Years and Years: as histórias que contamos para entender o mundo

Years and Years: as histórias que contamos para entender o mundo

Years and Years” é uma produção da BBC One e no Brasil está sendo exibida pela HBO. Nela, o passar dos anos é contado a partir de uma família inglesa, rumo a um futuro próximo e distópico, acompanhado da ascensão ao poder de uma política populista.

Já a frase do título é da personagem Fran Baxter (Sharon Duncan-Brewster), uma contadora de histórias, que quando questionada do porquê de sua profissão após certo estranhamento do personagem Daniel Lyons (Russell Tovey) responde: “As histórias ajudam a entender o mundo”. Por que contamos histórias como essa? Por que assistimos produções como essa?

Fazendo apenas um recorte nesse gênero, lemos e vimos toda violência em “The Handmaid’s Tale” e afirmamos categoricamente que não aceitaremos retrocessos. Em “Westworld” questionamos o que nos faz humanos e o quanto nossas vidas são roteirizadas, repetitivas e mais similares às narrativas dos robôs do que gostaríamos. “Black Mirror” nos provoca (no mínimo) a olhar sobre nossa relação com a tecnologia. E com todas elas surgem mais perguntas: o que está acontecendo com o mundo? Como será no futuro? Haverá futuro? Estamos preparados para ele?

Que mundo é esse?

Years and Years” não se propõe a responder, mas se esmera em instigar. A cada episódio, as telespectadoras são sacudidas com perguntas (em algumas os personagens olham diretamente para nós), que são seguidas da passagem do tempo ao longo de quinze anos.

Esse é o primeiro trunfo da série: ano a ano, vemos o agravamento da crise humanitária no tratamento dos refugiados; golpes de estado; guinadas para extrema direita e esquerda; retrocessos sociais com restrição às liberdades; desrespeito aos direitos fundamentais; embargos econômicos; colapso do sistema financeiro e climático; perseguição à imprensa; fake news; deepfake, precarização do trabalho, substituição dos postos de trabalho por máquinas e pelo uso de inteligência artificial; ufa!, vemos um presente-futuro tão possível quanto provável para nós.

Nesse mundo-espelho, acompanhamos a família Lyons a partir da matriarca Muriel (Anne Reid) e de seus quatro netos: Stephen (Rory Kinnear), Edith (Jessica Hynes), Daniel (Russell Tovey) e Rosie (Ruth Madeley).

Cena de "Years and Years", onde vários personagens olham para a tela de um computador
Cena de “Years and Years”. (Imagem: Matt Squire / HBO)

Os personagens de “Years and Years”

Muriel mora sozinha, é independente (embora já sofra as limitações físicas da idade), dedicada à família e protetora dela, porém crítica e com um humor afiadíssimo. Stephen trabalha no mercado financeiro e é casado com Celeste (T’Nia Miller), uma contadora; juntos tem duas filhas: Bethany (Lydia West) e Ruby (Jade Alleyne). Edith é uma ativista que viaja pelo mundo lutando pelas causas que defende e passa anos longe da família. Daniel trabalha com habitação num campo de refugiados e é casado com Ralph (Dino Fetscher). Sua vida muda completamente quando se apaixona por Viktor Goraya (Max Baldry). Rosie é cadeirante e cria sozinha seus dois filhos Lee (Noah Wride, Blake Woods, Callum Woolford e Adam Little) e Lincoln (Jett Moises, Aaron Ansari e Aiden Li). Esse é o segundo trunfo.

AVISO: Contém spoilers no texto abaixo

Na passagem do tempo, acompanhamos como as mudanças que vão ocorrendo no mundo operam em suas vidas e como eles sobrevivem a elas. Talvez aqui esteja toda beleza da série e o que nos acalenta em meio a transformações tão inquietantes: o destaque às personagens mulheres.

Mesmo que você não se identifique com cada uma elas, verá o choque de gerações e o peso das escolhas quando Bethany é promovida e sua mãe, Celeste, é demitida porque sua profissão é extinta. A personagem ainda vive um incômodo embate com Muriel e sofre duras consequências da crise financeira no seu modo de viver e casamento.

É possível sentir o respeito e o acolhimento às formas de ser quando Viktor é recebido por Muriel em sua família após ter sido denunciado ao governo pelos seus próprios pais e em relação a Lincoln, que gosta de usar roupas e acessórios atribuídos a meninas. Não que todos vivam numa fantasiosa harmonia; há sim entre eles doses generosas de sarcasmo e ironia. Há um acolhimento nucleal, não como uma família de pregação vazia ou bandeira, mas de união, afeto e abertura aos que chegam pelo nascimento ou por afinidade (os famosos “agregados”). Isso pode ser visto na cumplicidade que brota entre Muriel e Celeste e no tratamento que as irmãs Edith e Rosie dão a Viktor.

A série também toca nos desafios de criar e educar filhos quando Bethany, inteligente, competente, uma profissional do seu tempo, entusiasta da integração pessoa-tecnologia, manifesta aos pais seu desejo de ser trans. Semelhantemente, acompanhamos a vida de Rosie, que como tantas mulheres tenta conciliar trabalho, relações afetivas e os conhecidos e infindáveis etcs.

Edith renuncia a estes desafios porque tem outros: concentra toda sua energia no ativismo, ainda que ao custo de viver longe da família. Sua coragem para lutar salta aos olhos até o último episódio, tal como suas reflexões ao pôr em cheque sua ideologia. Junto com Rosie, trava um debate interessante sobre como as limitações físicas dela deixarão de existir nas gerações futuras, “depuradas” pela medicina com tratamentos e manipulação genética.

Vivienne Rock em “Years and Years”

Por fim, o terceiro trunfo da série: Vivienne Rock e todos os sentimentos contraditórios que ela nos desperta. A empresária ingressa na vida política seguindo a cartilha populista descrita em “Como as democracias morrem“: outsider e declarando-se antiestablishment, não respeita as regras do jogo político nem os protocolos, elege a imprensa como inimigo, assume sua ignorância como uma virtude, enfim, Emma Thompson brilha protagonizando o retrocesso.

Emma Thompson em “Years and Years”. (Imagem: HBO / reprodução)

Dela (e delas) partem perturbadoras provocações em “Years and Years“: Vivienne afirma que, na verdade, não ligamos para o que se passa ao nosso redor desde que nossos interesses básicos e locais estejam sendo atendidos (primeiro episódio); Edith diz que mesmo nos eventos trágicos, seguimos nossas vidas como se nada tivesse acontecido (segundo episódio); Rosie conta que quando criança imaginava um futuro e quando ele chegou, não era nada além do que um presente-passado (quinto episódio); enfim, Muriel culpa a todos (e ela mesma) pela inércia e apatia diante de tantas mudanças ao longo dos anos (último episódio). Aqui temos o último trunfo (não, não eram três, eram quatro): nós, espectadoras dessa história contada, mas personagens reais desse mundo e provavelmente inseguros com o porvir.

Emma Thompson deu a deixa: “O texto é absolutamente fantástico, inteligente e assustador. A tensão vai crescendo aos poucos e, de repente, coisas terríveis começam a acontecer e você percebe como todos chegaram até aqui e como é difícil parar um processo desses depois de deslanchado. Espero que a série realmente provoque o debate, porque essa é uma discussão que precisamos ter agora.”

Ao final dos seis episódios da série “Years and Years” o debate seguirá à flor da pele, infelizmente não o da música (nem suas versões), retomando ao questionamento do porquê estamos contando e vendo histórias como essa, operando como num ciclo. Virtuoso ou vicioso. A ver.  


Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.

Escrito por:

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Nativa do Paraná, atualmente cultivada no Rio de Janeiro. Adubada por livros, séries, música brasileira e outras mulheres.
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