Ao se debruçar sobre o Brasil, o dramaturgo e autor de novelas Dias Gomes escreveu “Roque Santeiro”, uma peça de teatro sobre o perigo de cultuarmos mitos. Nela, o personagem homônimo é elevado ao caráter de herói, mas ao longo da história descobrimos que não é bem assim. Dias Gomes sabia do que estava falando. De Roberto Carlos ao presidente Bolsonaro, o Brasil tem uma relação conflituosa com seus mitos. Somos um país que gosta de eleger um mito, seja na política ou nas artes, e viver naquela única narrativa. Uma narrativa que nos cega e impede de enxergar o que existe para além do muro de culto ao mito.
Fernanda Montenegro é um maiores mitos brasileiros no mundo das artes. A sensação que temos é de que ela sempre foi um monstro sagrado da atuação, acenando para nós do Panteão dos Deuses do Teatro. Quando eu nasci, ela já era Fernandona. Quando você nasceu, é muito provável que ela também já fosse. Dessa forma, não sabemos o caminho percorrido pela atriz em busca de sua vocação: atuar. Como ela chegou lá? De onde Fernandona veio? Essas e outras perguntas podem ser respondidas com sua autobiografia, “Prólogo, Ato e Epílogo“, lançada neste ano pela Companhia das Letras.
Prólogo: os 90 anos na esfera pública de Fernanda Montenegro
No dia do lançamento de seu livro em São Paulo, Fernandona estava no Teatro Municipal para compartilhar com o público um pouco do processo de elaboração de suas memórias, bem como ler alguns trechos da obra.
Quando cheguei para o evento, percebi uma fila gigantesca esperando para vê-la. Tinha gente esperando para vê-la desde às 06h da manhã. Como uma atriz de 90 anos pode mobilizar tanto as pessoas, eu me perguntava. Eu via pessoas lendo o livro dela na fila. Aquilo me tocou muito, especialmente porque sou muito fã de Nathalia Timberg, contemporânea de Fernanda, alguém com quem ela trabalhou durante uma vida toda. Não percebo a mesma mobilização das pessoas em relação a Nathalia, e esse fenômeno me intriga muito.
A explicação que encontro para esse fenômeno curioso é a maneira como Fernandona conduz sua carreira. Ao contrário de Nathalia, a carreira de Montenegro é pública. Ambas são famosas, mas há uma diferença bem gritante: uma delas entende a carreira como um grande farol, que ilumina as memórias da nossa cultura, de quem somos.
O ano de 2018 foi o esboço de esse jeito de conduzir a carreira se tornar realidade. Fernanda lançou “Itinerário Fotobiográfico“, livro que conta sua vida e a de seus colegas por meio de fotografias. Fernandona rodou o Brasil promovendo esse livro. Nessa época, seu futuro de memórias ainda se chamava “Meus Papéis”, e ninguém sabia se seria lançado, já que ela havia lançado “Itinerário Fotobiográfico”. Para quê outro livro, não é mesmo?
No entanto, na minha opinião, Fernanda precisava de outro livro. À medida que ela ia se aproximando dos 90 anos, a urgência de escrever suas memórias se tornou mais latente. Bolsonaro foi eleito e começou o desmonte da cultura. Era preciso materializar a importância do teatro brasileiro, dessa vez na forma de palavras.
Dessa forma, chegamos em 2019 e o caldo engrossou. Fernanda foi chamada de sórdida por Roberto Alvim, diretor da Funarte, ao passo que seu corpo servia para simbolizar a bruxaria e a queima de livros. Ela seguiu em frente, como é se de esperar de uma mulher que já se salvou de um atentado na época da ditadura militar.
Sua fotografia na revista Quatro Cinco Um é um manifesto de que seu corpo é político e público. Ao se colocar naquela fogueira, cercada por livros, Fernanda Montenegro estava mostrando que sua trajetória, antes de ser particular, é pública, porque é atravessada pela história do Brasil e da arte neste país.
“Prólogo, Ato e Epílogo” não é apenas um livro de memórias. Ele é o símbolo de uma geração que quase não existe mais. Além de Nathalia Timberg, sobraram poucos. Enquanto escrevia suas memórias, Bibi Ferreira e Ruth de Souza nos deixaram. Logo depois foi a vez de Antunes Filho. Fernandona teve que apertar a caneta e editar mais rápido para poder registrar o que eles não puderam ou quiseram.
Ato: a memória daqueles que não puderam ou não quiseram contar
Ler “Prólogo, Ato e Epílogo” é um passeio emocionante pela vida, mas principalmente por aqueles que fizeram Fernanda Montenegro quem ela é hoje. O livro pode não parecer tão interessante se você está procurando os bafões da época, pois o objetivo dele é oferecer um repertório à leitora sobre o que foi o teatro no Brasil do século XX.
Por isso mesmo o tom do livro chega a ser quase didático, com a autora parando a história para nos explicar quem é quem. Para quem conhece teatro, como eu, a fórmula pode parecer batida, mas dá para entender por que ela fez isso: Fernandona está interessada em apontar quem é quem no intricado jogo do teatro e como devemos cultivar a memória deles.
Particularmente, já li muitos livros acadêmicos sobre teatro, mas nenhum deles tem a prosa fluida que Fernanda nos apresenta. É muito gostoso ir acompanhando suas peripécias na Rádio MEC (Rádio do Ministério da Cultura), quando ela começou a carreira ou quando ela começou a trabalhar com aqueles que seriam monstros sagrados do teatro brasileiro como Henriette Morineau.
Talvez a fluidez se dê porque o livro é fruto de 14 entrevistas que Fernanda concedeu à jornalista Marta Góes. Foi um ano inteiro gravando e criando um repertório interessante, que seria editado pela própria Fernanda depois. “Prólogo, Ato e Epílogo” tem os elementos de um bom melodrama, com a maestria de quem os interpretou durante uma vida.
Fernandona nos conta em seu livro que em Campinho, subúrbio carioca onde morou, havia uma igreja. Foi lá que ela atuou pela primeira vez em uma peça de teatro, Os Dois Sargentos, aos oito anos. Do primeiro contato com o palco, ela guarda a seguinte sensação:
“Guardei para sempre na lembrança a sensação de levitar, envolvida numa luz cor-de-rosa e eu me sentindo fora de mim. Mas nem sequer suspeitei de que, um dia, aquele mistério seria o meu ofício. A minha vida.” (p. 35)
Antes de estrear no teatro de verdade, Montenegro passou pela Rádio MEC. Foi atriz radiofônica, além de ter apresentado diversos programas de literatura na emissora. Ela conta que foi um período feliz de sua vida, no qual pôde se aprofundar nos grandes escritores do Brasil e do mundo.
Além disso, a Rádio MEC também oferecia aulas de português e declamação. Os apresentadores e atores eram preparados antes, para que entendessem o que iam fazer. Esse período na rádio foi muito importante para a atriz enquanto formação, pois, ao contrário de suas contemporâneas, que iam estudar na Europa, Fernanda não teve a mesma oportunidade.
Inclusive, acho que é sua origem é outro fator que nos faz amá-la tanto. Fernanda veio dos subúrbios cariocas e é neta de imigrantes sardos e portugueses. A impressão que temos ao ler “Prólogo, Ato e Epílogo” é de que ela aprendeu o ofício na prática, refinando sua arte no dia a dia. E tudo começou com a formação na Rádio MEC.
Não foi à toa que Nathalia Timberg disse sobre ela: “Ela é uma atriz brasileira, com raízes brasileiras.” Fernanda Montenegro estudou mais tarde com a nata da vanguarda europeia de teatro, mas sempre tentando adaptar os métodos à nossa realidade. Uma atriz que entendia que não adiantava nada uma roupagem europeia no teatro, afinal estamos no Brasil.
“Prólogo, Ato e Epílogo” tenta resgatar a memória daqueles que não tiveram a mesma voz que ela para registrar o que viveram. Ela sabe do peso que seu nome tem, e por isso mesmo fez questão de trazer para o livro figuras que foram ímpares em sua formação enquanto atriz.
Muitas dessas figuras trazidas por Fernandona eram mulheres. Nos anos 1940 e 1950, era muito comum que atrizes não se dignassem apenas a atuar. Elas fundavam as próprias companhias e erguiam teatros. Uma empreitada difícil, mas que nos proporcionou todo o legado que temos hoje.
Dulcina de Moraes, atriz e educadora, foi uma dessas mulheres. Graças a ela que a carteirinha da Segurança Pública, documento que as atrizes tinham que portar na rua para poder andar à noite, foi extinta. Junto com o marido Odilon Azevedo, fundou a própria companhia e chamou Oduvaldo Vianna (padrinho de Bibi Ferreira, pois tudo no teatro se entrelaça) para dirigi-la. Dulcina trouxe o nosso falar para o teatro, que na época em que começou era dominado por português. Aposentou os painéis pintados e introduziu cenários construídos.
Outro nome importante da época é o de Henriette Morineau. O casal Torres trabalhou com a lendária Madame, como era chamada nos bastidores, na companhia dela, Os Artistas Unidos. Morineau era francesa e veio morar no Brasil durante os anos 30. Madame era muito rígida, um rigor que, segundo a autora do livro, lhe deu a percepção de que fazia parte de uma profissão ritualizada. Primeiro ator, segundo ator, marcações, para tudo havia uma estrutura.
Epílogo: como a memória se entrelaça com o presente?
O que o passado pode nos dizer sobre o presente? O que tantas personalidades, falecidas há tantos anos, podem nos apontar em 2019, um século depois da epopeia teatral sobre a qual Fernanda nos conta? Engana-se quem acredita que o passado recontado por Fernanda está lá atrás. Ele está aqui conosco, na dificuldade de conseguir incentivos para a cultura, nos cortes que a cultura sofre cada vez que um governo autoritário assola o país. “Prólogo, Ato e Epílogo” é sobre como a arte é um farol de resistência nos mais diversos momentos do país.
Fernanda Montenegro viveu muito tempo endividada com o Banco Nacional. Ela e o marido Fernando Torres tomaram um empréstimo em nome do Teatro dos Sete, companhia na qual figuravam o casal, Ítalo Rossi, Sérgio Britto e Gianni Ratto. Foi uma jogada muito arriscada, uma vez que não havia garantia nenhuma de como eles iriam pagar. Porém, era a única coisa que podia ser feita:
“Hoje sabemos na pele e na ponta do lápis que nenhuma produção teatral é segura. Não importa se é alternativa, contestadora, careta. Cada um tem o direito de montar o que prefere, mas deve estar ciente de que do ponto de vista econômico corre o risco de morrer na praia.
Mesmo quando se salvar artisticamente. E naquele momento só poderíamos seguir se um banco nos acudisse. Sentíamos medo, é claro. Ninguém faz teatro sem medo, ainda que o faça na extrema coragem.” (p. 145)
A atriz também conta que o Grande Teatro Tupi, ou seja, a televisão, a sustentava naquela época. Em 2019, ainda é impossível viver única e exclusivamente de teatro. Em entrevista, a atriz Suely Franco contou que é a televisão que a ajuda a pagar contas e que lhe dá suporte para que ela se envolva em projetos teatrais. Não é de hoje que a aposta mais segura ainda é a televisão, ainda que muitas questões tenham mudado. O ator de hoje ganha por obra, não há mais salário fixo.
As dívidas também fizeram parte da vida de um dos melhores amigos de Fernanda, Sérgio Britto. Durante os anos 1980, o ator fundou o Teatro dos Quatro, empreitada teatral no Shopping da Gávea. Os sócios investiram todo o dinheiro que tinham e deviam muito ao banco. Ao ver o tremendo sucesso da peça teatral “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant” (com a própria Fernandona no elenco!), a Shell decidir patrocinar o projeto dali em diante. Só assim o Teatro dos Quatro pôde respirar aliviado.
Dessa forma, podemos perceber como, desde sempre, os artistas ressignificam a palavra resistência. Não é fácil ser artista no Brasil. Nunca foi. Em 1953, o ator Procópio Ferreira já dizia que era preciso sacrificar tudo para ser ator neste país. Infelizmente, ele estava certo. Na juventude de Fernanda Montenegro, já era um sacrifício enorme para se conseguir qualquer auxílio do governo em termos de cultura. Parece até meio surpreendente pensar que existiram companhias teatrais estatais, como a Companhia Dramática Nacional e a Comédia Brasileira.
Hoje, em 2019, nem precisamos olhar para o lado para ver como está ainda mais difícil. A cultura foi o primeiro ataque do atual governo. Não ter representatividade não hétero e não branca e emburrecer a população estão na ordem do dia.
Porém, apesar de tudo, nós vamos resistir. Nós sempre resistimos. Acho que é a mensagem que Fernanda Montenegro quer deixar ao compartilhar conosco suas memórias. Em todos os momentos de crise, a arte, mesmo dilacerada, foi um farol. Em 2019, não poderia ser diferente. Foi um ano incrível para o cinema nacional, e a arte segue aos trancos e barrancos.
Fernanda Montenegro já conversou com militares, junto com Cacilda Becker, para impedir as prisões que aconteciam nos teatros. Ela também sofreu um quase atentado: uma bala atravessou o quarto onde ela estava. Mas Fernandona continua conosco. Suas memórias são a materialidade da resistência da arte, mas também de ser mulher.
Prólogo, Ato e Epílogo
Fernanda Montenegro e a colaboração de Marta Góes
Companhia das Letras
392 páginas
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Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.