Se você teve sua infância ou adolescência entre o final dos anos 90 e a década de 2000, você deve ter certa familiaridade com o termo girlboss, que na tradução literal do inglês seria uma “garota chefe”. Indo além, se você é uma mulher que cresceu durante esse período, é bastante provável que tenha se identificado com Miranda Priestly (O Diabo Veste Prada, 2006) e se imaginado seguindo seus passos no mundo profissional. A determinação e presença dominante da personagem a tornaram uma figura admirada por muitas jovens mulheres em busca de sucesso e poder (e em alguns casos, fez com que muitas delas começassem a desejar ter sucesso e poder).
Contudo, com o passar do tempo, entendemos que o mito da girlboss é uma falácia para a maioria esmagadora das mulheres comuns. Afinal de contas, os filmes não nos contaram qual é o preço que se paga por viver em função do trabalho e quanto tempo se leva para atingir um nível de sucesso em que é aceitável se denominar uma “chefona”. Ninguém conta, também, que o caminho é muito mais árduo do que parece. Não basta ter capacidade, vontade de aprender e, muitas vezes, também não importa quantas certificações você tenha: um homem menos capacitado vai ocupar o seu lugar.
O conceito inicial da girlboss tinha boas intenções. Inicialmente, o termo surgiu como uma forma empoderadora de celebrar mulheres bem sucedidas, independentes e determinadas a conquistar o sucesso profissional, e isso até pareceu possível em determinado momento. Até não parecer mais.
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Ao longo dos anos, essa ideia sofreu uma mudança significativa e, infelizmente, tornou-se uma fonte de sobrecarga. O discurso feminista por trás dessa expressão deu lugar a uma pressão excessiva, que impõe expectativas inatingíveis de perfeição e produtividade constante. As mulheres agora enfrentam uma sociedade que as encoraja a “fazer tudo”, conciliando carreira, família, saúde, relacionamentos e ainda assim mantendo a imagem de uma “supermulher”. Essa mentalidade cria um ambiente onde se espera que elas sejam incansáveis e impecáveis em todas as esferas de suas vidas, muitas vezes em detrimento de seu próprio bem estar físico e mental.
Se mostrar uma mulher bem sucedida para a sociedade é tão cansativo que nos sentimos esgotadas não apenas física, mas mentalmente também. Para exemplificar a situação com números, o estudo FEEx – FIA Employee Experience, realizado em 2022 com 188 mil pessoas de 419 empresas brasileiras, aponta que mulheres apresentam 12% a mais de cargas mentais do que homens, e 73% mais casos de Síndrome de Burnout. Esse nível de esgotamento mental está diretamente ligado com a necessidade de as mulheres traçarem metas impossíveis de serem alcançadas, apenas para mostrarem que são boas no que fazem.
Quando paramos para nos perguntar “até que ponto tudo isso vale a pena?” o problema apenas cresce mais. Aquela voz na nossa cabeça que insiste em nos sobrecarregar o tempo todo nos faz sentir culpadas por priorizarmos nossa vida pessoal, saúde mental, família e amigos ao invés de mergulharmos em cada vez mais tarefas corporativas. Talvez Miranda Priestly tenha arruinado o psicológico das mulheres millennials e do início da geração Z.
A tendência da girlfailure como válvula de escape
Aparentemente (e ainda bem), a sobrecarga emocional que vem como brinde quando se tem o objetivo praticamente inatingível de ser uma girlboss não é mais uma regra. Apesar de ter começado como uma brincadeira no TikTok, agora temos acesso a cada vez mais vídeos de garotas assumindo seus lados falhos não apenas como alívio cômico, mas como um tipo de incentivo.
A ascensão desse conceito tem sido observada em meio à geração Z, que se distancia mais da mentalidade capitalista e da cultura do esforço incessante. Essas jovens, desgastadas com as expectativas irrealistas de sucesso e as narrativas de empoderamento individual, abraçam uma nova forma de identidade feminina.
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A girlfailure é uma figura relativamente recente, alguém que assume suas derrotas e falhas como parte de sua jornada. Ela é intensa e desprovida de habilidades sociais refinadas. Essa personalidade desafia as convenções tradicionais de sucesso, preferindo mergulhar em situações complexas e rir de suas próprias rejeições.
Agora, jovens mulheres encontram e propagam uma conexão com essa nova identidade feminina à medida em que se cansam das pressões de uma sociedade obcecada pela imagem de sucesso perfeito. Ao adotar uma postura mais realista e autêntica, se busca redefinir os padrões e encontrar valor na imperfeição.
Por que apenas endeusar mulheres que são retratadas como carrascas por chegarem ao topo, quando podemos falar sobre personagens que representam mulheres reais? Precisamos mostrar e assumir que nossas vidas não se resumem a escaladas ao sucesso. Mulheres não existem apenas para sucumbir à própria ambição ou a uma convenção social de que o sucesso está somente em alcançar o topo de uma pirâmide baseada em hierarquia corporativa.
Como qualquer ser humano, nós temos nossas falhas, cometemos erros e nos envergonhamos de algumas atitudes que tomamos. Passamos por fases em que parecemos no fundo do poço e só conseguimos nos sentir culpadas por sermos um fracasso. Ninguém fala sobre os muitos momentos na vida da mulher em que qualquer decisão a ser tomada parece errada. Ninguém fala sobre nossos arrependimentos não serem apenas momentâneos, e ficarem por meses (ou até anos) martelando nossa cabeça com sentenças geralmente iniciadas por “e se eu tivesse feito diferente?”.
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Tudo bem se seu objetivo de vida realmente for ser tornar uma mulher bem sucedida nos negócios, mas só se você realmente quiser isso. É preciso compreender que a romantização da mulher workaholic que semeamos por anos não é emocional e psicologicamente benéfica. A Miranda tem, sim, suas glórias, mas vamos falar de personagens como Jenna Hamilton (Awkward, 2011 – 2016), Devi Vishwakumar (Eu Nunca…, 2020 – 2023) e Elaine Benes (Seinfeld, 1989, 1998). São mulheres que erram constantemente, têm vidas amorosas fracassadas e precisam aprender as lições da vida da maneira mais difícil. Soa familiar para você?
Girlfailures não merecem ser menosprezadas
Diversos fatores nos fazem precisar da aprovação alheia para seguirmos a vida. Por isso, é essencial que tenhamos outras mulheres que nos lembrem que é perfeitamente normal e humano cometer erros e passar por fases ruins. Em um mundo que muitas vezes nos pressiona a alcançar a perfeição e perseguir lugares inalcançáveis, é um ato de coragem mudar seus próprios conceitos e valorizar as imperfeições como parte integral de nossa jornada. Afinal de contas, não há nada de errado em tropeçar, experimentar contratempos ou enfrentar desafios inesperados.
Quando as girlfailures compartilham suas histórias, por mais curtos e superficiais que sejam seus relatos, elas criam um ambiente de apoio e compreensão, onde outras mulheres se sentem capacitadas a abraçarem suas características pessoais que fogem do ideal de perfeição e ambição. Essa conexão empática nos permite reconhecer que ninguém é perfeito e que todas nós enfrentamos desafios em diferentes momentos de nossas vidas.
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Entender que é normal ser imperfeita é libertador. Isso nos dá permissão para sermos autênticas, para explorarmos nossos limites e nos perdoarmos quando cometemos erros. É por meio da vulnerabilidade compartilhada com outras mulheres que percebemos que não somos definidas por nossas batalhas diárias, mas sim pela maneira como as recebemos e aprendemos com elas.
Ao contrário do que se pensava nos anos 2000, ser girlboss virou démodé. A tendência agora é aceitar e enaltecer quem você realmente é.