“Entre Mulheres” e a imaginação como transgressão

“Entre Mulheres” e a imaginação como transgressão

Esse é um ato de imaginação feminina”. A mensagem aparece logo nos créditos iniciais de Entre Mulheres (2022), introduzindo o tom da narrativa. O ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado foi baseado no livro homônimo de Miriam Toews, co-roteirista no filme de Sarah Polley.

A história se passa após uma série de abusos sexuais cometidos pelos homens de uma colônia menonita (movimento cristão evangélico). Um grupo de mulheres são responsáveis por decidir o futuro da população feminina, todas vítimas do atentado, em 48 horas. A história é toda pautada nessa reunião, que decidirá se irão deixar aquela terra e seus homens e agressores para trás, ou ficar e brigar. 

Entre Mulheres costura uma narrativa densa, que abraça a complexidade do tema, enriquecida por personagens mulheres que se chocam em seus contrastes e semelhanças. É, sem dúvida, um ato de imaginação feminina.

Mais real do que a ficção

Entre Mulheres (2023) - “Esse é um ato de imaginação feminina”.
Cena de “Entre Mulheres”, novo longa de Sarah Polley | Imagem: Reprodução

O título resume de forma literal o enredo: uma conversa entre mulheres. A paleta de cores é limitada e sombria, um celeiro é o cenário principal, com uma sensação de antiguidade e anacronismo que evita acesso à modernidade. Em determinado momento da história, declaram de forma sutil que estamos no século XXI – uma informação chocante por si só. 

O livro que deu origem a obra é, segundo a autora, uma resposta da ficção para eventos reais. Entre 2005 e 2009, uma comunidade menonita na Bolívia foi palco de ataques a centenas de meninas e mulheres – vítimas em suas próprias casas, sedadas com anestésicos para os animais.

O grupo de agressores eram homens do mesmo assentamento e foram, em grande parte, protegidos pelas autoridades da colônia. Baseada nesses fatos, a autora canadense escreveu as minutas fictícias de uma reunião que decide o futuro dessas mulheres.

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O filme se inicia com os homens deixando a colônia. Eles estarão fora para endereçar questões legais na cidade, e deixam a população feminina para lidar com a própria ferida aberta. Houve uma votação entre elas, com as opções não fazer nada, ficar e lutar, ou abandonar a região e seus agressores. Analfabetas, o pleito ocorreu com desenhos e marcações no papel, e o resultado foi um empate entre lutar e ir embora. 

A reunião central do filme tem oito personagens escolhidas para tomar a decisão pelo futuro de todas as presentes, além do único homem adulto cis realmente presente na narrativa. Alfabetizado, ele é o tomador de minutas.

Judith Ivey e Claire Foy, duas das incumbidas de decidir o destino das mulheres da colônia em "Women Talking"
Judith Ivey e Claire Foy, duas das incumbidas de decidir o destino das mulheres da colônia | Imagem: Reprodução

Tão complexa como a realidade

Entre Mulheres é um filme que brilha no texto, com diálogos humanos e profundos, nunca deixando de lado as nuances da discussão. Religião é um ponto de dor e bate de frente com as opções: lutar é uma forma de se corromper, e deixar aquela terra é se afastar das suas promessas espirituais e a vida após morte no paraíso. Perdão é amplamente discutido, desde o dever religioso de perdoar até a capacidade de deixar para trás pela própria paz. 

O roteiro não se limita ao tema óbvio de uma colônia religiosa, levando a discussão para além da espiritualidade, com autopreservação, maternidade, trauma intergeracional, dentre outras coisas. A beleza do seu texto é o reconhecimento de que, após uma ferida tão profunda, não existe uma solução simples. Todas as alternativas carregam uma dor inominável, também compartilhada pelas mulheres que discutem.

Além de profundo, o debate também é altamente prático: como seria a vida delas em cada cenário? Como endereçar mudanças reais? Como pacificar questões entre si? Como sobreviver após qualquer decisão – em todos os sentidos? Esse ato de imaginação feminina se torna transgressor à medida que desenha possibilidades concretas para seu futuro, além de desafiar papéis de gênero profundamente exacerbados.

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Novo filme de Sarah Polley - Entre Mulheres
Cena de “Women Talking” (2023) | Imagem: Reprodução

Também é interessante notar o que significa liberdade, alívio e transgressão para cada uma delas varia. Temos uma esposa que apanha do marido (Jessie Buckley), uma mulher grávida do seu abusador (Rooney Mara), uma fumante com síndrome de pânico (Michelle McLeod), uma mãe que faria qualquer coisa pelos filhos (Claire Foy). Uma decisão conjunta nunca poderia ser fácil ou simples.

Essas personagens ganham vida por meio do contraste entre si. Não temos um grande aprofundamento em seus históricos, mas pelas suas respostas distintas ao trauma enxergamos pessoas reais. Entendemos que aquele episódio foi apenas um dos muitos que compõe sua existência na colônia, sem acesso à educação ou autonomia. A conversa evolui lentamente para que vejamos, acima de tudo, suas semelhanças.

Entre Mulheres e a verdadeira transgressão

O longa tem uma narrativa que tende mais para o melancólico do que o furioso, mesmo com os debates acalorados durante o filme. Dependendo do gosto, pode inclusive ser percebido como monótono.

‘Transgredir’ é o ato de ir além, atravessar, ou então de infringir, violar. Essa é uma história que transgride não pelo tom, mas pela realidade crua do seu conteúdo: a profundidade da estrutura que oprime e abusa, a complexidade que é desmantelá-la, além das vítimas que foram feitas no caminho.

A história foi escrita como resposta ficcional a eventos reais, transgredindo os limites frios da realidade e repintando o quadro. Imaginação se torna uma arma de resistência, difícil de confiscar.

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Bia é formada em economia, pesquisadora e escritora. Obcecada por internet e cultura, gosta de escrever para entender o mundo. É leitora assídua de todo tipo de ficção, ama debater filmes e faz perguntas sobre quase tudo - pelo prazer de buscar a resposta.
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