“Querida Alice” e a face invisível do relacionamento abusivo

“Querida Alice” e a face invisível do relacionamento abusivo

Sabemos que, no Brasil, os casos de feminicídio são absurdamente numerosos. Segundo um levantamento do Monitor da Violência do portal G1, em 2022, a cada seis horas, uma mulher é assassinada no país. E, infelizmente, a maior das causas ainda é a violência doméstica, aquela que acontece dentro de nossas próprias casas e cujo agressor é alguém que, em tese, poderíamos confiar. É fácil identificar um relacionamento violento quando existem agressões físicas, mas os sinais não precisam ser tão extremos para que a gente perceba que vive num relacionamento tóxico, ou até abusivo.

A violência psicológica acaba sendo uma face quase invisível em situações como essa, mas pode ser tão perigosa e dolorida quanto aquelas que deixam feridas externas. O filme Querida Alice (2022), que entrou para o catálogo do Prime Video em maio desse ano, retrata um relacionamento amoroso aparentemente saudável, mas que, aos poucos, se mostra uma prisão grotesca cheia de medo, obrigações e culpa.

Anna Kendrick em "Querida Alice"
Imagem: Los Angeles Times

Diferente de outros longas que abordam o mesmo assunto, este escolhe focar não na violência sofrida pela personagem, mas nas consequências psicológicas que ela provoca. É quando vemos como o namoro da protagonista afeta seu comportamento, hábitos, rotina e até seu relacionamento com outras pessoas, levando-a a um isolamento que parece não ter mais volta.

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Querida Alice e os sinais invisíveis 

Apesar deste ser o primeiro filme da diretora inglesa Mary Nighy, sua pouca experiência por trás das câmeras não se torna empecilho na hora de retratar a dinâmica do casal Alice (Anna Kendrick) e Simon (Charlie Carrick). O filme tem alguns problemas de desenvolvimento, sobretudo na primeira metade da história, mas a tensão que envolve as atitudes da protagonista é construída de maneira tão natural como só uma mulher conseguiria fazê-lo.

Essa sensibilidade é muito importante para a trama: muitas vezes, não vemos Simon sendo psicologicamente violento com a namorada, então é importante que as sutilezas no comportamento de Alice remetam aos gatilhos que o filme retrata. Não é preciso que ele mostre mais que o necessário, reconhecemos esses gatilhos de longe.

Querida Alice procura não se explicar demais. Somos introduzidos à rotina do casal sem saber como se conheceram, há quanto tempo estão juntos ou como as coisas evoluíram ao ponto de vermos Alice sair repentinamente de um jantar com as amigas para encontrar o namorado. A partir daí, o filme nos dá os mais diversos indícios de que, talvez, seu relacionamento não seja aquele que ela mostra para os outros.

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Elenco de "Querida Alice"
Imagem: Los Angeles Times

Ela acorda antes de Simon para se depilar, maquiar e fazer babyliss no cabelo; manda fotos sensuais sempre que ele pede; mente que vai numa viagem de trabalho quando, na verdade, vai viajar com as amigas. Mas apesar do alívio que Alice sente ao agir exatamente da forma como seu namorado espera, a tensão nunca deixa seu rosto, ela está sempre com medo de dar um passo em falso e perder o controle da situação.

A forma como a diretora constrói o suspense transforma Querida Alice num thriller psicológico cuja ameaça está sempre perigosamente presente, ainda que não de verdade. A protagonista está sempre pisando em ovos, não consegue se comportar naturalmente durante a viagem, o que, notamos, vem atrapalhando a amizade entre elas.

As bandeiras vermelhas aparecem cada vez que ela se depara com algum gatilho que a leva até seu relacionamento, mas nunca é fácil entender o tamanho do perigo quando estamos no meio do furacão. Por isso é tão importante a maneira como o filme retrata a atitude das amigas diante do que está acontecendo.

A importância da rede de apoio

Simon é um narcisista clássico. É arrogante, se acha superior aos demais e quer ser tratado como tal, exige reconhecimento e admiração o tempo todo, mas nunca se importa com aqueles a sua volta.

Uma pessoa com esse tipo de temperamento (talvez até com transtorno de personalidade narcisista) precisa de alguém que esteja sempre disponível para exaltar suas qualidades, alguém que possa manipular facilmente quando bem entender. Assim, Alice se torna a presa perfeita, provavelmente (já que o filme não dá um background sobre a personagem) uma mulher insegura, com baixa autoestima, que precisa da validação de um relacionamento estável.

"Querida Alice" e a importância da rede de apoio
Imagem: Microsoft

A atuação de Anna Kendrick foi fundamental para construir a personalidade da mulher enjaulada pelo próprio parceiro. Olhares sutis e pequenos gestos como o de enrolar o cabelo no dedo até arrancá-lo tornaram sua personagem cada vez mais crível. É uma atuação contida, mas cheia de significado e força.

Anna passa todo o filme com o olhar carregado de sentimentos como dor, medo, apreensão e culpa, o que faz de sua Alice uma protagonista complexa e, por vezes, até difícil de entender. Ainda que, de fora, seja fácil pensar em soluções que possam tirá-la do buraco, sentimos muito e profundamente por Alice, conseguimos nos identificar com seu sofrimento e nos surpreendemos com quem ela é longe do namorado.

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Conforme os dias passam, a expressão de Alice se torna mais alegre, sua vontade de curtir a viagem aumenta e, aos poucos, Sophie (Wunmi Mosaku) e Tess (Kaniehtiio Horn) começam a entender melhor o que está acontecendo. Foi uma decisão importante a da roteirista Alanna Francis de ter trazido mais naturalidade para a forma como elas reagem a toda a situação.

Existe, de início, uma barreira que cai à medida que Alice revela quem Simon é de verdade, mas as duas assumem uma posição de suporte, deixando ela livre para tomar suas próprias decisões. De forma sutil, mas competente, Querida Alice consegue mostrar quão essencial é uma rede de apoio firme e consistente, que escute, respeite e não julgue o comportamento de quem passa por algo assim.

Imagem: NBC News

Imperfeito, mas objetivo

Entre erros e acertos de estrutura narrativa, Querida Alice consegue transmitir uma mensagem impactante. Num país onde a violência contra a mulher atinge números inacreditáveis, a importância do acesso a filmes que mostrem as consequências de um relacionamento abusivo é enorme.

A arte tem o poder e, muitas vezes, o dever de informar e conscientizar as pessoas, e não existe forma mais acessível de fazer isso do que através do cinema. Querida Alice, filme de Mary Nighy, escancara a verdade por trás de muitos relacionamentos vistos como “perfeitos”, mas que, na verdade, escondem mulheres oprimidas e infelizes, vítimas de homens narcisistas.

Ainda que não consiga tirar o melhor da estrutura em flashbacks, Querida Alice se destaca ao trazer para os holofotes quem realmente deve brilhar: sua protagonista. O filme acerta quando decide tirar Simon de cena e focar nas crises de ansiedade e mudanças no comportamento de Alice, dando destaque merecido a uma grande atuação de Anna Kendrick.

Através de sua personagem, entendemos que esse tipo de abuso pode causar depressão, ansiedade, distúrbios alimentares, entre muitos outros. O mais importante é ficar atenta aos sinais, nos nossos relacionamentos e naqueles de quem amamos. Muitas vezes uma pequena atitude consegue fazer uma grande diferença.

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Jornalista recifense que passa metade do tempo vendo filmes sem continuação e a outra metade lendo romances de pessoas que já morreram. Também reviso textos, pratico yoga e treino minhas habilidades de confeiteira para sustentar meu vício em bolos gostosos.
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