenção de gêneros televisivos fora do fluxo. Revista Matrizes, 9(2), 237-256. USP. Brasil.
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Castellano, Mayka e Meimaridis, Melina (2016). Netflix, discursos de distinção e os novos modelos de produção televisiva. Revista Comtemporanea. Comunicação e Cultura, 14(2), 193-209. UFBA. Brasil.
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Montoro, Tania Siqueira e Dala Senta, Clarissa Raquel Motter (2015). Orange é o novo gênero: ressignificações e transsignificações do feminino/masculino em formato televisivo para plataforma web. Revista Cultura Midiática, 15, 75-91. UFPB. Brasil.