Outlander 5ª temporada: o estupro como um péssimo recurso narrativo

Outlander 5ª temporada: o estupro como um péssimo recurso narrativo

A 5ª temporada de Outlander é baseada na trama de “A cruz de fogo” e “Um sopro de neve e cinza”, livros escritos por Diana Gabaldon. A autora declarou que os fãs da série ficariam decepcionados com algumas mudanças da adaptação, mas não foi necessariamente o que aconteceu. Uma das maiores críticas dessa temporada é entender o por quê de manter estupros e cenas de violência na trama para a TV.

Atenção: contém spoilers da 5ª temporada de Outlander e gatilhos sobre violência sexual

Costumes do século XVIII aceitos por viajantes dos tempos atuais

O inicio da 5ª temporada de Outlander é marcado finalmente pelo casamento de Roger (Richard Rankin) e Brianna (Sophie Skelton), tido como um “sonho” da garota e feito sob medida de acordo com os costumes da época. Ou seja, o pai dá a mão da filha ao genro e, de alguma forma, disfarça os ciúmes em desaprovação, ou obrigação de Roger para conquistar sua confiança. Nesse caso, o casamento e os costumes ligados à ele podem até serem aceitos com a premissa de que se estão em outro século, mas vários acontecimentos dessa temporada não podem ser considerados normais por conta disso. 

Todavia, por que Brianna acharia normal ter sua mão dada à Roger pelo seu pai como se ela não tivesse nenhum poder de escolha? Ou talvez ela realmente não tenha tido, já que foi pressionada desde o inicio de se casar com Roger para que pudesse ter relações sexuais com ele, como retratado na temporada anterior

Mais uma vez, os saberes médicos de Claire (Caitriona Balfe) são questionados em diversas situações, assim como têm sido anteriormente. A série busca retratar até onde a viajante do tempo está disposta a ir para ajudar e salvar a vida dos que a cercam e dos que a buscam, tentando inclusive fabricar penicilina e fazer uma autópsia sozinha nessa temporada. Um dos pontos altos e certeiros é ver Claire transmitindo seus conhecimentos medicinais para Marsali (Lauren Lyle), que passa a ser sua assistente nos experimentos e práticas médicas.

Claire e Brianna na 5ª temporada de Outlander
Claire e Brianna nos preparativos para o casamento. (Imagem: reprodução)

Outro ponto muito incômodo é o comportamento masculino, principalmente de Jamie (Sam Heughan) e Roger, sempre muito teimosos e tentando se mostrar viris. Roger não é daquele século, não precisa ter crenças e comportamentos tão conservadores e machistas quanto aos de Jamie, embora a época histórica não precise ser obrigatoriamente justificativa para certos atos de teimosia e demonstrações de raiva, como os constantes gritos que ambos dão quando as coisas não caminham de acordo com o que querem. Talvez os produtores pudessem investir um pouco mais nessa masculinidade tóxica na próxima temporada.

Além disso, algumas cenas ao longo dos episódios retratam a capacidade das mulheres para superar certas funções tidas como masculinas, como atirar e inclusive proteger a casa e as crianças, mas as personagens femininas de Outlander parecem não conseguir uma temporada de tranquilidade sem serem vítimas de estupro. 

O incessável uso do estupro como recurso narrativo na 5ª temporada de Outlander

Parece que a 5ª temporada conseguiu se superar no quesito indignação do público crítico feminino. Com recursos narrativos duvidosos, a série parece ignorar completamente a gravidade de um estupro na vida de uma mulher, além de transmitir uma visão deturpada sobre sexo como “cura” e apaziguador de conflitos. Vamos explorar mais esses deslizes a seguir.

Um dos arcos que ganha grande atenção é a busca por Bonnet (Ed Speleers), que fugiu do encarceramento na quarta temporada, após uma explosão. A decisão por tal busca é feita pelos homens que fazem parte da vida de Brianna, seu pai e seu marido, tomados pelo desejo de vingança. No entanto, Bree parece não se mostrar muito interessada em ver Bonnet sofrendo, afinal, ela havia tomado a decisão de declarar a ele que o perdoava pelo o que fez (ato que teve grande influência do seu pai, portanto não parece uma escolha da personagem).

No entanto, o que Brianna não imaginaria é que o estuprador iria usá-la novamente, dessa vez como centro de recuperação e escola de etiqueta. Ao irem atrás de Bonnet, ela é sequestrada por ele, e o personagem ainda revela querer “aprender a amar”, insistindo em dizer que quer ajudá-la a criar Jemmy, criança que ele julga ter sido “feito com amor”. Amor onde? De quem? A criança que nasce fruto de um estupro de repente é declarada pelo próprio estuprador e agressor como fruto do amor entre duas pessoas. Há algo de errado na afirmação, não é?! 

Bonnet e Brianna na 5ª temporada de Outlander
Bonnet e Brianna em cena da 5ª temporada de Outlander. (Imagem: reprodução)

Como se não bastasse ter feito uso do estupro como recurso para o “desenvolvimento” (e aqui com muitas aspas) do caráter de Brianna, que segundo a trama da série “cresceu muito” e é uma “verdadeira sobrevivente” (novamente as aspas para retratar o perigo do estupro como recurso narrativo. É preciso ter cuidado extremo ao afirmar que pode haver alguma vantagem para o caráter da personagem como fruto exclusivo da violência sexual sofrida), agora querem empurrar para o público que, na verdade, Bonnet pode não ser esse monstro estuprador, pois na cabeça dele existia algum tipo de atração entre os dois.

É um enorme desrespeito com a personagem e principalmente com o público, que a produção tenha colocado Brianna novamente numa situação arriscada, podendo ser estuprada a qualquer momento e ainda sendo obrigada a fingir não estar aflita com a presença de Bonnet, chegando a ensiná-lo realmente como se sentar à mesa e a contar a história de Moby Dick para ele.

Depois da enorme agonia, Brianna é resgatada e Bonnet julgado e condenado a morte por afogamento. O interessante é que quem o mata de fato é Bree, sendo inclusive questionada por Roger se havia atirado no agressor por piedade ou para ter certeza de que estaria morto. O episódio acaba com a dúvida no ar, o que é instigante para a narrativa.

Bonnet em cena da 5ª temporada
Bonnet condenado à morte em cena da 5ª temporada de Outlander. (Imagem: reprodução)

Outro acontecimento esquisitíssimo ocorre quando Roger é enforcado, sobrevive e sua experiência é comparada ao estupro que Bree sofreu. É ela, inclusive, quem diz que lutou para “ficar bem” porque tinha marido e filho e implora para que ele faça o mesmo. Ok, sobreviver a um enforcamento é traumatizante e dolorido, mas como comparar isso a dor de um estupro? Um estupro que muitas vezes é tido como paranoia e delírio feminino, algo que remete não só ao ápice da violência de gênero mas também a posição de poder masculina em relação à mulher, uma violência que expõe a fragilidade da vítima, muitas vezes tida como mentirosa e louca. Roger ali era um rebelde, um herói para os outros de seu clã e mais, um sobrevivente. No entanto, uma mulher que sobrevive a um estupro é muitas vezes tida como culpada, suja e provocante.

E é claro que Outlander não poderia acabar sem um novo caso de estupro vivido por uma personagem feminina, já que parece ser o único jeito que encontraram para desenvolvê-las na série, não é?! Na season finale, Claire é sequestrada e brutalmente violentada, numa das piores cenas da história de Outlander. Além de chutes, tapas, socos, Claire é amarrada e estuprada por, no mínimo 3 homens, havendo uma fila atrás deles para indicar o próximo. Acreditamos que, para muitas mulheres, esse foi o estopim para desistir da série.

Falar sobre “sobrevivência” é uma coisa que os produtores e a autora dos livros que baseiam a série aparentemente adoram. Após esse episódio assustador, que talvez não tenha se tornado ainda pior porque Claire estava tendo um delírio com sua vida nos anos 60 e sua família do século XVIII, Jamie a encontra completamente ferida e violentada e a primeira coisa que faz questão de dizer é lembrá-la de que está viva. Ela mesma insiste na ideia de que sobreviveu a tantas coisas, não é um estupro que vai pará-la. O absurdo nisso é a tentativa de mostrar que há algo de positivo no estupro, que o estupro molda o caráter de alguém e que não é nem necessário elaborar o trauma, você já é uma vencedora.

Bree e Claire na 5ª temporada
Bree e Claire em cena da da 5ª temporada de Outlander. (Imagem: reprodução)

Se a ideia da produção sempre foi falar de sobrevivência e convencer o público de que Claire não é invencível, por que não usaram uma tentativa de assassinato ou mesmo a forca para isso? Por que Roger sobrevive a forca, Jamie a uma picada de cobra venenosa e Brianna e Claire a um estupro? E mais, é como se elas não tivessem a chance de lidar com aquilo, não precisam elaborar o que aconteceu, precisam passar por cima de uma vez. Quantas vezes Roger teve flashbacks sobre a forca e quantas vezes Brianna e Claire tiveram? As personagens femininas mal tiveram tempo para pensar sobre os estupros e já precisaram se preparar para outras violências.

Se na série a cena do estupro coletivo é extremamente chocante e absurda, nos livros ela é ainda pior. A forma com que Gabaldon escreve dá um ar de romantização a algo seríssimo, veja um trecho a seguir:

Trecho do sexto livro de Outlander, “Um sopro de neve e cinza”, de Gabaldon. Foto: Michelle Alves

Além disso, há uma cena que está nos livros que foi retirada da trama da adaptação: após a volta para casa, Jamie embebeda Claire para transarem, com a justificativa de estar com medo de que ela engravide de um dos estupradores e então plantar a dúvida sobre quem seria o verdadeiro pai da criança. Ou seja, como se não bastasse ter sido terrivelmente violentada, Claire ainda é estuprada pelo próprio marido num ato egoísta e mesquinho.

É inacreditável a banalização que a escritora faz do estupro. Não há nenhuma empatia ou noção acerca do tema para utilizá-lo como se fosse um ato de violência qualquer. De toda maneira, a cena final de Claire abraçada a James, ambos nus, não nos agrada de forma alguma, já que ela está completamente vulnerável e ele parece ser retratado como um grande herói, o único que pode protegê-la e salvá-la.

A visão deturpada do sexo em Outlander

Além do uso completamente insensível e massante de situações de estupro, a série reproduz a ideia de sexo como “cura” e tal movimento também é feito nos livros. Quando Jamie está nas últimas, fraco e febril, em decorrência de uma picada de cobra peçonhenta, Claire o abraça seminua e logo em seguida ele mostra uma repentina e enorme melhora, como se estivesse sido curado apenas pelo toque da pele nua de sua esposa. Isso também ocorre com Roger, mas talvez num sentido mais romântico, pois quando foi enforcado ele não tirou a imagem de Bree da cabeça.

5ª temporada de Outlander
Claire e Jamie em cena da da 5ª temporada de Outlander. (Imagem: reprodução)

Outra cena que deturpa a intimidade e sexualidade do casal Claire e Jamie ocorre nos preparativos para o casamento de Jocasta (Maria Doyle Kennedy). Claire tenta negociar a bebida do marido e um suposto encontro de Bonnet com Phillip Wylie (Chris Donald), que a beija a força. Jamie aparece quase na mesma hora, como se ele já estivesse esperando que algo acontecesse para “salvá-la”. Os dois discutem, ela chega a dar um tapa em seu rosto mas no minuto seguinte estão transando, como se qualquer decepção que Claire tenha com Jamie seja evaporada após o sexo.

A quase ausente representação indígena e escravocrata na 5ª temporada de Outlander

Diferente da quarta temporada, esta quase não discute a realidade dos indígenas e dos escravos. Os indígenas nem sequer aparecem, são apenas assunto quando Ian (Steven Cree) volta da comunidade dos moicanos para as terras do tio. O jovem é abordado algumas vezes para falar a respeito de como eram os ditos “selvagens” e no começo diz estar desacostumado com as camas. No entanto, Ian fala muito pouco sobre o assunto, embora mantenha alguns ditos costumes como pintar o rosto antes de alguma luta.

É interessante pensar que Ian pode retratar aqui algo como o “bom selvagem”, já que é um homem branco que teve contato com costumes indígenas, logo, “tornou-se um selvagem”, mas não qualquer selvagem, um bom, civilizado, com modos europeus. Mencionamos isso porque Ian reaparece cheio de desconfianças e estranhezas, mas a série não desenvolve o que pode ter feito com que o jovem agisse dessa forma, deixando-nos com a possibilidade de interpretar tais comportamentos como uma consequência de sua estadia na tribo, algo que o “tornou selvagem”.

Outra possível justificativa é a de que algo aconteceu com sua parceira, o que o faz querer viajar no tempo e inclusive pensar em suicídio. Portanto, mais uma vez o relacionamento e o sexo são tidos como a única salvação em Outlander.

Ian em cena da 5ª temporada de "Outlander"
Ian em cena da 5ª temporada de Outlander. (Imagem: reprodução)

Já a respeito dos escravos, o único que realmente aparece é o criado de Jocasta, Ulysses (Colin McFarlane), que revela ter escolhido ficar ao lado de sua senhora mesmo após ela ter assinado sua carta de alforria. Sem dar muitos detalhes sobre a suposta “escolha” de Ulysses, apenas justificando sua permanência simplesmente por se preocupar com Jocasta, a série retrata uma realidade bastante questionável: Ulysses era alforriado mas era tratado como um escravo qualquer na propriedade de Jocasta, optar por ficar teria sido realmente uma escolha?

A crítica principal com relação a essa temporada é, sem dúvidas, o uso do estupro como recurso para desenvolver as personagens femininas, sem poderem ao menos elaborar a violência vivida. Além disso, o questionamento da real necessidade de cenas tão violentas e explícitas de estupro, sem nenhum aviso prévio. Mesmo que os livros tragam cenas horríveis, a produção da série não tinha nenhuma necessidade em seguir tais ideias a risca. A desculpa de que tais tragédias aconteçam apenas por estarem no século XVIII não convence as espectadoras, uma vez que Claire, Brianna e Roger não são do século XVIII e sim do século XX e XXI.

A sexta temporada da série já foi confirmada, mas ainda não tem data para estreia.

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Recomendamos a leitura do texto: Até quando Outlander usará estupro como recurso narrativo?

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Psicóloga, mestranda e pesquisadora na área de gênero e representação feminina. Riot grrrl, amante de terror, sci-fi e quadrinhos, baterista e antifascista.
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