Linha M: a solidão poética de Patti Smith

Linha M: a solidão poética de Patti Smith

Em Linha M, livro mais recente de Patti Smith, a leitora é transportada para um universo não-linear, reflexivo e, vez ou outra, metalinguístico. Por diversos momentos, a escrita da autora se debruça sobre as próprias auguras da arte de escrever – e traz também preciosas dicas de outras obras a serem lidas. “Escritores e seus processos. Escritores e seus livros. Não posso supor que o leitor conhecerá todos eles, mas afinal será que o leitor me conhece? Será que o leitor deseja isso? Só posso almejar isso, enquanto ofereço meu mundo numa bandeja cheia de ilusões”, elucubra a multifacetada artista.

Sucessor do celebrado Só Garotos, o livro é como uma longa viagem com destino incerto feita por meios terrestres: um convite para que o olhar pouse sobre a beleza da paisagem e não que busque, no horizonte, indícios específicos sobre os rumos do trajeto. Da música à literatura, Patti Smith molda palavras com poética maestria e, em Linha M, mostra ao público a melancolia de uma mulher que está viva, pulsante e criativa ao mesmo tempo em que, enquanto ícone, é memória.

E é memória também por estar aqui, neste mundo, após tantas perdas e transformações:

“Desejamos coisas que não podemos ter. Tentamos conservar certos momentos, sons, sensações. Quero ouvir a voz da minha mãe. Quero vez meus filhos ainda crianças. Mãozinhas pequenas, pés ligeiros. Tudo muda. Garoto crescido, pai morto, filha mais alta que eu, chorando por causa de um sonho ruim. Por favor, fiquem aqui para sempre, digo para as coisas. Não vão embora. Não cresçam.”

Linha M

A angústia do existir está presente nas pequenas coisas, em objetos que guardam também lembranças de outros tempos, e nas fotografias que ilustram a publicação e representam a efemeridade eternizada de todas aquelas experiências que, ainda que hoje se desdobrem em sabedoria, não existem mais. Tiradas pela própria artista (pelo menos a maioria delas), as imagens ampliam a imersão na intimidade que é ali apresentada e trazem, em seus tons cinzas de luzes bruxuleantes, complementos à atmosfera onírica construída pela cantora nesse diário autoconsciente.

Em um passeio solitário, Patti Smith vai ao café que sempre frequenta ao mesmo tempo em que revisita lugares passados e viaja pelo mundo. A obra é um abraço empoeirado dentro de uma sala antiga e é também um buraco na fechadura pelo qual é possível espiar o agora, a vida que acontece o tempo todo, de modo banal, mesmo que as memórias pesem a ponto de doer.

Uma mulher gente como a gente é apresentada, viciada em séries policiais, que larga sanduíches mordidos na própria escrivaninha, procrastina, tem insônia, limpa a própria casa e escuta Fleet Foxes no rádio. Porém, são também reveladas curiosidades que ninguém imaginaria, como o fato de ela ser membro do Continental Drift Club (CDC), um clube independente de geociência.

Em Linha M é possível saber mais sobre a relação de Patti Smith com o marido Fred “Sonic” Smith, falecido em 1994. Pequenas aventuras cotidianas com o guitarrista do MC5 – que foi também um apaixonado por aviação – são relembradas com leveza, como uma viagem para a Guiana Francesa que terminou em um breve interrogatório por parte de militares locais.

O grande amor que sentia por Fred, no entanto, é rememorado com afeto e tristeza: “Meu desejo por ele permeava todas as coisas – meus poemas, minha música, meu coração”. Histórias de infância também são resgatadas, trazendo à mente do leitor, por exemplo, uma pequenina Patti Smith como a única criança da Filadélfia a ter sido registrada, em 1954, com febre escarlate.

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A falta de linearidade de Linha M casa – e provavelmente se relaciona – com a percepção de tempo apresentada pela autora, que afirma que o tempo real não pode ser dividido em seções, como números no mostrador de um relógio. “Se eu escrever sobre o passado enquanto lido simultaneamente com o presente, ainda estou em tempo real?”, questiona, para logo em seguida concluir que possivelmente não exista passado e nem futuro, apenas um perpétuo presente contendo essa “trindade de memória”. Que a gente torce para que, contra o esquecimento e a falta de sensibilidade geral, continuem a ser sempre compartilhadas.

Linha M
Foto de Philip Montgomery para o The New York Times (Reprodução)

Patti Smith

Linha M

Autora: Patti Smith

Companhia das Letras

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Brasiliense, jornalista e especialista em gênero, sexualidade e direitos humanos pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Adora internet, bandas de minas, livros, ideias novas, lugares diferentes e comidas deliciosas. É autora do blog Vulva Revolução e colabora em diversos projetos legais por aí.
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