Os Testamentos: uma resposta às perguntas de “O Conto da Aia”

Os Testamentos: uma resposta às perguntas de “O Conto da Aia”

Na década de 80, a canadense Margaret Atwood escreveu O Conto da Aia. Não muito tempo depois, o romance seria também publicado no Brasil. Contudo, foi somente com a adaptação para a série homônima, The Handmaid’s Tale, que a história conquistaria as brasileiras. Apesar disso, o enredo foi amplamente analisado fora do Brasil desde sua publicação, sobretudo por críticas feministas, que viam na narrativa de Offred uma análise das condições e femininas na história. E quase 30 anos depois, Os Testamentos, sua continuação, é anunciada. A obra foi publicado no Brasil pela editora Rocco.

Quando a notícia de que Atwood estaria escrevendo uma continuação foi lançada, a expectativa era grande. Afinal, o desfecho de O Conto da Aia é bastante aberto e deixa questionamentos para os fãs dessa distopia. Teria Offred se salvado e fugido de Gilead com sua filha? O que teria se passado entre os eventos finais e a Conferência realizada 200 anos depois?

De “O Conto da Aia” a “Os Testamentos”: o esperado desfecho

Não é coincidência, entretanto, que Os Testamentos tenha vindo logo após o sucesso da série. E em alguns momentos do livro, é possível se perguntar se o apelo comercial não venceu a crítica por trás da narrativa. Isto não deve ser encarado como uma crítica à história por si, mas às suas razões. Afinal, a distopia de Margaret Atwood desperta uma indignação para com a realidade e as possibilidades futuras desde seu lançamento.

E para aqueles que se apaixonaram pela capacidade crítica da autora, o que encontram é uma narrativa completamente diferente e que, em muitos momentos, parece escrita por outra pessoa. Esse aspecto, por óbvio, é esperado depois de 30 anos, porque ninguém permanece igual. Desde então, a própria Atwood variou seu estilo. Contudo, o que parece é uma continuação que ganha de seu antecessor em ritmo, mas perde em força – e parece, inclusive, ter sido escrita com preguiça para sanar o apelo público.

Enfim, como a própria Atwood revela, em seus agradecimentos, o livro é uma resposta a todas as perguntas realizadas após a publicação de O Conto da Aia. E traz um desfecho mais redondo para aqueles que buscam uma resposta fechada.

Os Testamentos, Margaret Atwood
Ilustração: Nathalie Lees / The Guardian (reprodução)

Os Testamentos: 3 mulheres conectadas por Gilead

Diferentemente de O Conto da Aia, que era narrado unicamente por Offred, com exceção de seu epílogo, Os Testamentos é narrado sob 3 perspectivas: Daisy, uma jovem canadense, Agnes, uma jovem de Gilead, e Tia Lydia. Embora pareçam três histórias desconexas, é possível presumir, desde cedo, o que as conectará futuramente, inclusive nos detalhes em torno desta reunião.

Daisy: o ponto de comparação entre liberdade do mundo Ocidental e a repressão de Gilead

Os Testamentos, então, apresenta as leitoras a Daisy, uma adolescente de 16 anos, que conhece a história de Gilead apenas por seus estudos escolares. Ela convive com as notícias sobre os refugiados e frequenta passeatas em prol da liberdade. Cercada por símbolos de resistência e de apoio ao regime teocrático do país vizinho, por críticos e defensores, como as famosas Pérolas, ela não achava que estaria tão perto de ser envolvida nas atrocidades de Gilead.

Um ataque, todavia, muda o curso de sua história. Daisy descobre fatos do seu passado que podem alterar seu posicionamento e levá-la a ações extremas para combater ameaças maiores.

Agnes: a protegida, a prometida, o futuro de Gilead

Agnes já era uma personagem de O Conto da Aia e retorna, desse modo, em Os Testamentos. Filha de Offred (possivelmente nomeada June, embora não haja essa confirmação nos livros), Agnes fora tomada de sua mãe na rota de fuga para o Canadá e adotada por um comandante e sua esposa. Agora, então, ela pode contar sua versão da história. Sua narrativa se inicia aos 5/6 anos e ela cresce ouvindo a história de que sua mãe a teria resgatado de um castelo, mas descobre, aos poucos, que sua história é bastante diferente.

Após uma tragédia, o conto de fadas de Agnes começa a desmoronar. A respeitada filha de um comandante com três marthas torna-se uma vergonha. E conforme os anos passam, o casamento parece ser a melhor saída para sua família. No entanto, o terror experimentado na violência de Gilead causa em Agnes e sua amiga Becka a repulsa pela ideia, levando-as a considerar fins extremos.

Tia Lydia: da antagonista à heroína

Já Tia Lydia revela, em Os Testamentos, uma faceta nunca explorada em O Conto da Aia. A antagonista do primeiro livro, revela suas ambições, seus medos e também sua coragem. E conduz uma história que pode levar à manutenção ou ao fim do regime.

A antiga juíza de família é capturada logo após o golpe de Gilead e reunida junto a várias mulheres. Categorizadas por suas funções, sofrem torturas diversas em um processo de seleção: aquelas que são dignas da morte e aquelas que são dignas de Gilead. O processo parece corromper a mulher até transformá-la naquela que fundara um sistema de normas degradantes. Por trás da carrasca, entretanto, parece também haver um espírito de revolução. E seus testamentos podem ser sua ruína – mas também a de Gilead.

Margaret Atwood com o exemplar de "Os Testamentos"
Margaret Atwood com o exemplar de “Os Testamentos”. Foto: reprodução

As outras mulheres de Gilead

É interessante que Os Testamentos analise outras personagens e não tenha apenas o foco nas aias. Na continuação, é possível entender melhor a política existente por trás da organização das tias. É possível compreender melhor o processo de casamento das jovens de Gilead. Mas a história ainda peca em pouco explorar as facetas menos extraordinárias de Gilead. Ou seja, a grande camada populacional.

Onde estão as econoesposas, apenas citadas sempre como um pano de fundo de males maiores. Ou as marthas, empregadas que parecem não ter expressão senão uma falsa felicidade de cumprir seus deveres para com os lares de outros. Atwood, novamente, não explora muito do panorama de Gilead e o faz menos que antes. O ponto alto, sobe esse aspecto, portanto, talvez seja a introdução de uma nova categoria: as Pérolas. Mulheres de Gilead são enviadas ao Canadá para conquistar novos adeptos, mas subestimadas. E tal qual na realidade, a pouca consideração do poder feminino pode ser uma das melhores formas de resistência e subversão.

Outro aspecto que precisa ser comentado é o fato de que algumas personagens são introduzidas apenas para serem sacrificadas em prol das protagonistas. E a que mais comove é a personagem de Becka. A menina é a que sofre os piores tipos de violência, mas acaba sentenciada por não ser uma personagem com laços sanguíneos relevantes para o enredo.

Leia também:
>> Prólogo, Ato e Epílogo: a materialidade da resistência por Fernanda Montenegro
>> Octavia Butler: o que seria da ficção científica sem o seu legado?
>> 8 livros para mergulhar no melhor do horror contemporâneo

Uma boa continuação para “O Conto da Aia”?

Os Testamentos, Margaret Atwood - resenha
Ilustração: Nathalie Lees / The Guardian (reprodução)

Como ressaltado anteriormente, é difícil analisar Os Testamentos sem o peso de O Conto da Aia. Em questão de dinâmica, o livro entretém mais. O Conto da Aia possui uma escrita maçante e, embora tenha uma reflexão importante, pode ser uma leitura demorada. Os Testamentos, por sua vez, flui melhor. Dá interesse saber o que acontecerá com cada personagem, apesar da previsibilidade. O tom mais jovem, considerando-se que é narrado por, pelo menos, duas adolescentes, torna mais palatável a leitura. Contudo, não consegue ter a mesma carga crítica que o livro anterior, tampouco seu tom ácido. É um livro de respostas, de fato.

Apesar da leitura incrível, o que não se justifica é o desinteresse em concluir a história de forma mais memorável. O desfecho é rápido demais, fácil demais. Quando a leitora espera que algo acontecerá ali, não acontece. É quase como se a autora tivesse se esquecido, propositalmente, de colocar uma resistência. O pouco que há é vencido em meio parágrafo, o que contrasta com o final amplo e agoniante de O Conto da Aia. Parece uma resposta do gênero “e viveram felizes para sempre”, com direito a breves menções finais sobre as personagens anteriores do livro.

Mesmo o epílogo, que é novamente escrito, não contém o teor ácido que se espera. Uma mulher surge para criticar o homem que ridiculariza a história das mulheres, mas é apenas uma voz de meia página. Claro, esta pode ter sido a intenção da autora: mostrar aspectos da realidade feminina, ignorada e substituída por vozes masculinas que as ridicularizam. Em um conjunto, todavia, é difícil apenas defender que tenha tudo sido crítica.

“Os Testamentos” e a violência estrutural contra a mulher

Apesar de tudo isso, é uma história que, novamente, assusta. Trata de temas que chocam, como a pedofilia, o estupro e o suicídio. Revela que a violência contra a mulher não é um problema isolado, mas uma questão cultural que adquire diferentes modos de expressão e deve ser combatida em sua raiz. Tem um quê de “por que não foi diferente para algumas personagens?”. E responde a várias das pontas soltas de O Conto da Aia. Os Testamentos, enfim, deve ser lido com essa concepção: a de que não é uma história que pretende fazer história ou chocar pela crítica, mas dar ao público o que ele pedia.


Os Testamentos

Margaret Atwood

448 páginas

Editora Rocco

Se interessou pelo livro? COMPRE AQUI!

O Delirium Nerd é integrante do programa de associados da AmazonComprando através do link acima, ganhamos uma pequena comissão e você ainda ajuda a manter o site no ar, além de ganhar nossa eterna gratidão por apoiar o nosso trabalho.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
Veja todos os textos
Follow Me :