Outlander: 4ª temporada perde o seu brilho

Outlander: 4ª temporada perde o seu brilho

A 4ª temporada de Outlander é baseada em “Drums of Autumn” (“Os tambores do Outono“), da série de livros da escritora norte americana Diana Gabaldon, lançado em 1996. A nova temporada pode ser vista relativamente diferente das anteriores por estar dividida entre o casal Jamie Fraser (Sam Heughan) e Claire Fraser (Caitriona Balfe) e o casal Brianna (Sophie Skelton) e Roger (Richard Renkin). 

Nesta temporada, Jamie e Claire estão na América do Norte, no final da década 1760, e participam ativamente do processo de colonização dos EUA, tendo inclusive uma terra para começarem a construção de um lar. É realmente apaixonante ver o casal tão determinado na construção desse lar, pois o romance de Jamie e Claire sempre foi intenso e sincero, mas a vida não é amor e afeto no século XVIII, principalmente quando se trata de colonização. 

Atenção: contém spoilers da 4ª temporada de Outlander

A representação indígena em Outlander

representação indígena na 4ª temporada de Outlander
Indígenas cercando Ian Fraser (John Bell) na 4ª temporada de Outlander. (Foto: Outlander / reprodução)

Como era temido, os personagens indígenas trazidos nesta 4ª temporada infelizmente são, em sua maioria, representados de forma violenta e com hábitos desumanos: estão sempre munidos e prontos para atirar e matar qualquer um, sempre chegavam imediatamente quando alguém ultrapassava as demarcações de seu território, como se estivessem sempre atentos e sedentos para atacar algum branco invasor. Também colocam fogo em colonizadores e em suas casas e até torturam animalescamente seus prisioneiros. Mesmo que tenham sido interpretados por mais de 100 atores nativos canadenses, os cuidados para não animalizar os índios acabaram deixando a desejar na série.

Portanto, aparentemente, os únicos personagens indígenas que não são vistos como raivosos em Outlander são as curandeiras. Nas aldeias Cherokee e Mohawk que aparecem ao longo da caminhada de Jamie e Claire, a figura das mulheres responsáveis pelos cuidados e curas é capaz até de unir a representação da mulher curandeira do continente europeu, mas no caso das indígenas elas não são consideradas bruxas – como os brancos enxergavam Claire por muito tempo – mas sim mulheres sábias. Dessa maneira, é possível dizer que existe uma ligação quase imediata de Claire com a curandeira Cherokee que cruza seu caminho, ao compartilharem saberes e cuidados.

Curandeira Cherokee e Claire na 4ª temporada de Outlander
Curandeira Cherokee e Claire trocando conhecimentos medicinais na 4ª temporada de Outlander. (Foto: Outlander / reprodução)

Outro perigo na representação indígena em Outlander foi o cativeiro em que Roger foi mantido. Para não explanar demais, o que acontece é que Roger é vendido aos Cherokees e acaba em uma aldeia Mohawk, localizada onde hoje é Nova York. Ao chegar lá, os índios formam um corredor onde ele precisaria chegar até o líder e no percurso seria agredido. A série mostra o corredor como um ritual de passagem para provar que se é digno, mas isso só fica claro em um segundo momento. Portanto, quando Roger tem que ser “aprovado” pela tribo, tudo o que se vê é como os índios são brutais e agressivos. 

A escravidão na 4ª temporada de Outlander

Uma das principais – e talvez única – pontuações diante da situação dos escravos no período colonial é feita por Claire na propriedade da tia de Jamie, Jocasta (Maria Doyle Kennedy). Os Fraser são convidados por Jocasta a morarem ali, onde teriam todo o aparato necessário para se instalarem adequadamente no novo continente, mas Claire insiste que devam continuar a jornada em busca de uma terra que seja deles, porque ela não conseguiria morar em um lugar com escravos, muito menos possuí-los.

O episódio que melhor representa a escravidão foi o segundo da 4ª temporada. Nele, há uma “grandiosa” ação de Claire, ao tentar salvar Rufus  (Jerome Holder) da morte por enforcamento após ter derramado sangue branco. Claire se mostra muito dedicada em ajudar os necessitados, mas no fim das contas, é preciso se atentar à linha tênue que é representar uma característica da personagem ou representar o estereótipo de branca salvadora/complexo de salvadora e julgar os escravos que estavam assistindo seu sofrimento como incapazes de reagir. Mesmo que o ferimento tenha sido tratado, a morte de Rufus é certa e a atitude supostamente salvadora de Claire coloca a propriedade toda em perigo. 

Cena do segundo episódio da 4ª temporada de Outlander
Cena do segundo episódio da 4ª temporada de Outlander. (Foto: Outlander / reprodução)

Além disso, o segundo episódio mostra claramente o medo dos escravos em sofrerem consequências por não obedecerem os patrões, servindo dentro da casa ou fora dela, o que faz com que hesitem em diversas ações, mas também retrata reações como a de Rufus. Porém, a retratação da escravidão foi deixada de lado durante o restante da temporada, que passa a aborda uma relação amigável entre senhor e escravo e não traz nenhuma tentativa de mudança daquela situação partindo dos próprios escravos.  

Sendo uma viajante do tempo, Claire já sabia o que iria encontrar na América do Norte, não só o sonho americano que conta para Jamie mas também toda a matança indígena e sofrimento que os escravos passariam. Em uma temporada em que o foco principal está no chamado Novo Mundo, seria necessário mais ênfase nas críticas acerca da colonização, não só um posicionamento pessoal da personagem principal diante das questões. 

Brianna, inicialmente, também se mostra incomodada com a presença dos escravos na propriedade de Jocasta. Contudo, enquanto seus pais estão atrás de Roger e ela está grávida, a personagem se aproveita dos cuidados de uma escrava, que é mantida dentro de casa para outros serviços que não os braçais. Ao mostrar uma mulher de outro século, que tem consciência das atrocidades da escravidão, aceitando os cuidados de uma escrava com certo conforto, a série comete um erro hediondo numa tentativa de mostrar que existe um coleguismo entre brancos e escravos.

Não existe nada além de submissão naquela relação. Phaedre (Natalie Simpson) não é gentil com Brianna porque é amiga dela, mas sim porque é uma escrava e precisa fazer o que lhe ordenam, caso contrário, irá sofrer consequências horrendas. Dessa maneira, a relação delas é de patroa-criada e as diferenças raciais são anuladas numa tentativa forçada de companheirismo, que vem da ideia de que a maternidade une as mulheres, independente de suas condições sociais.  

Brianna e Phaedre na 4ª temporada. (Foto: Outlander / reprodução)

Brianna: da idealização romântica ao caso de estupro

Atenção: este tópico abordará um caso de estupro representado na série e pode ser gatilho para algumas mulheres

Um dos focos da quarta temporada de Outlander é o casal formado por Brianna e Roger. Ao longo das temporadas anteriores, existia algo de romântico e fofo na construção do casal, mas, nesta temporada, presenciamos algo de possessivo e complicado. Roger tem atitudes explicitamente machistas, como o fato de escolher transar com Brianna só quando ela for completamente “dele”. Ou seja, além de objetificar o ideal de esposa como sendo “sua”, ele ignora todas pautas de liberdade e direitos sexuais femininos ao impor sua vontade e crença à ela. O casal acaba brigando e uma das coisas que a série mais retoma é que eles sempre discutem mas, em teoria, continuam se amando.

Brianna e Roger se divertindo em um festival escocês nos EUA. (Foto: Outlander / reprodução)

É bem complicado romantizar as brigas do casal, uma vez que a socialização feminina pode ser direcionada em aceitar certos comportamentos violentos, sejam físicos ou verbais, como amor ou cuidado. Embora a mãe de Brianna possa ser um grande exemplo feminista, Claire não hesita em largar sua filha para trás quando descobre que seu amado Jamie está vivo na terceira temporada, o que pôde implicar na idealização de amor romântico que Brianna construiu.

Ao longo da 4ª temporada, Brianna decide fazer uma viagem no tempo na tentativa de salvar a vida dos seus pais de um incêndio, sem ver necessidade de comunicar Roger, que descobre sua intenção e a segue, retornando alguns séculos. A saga do reencontro dos personagens gira em torno de alguns episódios, e quando finalmente se encontram, decidem se casar – informalmente – e têm a primeira relação sexual enquanto casal.

No entanto, era a primeira vez de Brianna e ela inclusive questiona se seu desempenho foi satisfatório, o que traz a tona a ideia da personagem feminina preocupada com o prazer exclusivo do parceiro. Como se não bastasse a representação objetificada de Brianna no sexo, a personagem sofre uma descaracterização, uma vez que havia deixado explícita sua vontade de não se casar, mas naquela situação aceita o casamento e a condição de ser esposa de Roger.   

Brianna na 4ª temporada de Outlander
Brianna momentos antes da viagem no tempo. (Foto: Outlander / reprodução)

Após o momento “romântico” do casamento, os dois brigam novamente, e dessa vez Brianna deseja que Roger volte para casa e a deixe fazer o que efetivamente veio fazer na América colonial. Roger, amargurado, a deixa para trás. Naquela mesma noite, acontece o brutal estupro sofrido por Brianna. Ela acaba encontrando o pirata e assassino Stephen Bonnet (Ed Speleers) – e também capitão do navio em que Roger chegou à América e a quem ele estava servindo.

O encontro dos dois acarreta a cena mais tensa, forte e complicada da série. Brianna identifica o anel de compromisso de sua mãe e se oferece para comprá-lo de Bonnet, que prontamente responde que ela deveria merecer a joia. O que acontece a seguir é devastador: Brianna é agredida e estuprada por Bonnet e nenhum dos presentes no estabelecimento se comove ou vai ajudá-la. A espectadora sente impotência diante da violência sexual que a personagem sofre, algo como se fosse uma tentativa de entender como a vítima pode se sentir. Brianna fica completamente abalada com a situação, e é até difícil falar sobre os detalhes que cercam o ato. É definitivamente a cena mais pesada da 4ª temporada.

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Antes que a espectadora imaginasse que o sofrimento de Brianna acabaria por aí, se depara com outra bomba: o estupro resultou em um embrião fecundado. Manter a gravidez advinda de um estupro pode fazer com ela se recorde do fatídico momento quase diariamente. Muitas vezes suas expressões faciais e modos de agir dão a entender que está elaborando a violência e tentando lidar com o que aconteceu com ela, mas a série dá mais ênfase ao modo como ela se mostra irritada ou instável emocionalmente.

Contudo, mesmo que Jamie tente vingar a filha ao agredir Roger, acreditando que ele teria sido o estuprador, acaba dizendo palavras agressivas à Brianna, e em uma carta aconselha a filha a não escolher o caminho da vingança. Bree, então, decide se encontrar com Bonnet, que está preso e foi sentenciado à morte por enforcamento, para perdoá-lo.

No caminho da visita, pode-se perceber a apreensão nos comportamentos e falas de Bree, afinal a própria personagem declara que acreditou que aquele momento seria mais fácil. Alguns jogos de câmera e luz a mostram claramente superior ao prisioneiro, como se estivesse realmente “superado” a violência, mas, ao abordar um tema tão delicado como o estupro, a série poderia ter se esforçado mais ao pensar em como dar continuidade à experiência de Brianna: será que perdoar seu estuprador seria mesmo a melhor forma de elaborar o fato? Será que de fato é possível superar uma violência de tamanho porte? E tão rapidamente?

Brianna grávida na casa de Jocasta na 4ª temporada de Outlander.
Brianna grávida na casa de Jocasta na 4ª temporada de Outlander. (Foto: Outlander / reprodução)

Outlander poderia fazer uso de tal atrocidade para problematizar diversos pontos, como a não culpabilização da vítima, por exemplo, mas acaba utilizando-o apenas como recurso narrativo ao longo da temporada, como se todos os acontecimentos que envolvessem Brianna a partir daquele momento precisassem estar relacionados ao estupro e a personagem se reduzisse a uma vítima de violência sexual. É claro que um estupro mobiliza diversos sentimentos, sensações e reações, mas a impotência de Brianna diante daquela situação pode incomodar: tudo o que ela faz é esperar Roger e torcer para que ele aceite seu filho.

Jamie Fraser e a paternidade na 4ª temporada

Outro acontecimento já esperado pelos fãs da série era o encontro de Jamie Fraser com sua filha. De modo geral, Bree se mostrou contente por estar na presença dos pais e finalmente conhecer o seu pai biológico Alguns pontos desse encontro foram bem trabalhados na 4ª temporada, como quando Jamie resolve ensinar Brianna a atirar, mas ela já sabia, pois Frank a havia ensinado. O entendimento de que Brianna é uma mulher adulta e já havia aprendido muitas coisas com seu pai de criação abala as expectativas de Jamie enquanto pai biológico.

O primeiro encontro de Jamie e Brianna na 4ª temporada de Outlander
O primeiro encontro de Jamie e Brianna na 4ª temporada de Outlander. (Foto: Outlander / reprodução)

Ao longo dos episódios são mostrados outros dois filhos de Jamie, um deles uma menina, cuja mãe relata ter sido abandonada ao ser trocada por “aquela bruxa”, referindo-se à Claire. Sendo assim, outro ponto que a quarta temporada poderia ter abordado é o abandono afetivo parental de Jamie com relação aos seus filhos, uma vez que parece que a razão principal por ele se importar com Brianna é a de ser filha de sua maior e eterna amada. 

O companheirismo de Marsali e Fergus

Um último ponto que merece destaque nessa temporada é o relacionamento de Marsali (Lauren Lyle) e Fergus Fraser (César Domboy) e como o casal se mostra verdadeiramente companheiro. Quando Fergus decide armar um plano de resgate do seu parceiro de luta, Murtagh (Duncan Lacroix), Marsali se propõe ajudá-lo ao invés de dizer que sua ideia era mirabolante e perigosa demais. Ali, a personagem feminina não se pôs na posição de cuidadora do amado ou o colocou em primeiro lugar, mas reforçou sua posição ideológica e se mostrou capaz de lutar a par dele.

Fergus e Marsali em Outlander
Fergus e Marsali em Outlander | Imagem: reprodução

De modo geral, a 4ª temporada de Outlander é envolvente, contudo apresenta grandes problemas de representação que incomodam quando vistos por um olhar crítico. Portanto, esperamos que a 5ª temporada suscite mais ação dos escravos e dos índios, trazendo mais desenvolvimento em suas representações e coerências nos ideais de Jamie – que foi colocado em uma situação complicada no encerramento da temporada.

Além disso, esperamos que Claire trabalhe seu “complexo de salvadora” para não piorar a situação das minorias, como fez no caso de Rufus. Já o relacionamento de Brianna e Roger precisa ser desenvolvido com mais cuidado, pois os pensamentos machistas de Roger devem ser criticados e reformulados pelos roteiristas da série. Não podemos mais aceitar romantizações de relações abusivas. 

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Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Psicóloga, mestranda e pesquisadora na área de gênero e representação feminina. Riot grrrl, amante de terror, sci-fi e quadrinhos, baterista e antifascista.
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