O enigmático absurdo de “Quem tem medo de Virginia Woolf?”

O enigmático absurdo de “Quem tem medo de Virginia Woolf?”

O que seria da literatura sem um bom questionamento para incomodar o leitor? Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee, já cumpre essa função de trazer um quê perturbador e reflexivo logo em sua porta de entrada, esse título marcante que menciona uma das escritoras mais enigmáticas que temos contato. 

Para falar sobre a peça, partamos da análise do título. No original em inglês tem-se Who’s afraid of Virginia Woolf?, e um leitor que não possui qualquer conhecimento sobre a obra pode supor que será de fato uma encenação que aborde a autora em certa medida – mas está longe de ser esse o caso. 

O título, que será uma frase mencionada algumas vezes ao longo dos diálogos, é, na verdade, uma brincadeira com a música infantil “quem tem medo de lobo mau?” – ou, em inglês, “who’s afraid of the big bad wolf”. Seguindo o ritmo da canção, fica fácil de verificar que o nome de Virginia Woolf se encaixa perfeitamente no lugar de “big bad wolf”, originando “who’s afraid of virginia woolf”. 

Edward Albee, como conta em entrevista para o Paris Review, tirou esse nome do rótulo de um produto, e menciona também que esse trocadilho com o nome de Virginia Woolf era bastante comum a época, sobretudo no meio acadêmico. Quem conhece a escritora sabe que suas obras dizem muito sobre o enfrentamento da realidade e da melancolia emaranhada na existência humana, e então o título faz sentido: “quem tem medo de encarar a vida como ela de fato é?”. 

Quem tem medo de Virginia Woolf: os caminhos do absurdo

Tendo compreendido essa inteligente sacada do autor, agora se faz necessário compreender algumas questões que dizem respeito ao Teatro do Absurdo – o que é, e como se mostra presente? Essa denominação, que surge pelos anos de 1960, é cunhada pelo crítico Martin Esslin para tratar de peças que tratam do existencialismo, dos paradoxos da vida e de como o homem é, de certa forma, um amontoado de sentido algum. 

Encenação de "Quem tem medo de Virginia Woolf" em 1962
Encenação de “Quem tem medo de Virginia Woolf” em 1962 | Imagem: Friedman-Abeles (Firm)

Desse “movimento” literário, destacam-se autores como Samuel Beckett, Harold Pinter, Eugène Ionesco, e o próprio Edward Albee. Nascido em 12 de março de 1928, Albee é um grande nome para essa dramaturgia do absurdo. As suas peças tendem a carregar uma análise psicológica, uma verdadeira viagem pelo caráter individual e pelas condições da sociedade – e Quem tem medo de Virginia Woolf também seguirá esse caminho. 

A obra, de 1962, acompanha, a princípio, o casal Martha, filha de um acadêmico, e George, um professor do departamento de História. Casados há tempo significativo, encontram-se numa maré de tédio e tensões matrimoniais que se manifestam em diálogos violentos e atitudes agressivas logo nos primeiros momentos da obra, quando, de madrugada, retornam de uma festa. 

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Martha e George voltam para casa às quatro da manhã, e a mulher anuncia uma notícia ao marido: os dois teriam visitas ainda naquela madrugada. Inconformado com a ideia de receber convidados naquele horário, o leitor já passa a perceber como os diálogos manifestam ainda mais nuances ofensivos e depreciativos – e as rubricas validam essa percepção.

Com o estresse da situação, ambos passam a discutir pormenores sobre o casamento, incluindo mágoas passadas que ficaram mal resolvidas. É nesse borbulhar de sentimentalismo que os tais convidados chegam: eram Nick e Honey, um casal jovem que, pouco a pouco, também revelam segredos e empecilhos no relacionamento. 

A propósito da menção dessas incógnitas que pairam sobre os personagens, é importante ressaltar que é a partir disso que Edward Albee constrói um drama misterioso e que prende os leitores e espectadores – afinal, nada melhor do que um enigma intrigante para gerar uma rica catarse.

Entre atos e intrigas da peça teatral provocadora de Edward Albee

Esse primeiro ato, chamado “Jogos e Diversão”, mostra o encontro da madrugada se iniciando de modo ameno, regado a álcool, e com os infinitos indícios de que Martha e George se alfinetavam de forma passivo-agressiva – e não demora para que Nick e Honey percebam que algo estranho ocorria entre os dois. É nesse ínterim entre ignorância e percepção que ocorre uma das cenas condutoras do dramático final.

Encenação de "Quem tem medo de Virginia Woolf" em 1962
Encenação de “Quem tem medo de Virginia Woolf” em 1962 | Imagem: Friedman-Abeles (Firm)

Repentinamente, Honey passa a sentir enjoos, e Martha se oferece para acompanhá-la até o banheiro, deixando os dois homens com o peso de suas próprias companhias. A retirada das mulheres abre brecha para que George comece a descontar em Nick o ódio enrustido que lhe surgira em decorrência das humilhações sofridas. 

Com nítido intuito de incomodar seu hóspede, George traz questionamentos desconfortáveis, inclusive sobre Honey, além de que confronta e debocha de seus ideais. Apesar dos intencionais constrangimentos, George chega a demonstrar uma aparente preocupação com a indisposição de Honey, mas Nick ressalta que aquele não era um episódio isolado – gravem isso para sua leitura, é uma informação importante. 

No meio dessas conversas, George conta sobre quando esteve na guerra e se tornou amigo de um jovem com uma história bastante peculiar: o homem atirara na mãe, e matara o pai em um acidente de carro. Apesar da morbidez dos fatos, George não se mostra impressionado ou incomodado; pelo contrário, até narra de forma surpreendentemente banal.

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Ainda sozinhos, Nick menciona que Honey sofrera anteriormente um aborto espontâneo, e aproveita o gancho da conversa para perguntar ao anfitrião se este tinha algum filho – e a resposta do homem é um rápido e incisivo “não”. Com a volta de Martha e Honey à sala de estar, dá-se continuidade aos assuntos estranhos. Dentre eles, vem à tona, através de Honey, que, ao contrário do que fora dito, Martha e George tinham, sim, um filho. 

Com esse assunto em pauta, George se mostra enfurecido com o fato da esposa ter mencionado a existência do filho para a convidada – mas, afinal, por qual motivo isso seria um incômodo? Um filho não deveria ser, ao contrário, combustível para uma conversa? E essa é uma das muitas pulgas que Albee coloca atrás de nossas orelhas, já que a cada diálogo os personagens se tornam paulatinamente mais intrigantes aos nossos olhos.

Entre atos e intrigas da peça teatral provocadora de Edward Albee
Encenação de “Quem tem medo de Virginia Woolf” em 1962 | Imagem: Friedman-Abeles (Firm)

É fato que o desfecho de Quem tem medo de Virginia Woolf não será plenamente explicado neste texto, sobretudo para que a experiência do leitor não seja menos catártica, mas há muitos pontos interessantes para chamar a atenção: quem é esse amigo de George que matou os pais? Por que Honey adoece com tanta frequência? O que ocorrera com o filho de George e Martha, e por que a simples menção da situação enfurece o homem?

A obra para além dos palcos

O final da peça, que não será aqui abordada, é impressionante e assustadora: Edward Albee apenas joga um grande enigma no colo de seu leitor e espectador, e não lhe conta como solucioná-lo. 

É também interessante ressaltar uma possível leitura da peça: as tensões constantes entre os personagens muito se assemelham ao contexto da época, quando Estados Unidos e URSS se enfrentavam de forma indireta, mas ainda assim violenta, durante o período que hoje chamamos de Guerra Fria. 

A dimensão de Quem tem medo de Virginia Woolf é tamanha que acabou por ser adaptada para o cinema em 1966, apenas quatro anos após a publicação da peça. O longo é dirigido por Mike Nichols e Richard Burton – que também ganhou espaço na peça com o papel de George -, contando com um elenco magnífico composto por Elizabeth Taylor como Martha, George Segal como Nick, Sandy Dennis como Honey.

Cena do longa Quem tem medo de Virginia Woolf (1966)
Cena do longa Quem tem medo de Virginia Woolf (1966) | Imagem: reprodução

Ao fim da peça, percebe-se que os diálogos criam perguntas que não serão fechadas e concluídas. Não há, como é comum no Teatro do Absurdo, uma explicação única e que ficará em evidência. Ainda assim, retomamos o título e talvez a única conclusão seja que todos nós temos medo de Virginia Woolf – ou ao menos deveríamos ter.

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Apaixonada por F. Scott Fitzgerald, escolheria "O Grande Gatsby" como sua única opção de leitura para levar a uma ilha. Leitora de tudo um pouco, encontrou-se sobretudo na relação entre literatura e psicanálise.
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