A Nuvem Rosa, longa-metragem de estreia de Iuli Gerbase, faz parte de uma lista tímida de ficções científicas brasileiras. Escrito em 2017 e produzido em 2019, o filme pode ser visto como uma profecia para a pandemia de Covid-19, que surgiu um ano depois. Aqui, a ideia de que a vida imita a ficção científica, a arte, parece verdadeira.
Profético ou não, o filme de Iuli aborda as relações humanas e o confinamento, vivenciado intensamente durante os anos de 2020 e 2021. Na história, uma nuvem rosa tóxica se espalha pelo mundo, obrigando as pessoas a ficarem em casa, já que as máscaras não são suficientes.
Diferente da pandemia que vivenciamos, essa situação não tem solução. As pessoas passam a viver isoladas, sem previsão de retorno à vida normal. Giovana (Renata de Lélis) se vê convivendo com Yago (Eduardo Mendonça) e, ao longo do tempo, formam uma família.
Uma ficção científica feminista?
A ficção científica feminista, surgida nos anos 1970, ganhou destaque com os movimentos feministas da época. Muitas vezes vista como histórias de teor mais soft (suave), essa vertente não se limita a classificações, mas representa uma forma de ver o mundo.
Estudiosas como Lisa Yaszek dedicam-se à recuperação de arquivos feministas produzidos durante essa época e que ainda ressoam na atualidade. Embora ela se concentre mais nas produções estadunidenses, como o conto Wives (1979) de Lisa Tuttle ou o romance Of Mist, and Grass, and Sand (1973) de Vonda N. McIntyre, é importante lembrar que autoras brasileiras também deixaram sua marca.
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A Nuvem Rosa e a dinâmica das relações familiares
A notícia da nuvem rosa tóxica é recebida com estranheza ao longo do filme, sem explicações claras sobre sua composição. A partir desse cenário, estabelece-se um cotidiano diferente, com todos obrigados a permanecerem onde estão, trabalhando de casa quando possível e recebendo comida por uma tubulação.
Giovana e Yago tinham passado apenas uma noite juntos até então. Com o tempo, eles aprendem a conviver, mas quando percebem que não há mais vida fora dali, Yago expressa o desejo de ter um filho, algo não bem recebido por ela.
Ela engravida mesmo sem demonstrar vontade. Giovana se preocupa com a irmã mais nova, que ficou na casa de uma amiga, com a amiga depressiva e agora com o filho, Lino. Como essa criança poderá conhecer o mundo? Que tipo de vida ele terá?
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A tecnologia como fuga no sci-fi brasileiro
Ao perceber o esgotamento da esposa, Yago e Lino preparam um presente de aniversário diferente: um óculos que permite visitar lugares. Giovana tem então um vislumbre de como era pisar na areia, tomar sol e sentir a brisa do mar.
A tecnologia aqui passeia tanto pelo conforto quanto pelo desespero. Como uma droga, agora Giovana se vê completamente dependente dos óculos. Ela abdica de tudo: marido e filho – não que isso seja muita coisa, mas é com certeza menos do que ela havia planejado antes da nuvem tóxica surgir.
É possível imaginar mundos menos hostis para as mulheres?
Mary Kenny Badamy, outra estudiosa da literatura de ficção científica, escreveu em 1976 um texto bastante irritado, reivindicando o lugar das mulheres no gênero. Seja como escritora, leitora, espectadora ou fã, a professora não se conforma de que um gênero que deveria propor mudanças parece reforçar o contrário.
Posicionamentos ofensivos, estereótipos e personagens problemáticas. A revolta de Mary não é algo sem fundamento; “onde estão as mulheres?“, pergunta ela o tempo inteiro.
A Nuvem Rosa, nos parece – mesmo que de maneira irônica – um respiro. Uma obra de ficção científica dirigida e protagonizada por uma mulher. Isso faria Mary menos infeliz! Ainda assim, não é possível se contentar com o pouco que temos, mas questionar. Que tipos de mundos são possíveis de serem pensados para as mulheres, afinal?
Giovana, completamente esgotada, decide fazer o que ninguém ousa: ela sai de casa para respirar um ar que não inspira há anos. E é quando a nuvem se aproxima dela que o filme termina. Os poucos segundos de contato mortal não parecem fazer efeito nela; a tela preta surge antes da sentença de morte.
Nesse momento, podemos nos perguntar: o que poderia ser a tal nuvem tóxica para além de uma coisa gasosa mortal? Seria essa nuvem uma metáfora para algo que nos corrói e nos impede de viver como realmente queremos?