Infâmia: a lesbianidade no cinema em tempos de censura

Infâmia: a lesbianidade no cinema em tempos de censura

Em 1961, “Infâmia” (The Children’s Hour, no título original) chegava aos cinemas. Dirigido por William Wyler e estrelado por Audrey Hepburn e Shirley MacLaine, o filme é uma adaptação da peça de Lillian Hellman e uma das primeiras grandes produções hollywoodianas a trazer uma protagonista lésbica.

A trama acompanha Karen (Hepburn) e Martha (MacLaine), professoras e proprietárias de um colégio interno para meninas que têm suas vidas arruinadas quando uma de suas alunas as acusa de manter uma relação homossexual, o que leva os pais das crianças a retirá-las do internato. Embora a acusação fosse falsa, os ciúmes de Martha em relação a Karen fica evidente já nos primeiros minutos de filme — Karen tem um noivo, o doutor Joe Cardin, interpretado por James Garner. Ao final do filme, Martha confessa seu amor pela amiga.

Audrey Hepburn, uma das maiores figuras do star system e tão comumente lembrada pelos papéis de mocinha em comédias românticas hollywoodianas, em “Infâmia” foge à sua personagem habitual. Shirley MacLaine, por sua vez, entrega uma atuação tão potente que lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro, na categoria Melhor Atriz em Filme Dramático.

Karen (Audrey Hepburn) e Martha (Shirley MacLaine) em cena de “Infâmia” (1961)
Karen (Audrey Hepburn) e Martha (Shirley MacLaine) em cena de “Infâmia” (1961). Imagem: reprodução

Na época de realização do longa, o cinema hollywoodiano ainda estava sob o jugo do Código Hays, um código de censura que vigorou entre as décadas de 30 e 60 e proibia, entre outras coisas, “a perversão sexual ou qualquer inferência a isso”. Por décadas, atores e cineastas, mesmo homossexuais, renderam-se à heteronormatividade em seus trabalhos, receosos da intervenção do Código.

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“Infâmia” foi feito de forma independente, tendo o próprio Wyler como produtor, em associação com a United Artists (produtora e distribuidora fundada em 1919 por Charlie Chaplin, Douglas Fairbanks, Mary Pickford e D. W. Griffith). O projeto foi levado adiante apesar do risco de que não recebesse o selo de aprovação do Código de Produção, o que comprometeria seu processo de distribuição e exibição, já que o selo era obrigatório para exibição em salas de cinema.

Naquele ano, porém, os estúdios pressionavam a Associação de Cinema da América (MPAA) a abrandar as restrições impostas e, após uma revisão, passou a ser permitida a “representação da homossexualidade e outras aberrações sexuais [sic] quando tratadas com cuidado, discrição e prudência”.

Isso possibilitou que “Infâmia” fosse lançado com o selo, tornando-se o primeiro filme a escapar à censura à representação da homossexualidade desde a implantação do Código Hays, trinta anos antes, e apesar de as mudanças implantadas serem ainda muito brandas e pouco progressistas.

Abordagem progressista ou representatividade falha em “Infâmia”?

Eu te amei do modo como eles disseram”: é assim que Martha caracteriza o sentimento que nutre pela amiga ao confessá-lo a ela. Em seu relato cada vez mais desesperado, ela sequer consegue nomear o que aquilo a torna: uma mulher lésbica.

Como quem internalizou todo o estigma e ostracismo direcionado às pessoas homossexuais naqueles tempos — e que ela própria experimentou, após a disseminação do boato —, Martha se sente culpada, acreditando que Mary Tilford, a garota que fez as acusações, talvez tenha encontrado “a mentira com um pouco de verdade” e afirmando sentir-se “tão doente e suja” que não consegue mais suportar.

Cena do filme Infâmia
Martha confessa seus sentimentos a Karen, que tenta consolá-la. Imagem: reprodução

Logo após sua confissão, a verdade vem à tona: a Sra. Tilford, avó de Mary e responsável por alertar os pais das outras ex-alunas do colégio, descobre que tudo não passava de uma mentira. Ela procura Karen e Martha para se retratar, oferecendo uma indenização, um pedido público de desculpas e o que mais puder fazer. 

Para Martha, porém, a retratação não é um consolo. O que a atormentava agora era menos a mentira e mais a realidade de seus sentimentos pela amiga, ainda que a postura de Karen em relação a ela não tivesse mudado em nada. Karen chega a comentar seus planos de recomeçar em outro lugar, salientando que agora conseguirão emprego, e convidando-a a acompanhá-la. 

O que acontece ao final do filme é uma questão delicada no que diz respeito à representação da lesbianidade no cinema: Martha comete suicídio. Mas é necessário cautela antes de lançar “Infâmia” ao antro de filmes que falham em trazer qualquer tipo de representatividade e reservam destinos trágicos aos seus personagens homossexuais. 

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Em primeiro lugar, é preciso considerar o contexto da época de produção do filme. Shirley MacLaine, décadas mais tarde, contou que o diretor cortou da versão final quaisquer cenas que pudessem ser interpretadas como sugestão de que as personagens fossem amantes, como uma em que Martha penteia o cabelo de Karen. “Não houve muito contato físico, acho que ele ficou com medo”, afirmou a atriz. 

Cena do filme Infâmia
A Sra. Tilford procura Karen e Martha em uma tentativa de retratação. Imagem: reprodução

O Código, mesmo após revisto, era bastante claro ao tratar a homossexualidade como “aberração sexual” e em sua recomendação de que esse tipo de tema fosse tratado com “cuidado, discrição e prudência”. O próprio fato de os termos “homossexualidade” ou “lesbinidade” não serem mencionados em momento algum do filme é apontado por alguns autores como parte do cuidado tomado pelo diretor para garantir o lançamento.

Dessa forma, não seria possível que as personagens pudessem ter um final feliz como um casal — até porque não há qualquer indício de que Karen retribuísse o sentimento ou tivesse interesse físico ou romântico por Martha. 

Ao mesmo tempo, a maneira como Martha foi tratada pela comunidade em que vivia, e pela sociedade como um todo, não dava a ela qualquer possibilidade de naturalizar o que sentia. Seria improvável que ela conseguisse viver em paz com Karen, após a retratação pública da Sra. Tilford, estando ciente de que era, de fato, aquilo pelo que a condenaram tão veemente. 

A questão que se faz é se haveria alguma outra resolução possível e coerente para Martha, uma que não reforçasse o destino trágico de personagens lésbicas em narrativas cinematográficas e passasse uma imagem mais afirmativa, esperançosa ou mesmo inspiradora para mulheres lésbicas.

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Karen (Audrey Hepburn) em Infâmia
Karen (Audrey Hepburn) ao encontrar o corpo da amiga. Imagem: reprodução

Tamsin Wilton, no livro Immortal, Invisible: Lesbians and the Moving Image (1995), comenta: “[…] precisamente as ‘qualidades’ negativas atribuídas à lesbianidade na cultura heterossexual foram externalizadas como obstáculos ao romance nas narrativas fílmicas. As fontes de opressão, alguém poderia argumentar, foram usadas como barreiras simbólicas ao desejo das lésbicas e normalmente não foram superadas através de modelos de encerramento [do conflito; a resolução]. O romance lésbico, então, fora derrotado por problemas grandes demais para serem resolvidos em termos narrativos”.

Em A Wonderful Heart: The Films of William Wyler (2013), Neil Sinyard afirma: “Alguém dificilmente poderia argumentar que, neste filme, a homossexualidade está ‘relacionada à violência, ao crime e à vergonha’, etc [ele cita a crìtica de Harry Benshoff e Sean Griffin no livro America on Film]. Pelo contrário, a relação entre Karen e Martha é a mais complacente no filme. O que se passa como uma resposta ‘normal’ ao relacionamento delas é o que é visto inequivocamente como mau, intolerante e cruel. E se termina tragicamente, deve-se lembrar que mesmo E. M. Forster confessou a impossibilidade de escrever um final feliz para seu romance excessivamente homossexual, Maurice (que, significativamente, ele se recusou a permitir que fosse publicado antes de sua morte, em 1970). O clima social de moralidade e [in]tolerância da época, ele pensou, não encorajava tamanho otimismo”.

Alguns autores, assim, interpretam o suicídio de Martha como reflexo de um pessimismo quase inevitável, considerando-se o contexto social da época de produção do filme. Há até quem o interprete como uma crítica à sociedade homofóbica da época, no sentido de expor a estigmatização social da homossexualidade e o consequente impacto sobre a vida de uma pessoa homossexual.

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Martha em cena de “Infâmia” (1961).
Martha em cena de “Infâmia” (1961). Imagem: reprodução

Outros, ainda assim, tratam o destino da personagem como uma manifestação e um sintoma dessa mesma sociedade. Afinal, na heterossexual-compulsória narrativa dominante, qualquer “transgressão” demanda algum tipo de recuperação ou resolução que, ao final do filme, reordene os fatos (e personagens) de acordo com a perspectiva social dominante. Em “Infâmia”, essa “reordenação” se dá pela eliminação da personagem lésbica.

Aspectos de uma representação positiva

Vale salientar que Martha não é uma coadjuvante ou uma personagem menor de núcleo secundário, mas uma protagonista, tornando “Infâmia” um dos primeiros filmes da história a explicitamente trazer uma protagonista lésbica. E, ao contrário do que era costumeiro nos poucos filmes que contavam com personagens homossexuais, Martha não é caracterizada de maneira estereotipada, seja na aparência, trejeitos ou comportamento. 

A personagem é uma mulher independente, empresária competente (afinal, o internato obteve sucesso) e professora dedicada. Ela chega a zombar do estereótipo associado a pessoas homossexuais durante uma cena em que um funcionário do mercado vai até a casa entregar mantimentos e insistentemente as encara: “Eu tenho oito dedos, veja! E duas cabeças. Sou uma aberração!”, grita ela em direção ao homem. Tudo no filme trabalha para que se crie um sentimento de compreensão e empatia em direção a Martha, não para que se assuma uma postura semelhante à da sociedade que a julga. 

Martha e Karen em cena de “Infâmia” (1961).
Martha e Karen em cena de “Infâmia” (1961).

Declarações do diretor, porém, sugerem que sequer houve intenção de tratar a lesbianidade em “Infâmia”. William Wyler, na época, afirmou que, para ele, a história era sobre “uma questão moral e não essencialmente sobre lesbianidade”, e que a temática da lesbianidade não o interessava. Sua declaração, entretanto, não é convincente, podendo ser fruto do receio apontado pela própria atriz, Shirley MacLaine.

A verdade é que, intencionalmente ou não, o filme pauta a lesbianidade, e ambas as análises — sobre “Infâmia” como representatividade falha e reflexo de uma sociedade conservadora e homofóbica, ou como uma crítica a essa sociedade —, embora discordantes, são coesas.

História real e peça de Lillian Hellman

“Infâmia” é uma adaptação de uma peça de teatro, “The Children’s Hour” (assim como o título original do filme), de autoria de Lillian Hellman, escrita e levada aos palcos em 1934. A peça, por sua vez, é baseada em uma história real, ocorrida em Edimburgo, Escócia, em 1810: as professoras Jane Pirie e Marianne Woods foram acusadas por uma de suas alunas de terem um “afeto excessivo” uma pela outra, boato que se espalhou e fez com que todas as estudantes fossem retiradas do colégio pelos pais.

A avó da garota, Dame Helen Cumming Gordon, acreditando nas acusações e que tal relação entre as diretoras era uma afronta à decência, não apenas a removeu do colégio, como entrou em contato com os pais das demais alunas, alertando-os. Em apenas dois dias, todas as meninas já haviam sido retiradas do internato — assim como acontece na peça e no filme.

Pirie e Woods, ao descobrirem o porquê de tudo aquilo, entraram com um processo por difamação contra Gordon. O caso perdurou por 10 anos; quando enfim exoneradas pela Câmara dos Lordes, porém, suas reputações já estavam permanentemente arruinadas e as professoras passaram o resto de suas vidas tentando se recuperar financeiramente.

A dramaturga Lillian Hellman.
A dramaturga Lillian Hellman.

Hellman sempre sustentou que “The Children’s Hour não é sobre lesbianidade, mas sobre “o bem e o mal”, sobre escândalos destrutivos e o poder de uma mentira, além da capacidade de indivíduos em posições de poder de destituir outras pessoas de subsistência e da própria vida.

A peça obteve enorme sucesso, tendo ficado em cartaz por quase dois anos. Ainda assim, devido à abordagem da lesbianidade, foi proibida em cidades como Boston, Chicago e Londres, além de ter sido rejeitada pelo comitê do Prêmio Pulitzer. 

Primeira adaptação

“The Children’s Hour” foi pela primeira vez adaptada para o cinema em 1936, no longa “These Three” (que no Brasil também leva o título “Infâmia”). William Wyler foi convidado a dirigir o filme pelo produtor Samuel Goldwyn, e ele próprio acreditava que Goldwyn havia “perdido a cabeça” ao querer adaptar a peça, dadas as restrições do Código.

De fato, uma série de restrições foi imposta aos cineastas por Joseph Breen, do Escritório Hays: “Não usar o título da peça ou fazer qualquer referência, direta ou indiretamente, na publicidade ou exploração da imagem, à peça teatral, e remover da produção final todas as sugestões possíveis de lesbianismo [sic] e qualquer outro assunto que possa se provar censurável”.

Dessa forma, o roteiro do filme precisou ser drasticamente alterado se comparado à peça, e em vez da declaração de que Martha teria sentimentos “não naturais” pela amiga, em “These Three” ela apaixona-se por Joe, noivo de Karen, e a acusação é de que ela seria amante de Joe.

Poster de “These Three” (1936)
Poster de “These Three” (1936)

A retirada da lesbianidade transformou a trama em um romance melodramático tão típico da Era de Ouro de Hollywood, mostrando o desenvolvimento da relação entre Karen e Joe, algo ausente na peça, e terminando com a reconciliação do casal após a descoberta de que nunca houvera infidelidade. 

Foi por ter ficado insatisfeito com “These Three” que William Wyler decidiu readaptar a peça décadas mais tarde. “Não foi o filme que eu pretendia… foi emasculado. No palco, era uma tragédia”, afirmou o diretor. 

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Com a retirada da lesbianidade, Joe acaba ganhando mais relevância na trama de “These Three” (1936)
Com a retirada da lesbianidade, Joe acaba ganhando mais relevância na trama de “These Three” (1936)

“Infâmia” (1961) é bastante fiel à peça de Lillian Hellman. Uma das poucas alterações se dá na ordem dos fatos no terceiro ato do filme: na peça, Martha comete suicídio antes da tentativa de retratação da Sra. Tilford, enquanto no filme a personagem decide tirar a própria vida embora soubesse que tudo seria publicamente esclarecido. Uma alteração, portanto, que confere maior peso e significância ao suicídio, como já analisado anteriormente.

É lamentável que a segunda adaptação seja tão pouco lembrada mesmo quando se discute o trabalho de William Wyler, ou das atrizes protagonistas, Audrey Hepburn e Shirley MacLaine. Toda a trajetória de “The Children’s Hour”, da peça ao cinema, é lócus frutífero para se analisar não só a representação da lesbianidade no teatro e no cinema, mas o próprio processo de adaptação e os impactos da censura sobre a indústria cinematográfica.

Fontes e referências:
  • DICK, Bernard F. Hellman in Hollywood. London and Toronto: Associated University Presses, 1982.
  • FLORES, Fulvio. Nem só bem feitas, nem tão melodramáticas: The Children’s Hour e The Little Foxes, de Lillian Hellman. 2008. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2008.
  • SINYARD, Neil. A Wonderful Heart: The Films of William Wyler. Jefferson City: McFarland & Company, 2013.
  • THE PRODUCTION code of the motion picture industry (1930-1967). [S.l.], entre 2000 e 2009. Disponível em: <https://productioncode.dhwritings.com>.
  • WESTBROOK, Brett Elizabeth. Second chances: the remake of Lillian Hellman‘s The Children’s Hour. Bright Lights Film Journal, [S.l.: s.n.], jul. 2000. Disponível em: <https://brightlightsfilm.com/second-chances-remake-lillian-hellmans-childrens-hour/#.XYawoFVKjIU>.
  • WILTON, Tamsin. Immortal, Invisible: Lesbians and the Moving Image (1995). [S.l.]: Taylor & Francis e-Library, 2005.

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Laysa Leal é bacharel em Cinema e Audiovisual com foco em roteiro, direção de arte e crítica especializada. Apaixonada por artes visuais, tem formação profissionalizante em fotografia e atua também como fotógrafa. Não dispensa uma boa música e está sempre pelo circuito de shows e festivais, uma das poucas ocasiões em que prefere o frenesi à quietude de museus e galerias de arte ou ao conforto de salas de cinema.
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