Suicide Club vive: a realidade e a narrativa de Usamaru Furuya

Suicide Club vive: a realidade e a narrativa de Usamaru Furuya

Escondidas em plena vista, as subcomunidades virtuais têm ganhado cada vez mais frequentadores conforme a internet se torna mais presente no cotidiano. Mas o que é uma subcomunidade, como algumas podem ser tão nocivas, e o que Suicide Club tem a ver com elas?

Em poucas palavras, uma subcomunidade é um ambiente virtual, caracterizado pelo uso de hashtags, linguagem e estética próprias. Seus frequentadores utilizam esses adereços para se reconhecerem na vastidão das redes sociais. A princípio, esse tipo de comunidade é apenas um amontoado de usuários com interesses em comum – como bookgram para a literatura e studygram para os estudos.

Entretanto, esse tipo de organização online não se restringe apenas a hobbies saudáveis. Atualmente existem diversas subcomunidades nas quais os frequentadores discutem transtornos mentais (em especial transtornos alimentares), práticas de automutilação, cleptomania, entre outros assuntos delicados.

Em Suicide Club (mangá de Usamaru Furuya, adaptado do filme homônimo de Sion Sono e publicado no Brasil pela NewPOP), o suicídio coletivo de 54 estudantes surpreende a sociedade japonesa. A jovem Saya é única sobrevivente, vítima de exploração sexual e sem família.

Quadro de Suicide Club com a personagem Saya em destaque
A jovem Saya; sem família e vítima de abuso sexual, encontra conforto com outras jovens desamparadas. (Imagem: reprodução)

Sua única amiga, Kyoko, tenta ao máximo manter Saya no mundo real, mas a adolescente é extremamente dedicada ao Clube da Mitsuko – o grupo de garotas que cometeu o suicídio em massa, a mando de Mitsuko, outra jovem com tendências suicidas.

Como única sobrevivente, Saya começa a ser adorada por outras adolescentes fragilizadas e forma seu próprio clube, ao ponto de abandonar seu nome e preferir ser chamada de Mitsuko. Kyoko, intrigada pelo comportamento da amiga, passa a investigar os acontecimentos perturbadores que rondam Saya.

Cena do filme Suicide Club que mostra o grupo de estudantes antes de cometer suicídio
O Clube da Mitsuko, momentos antes do suicídio coletivo. Cena do filme de Sion Sono. (Imagem: MUBI)

Subcomunidades e o Clube da Mitsuko

A colegial encontra diversos fóruns sobre o chamado Suicide Club, nome dado pelos internautas ao suicídio em massa, e sobre Saya. Encontra também uma página onde as adolescentes suicidas trocavam mensagens – algumas enviadas mesmo após suas mortes.

Com isso, Kyoko descobre que existe uma cadeia de clubes de garotas com problemas psicológicos, liderados por jovens sob o pseudônimo Mitsuko. A descoberta revela a extensão do problema que atinge não apenas Saya, mas inúmeras estudantes.

Sem tratamento adequado e redes de apoio no mundo real, essas jovens se isolaram em clubes e fóruns em que poderiam conhecer pessoas que entenderiam seu sofrimento. Assim, as chamadas Mitsuko surgiram como guia para meninas desamparadas.

De forma similar, as subcomunidades virtuais parecem acolhedoras para pessoas em sofrimento psíquico, mas a falta de ajuda concreta apenas influencia a alienação por meio de comportamentos nocivos aos usuários, que caem em uma espiral de sintomas mentais e físicos.

Ao longo do mangá, Kyoko foi a única que tentou ajudar Saya sem abrir mão da realidade concreta. Entretanto, a jovem sozinha não poderia atender às necessidades da amiga, pois ambas precisavam de um auxílio amplo, coletivo e de caráter social. Essa ajuda também é inexistente aos usuários de subcomunidades virtuais fora da narrativa de Furuya.

Saya e seu grupo de seguidoras no mangá de Usamaru Furuya
Saya e seu grupo de seguidoras. (Imagem: Seguindo o Coelho Branco)

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O isolamento coletivo…

Com a expansão das redes sociais, especialmente durante o período pandêmico, parte considerável dos internautas já se deparou com subcomunidades de pessoas com doenças mentais. Cada vez mais, esse conteúdo se torna viral pelo caráter chocante das postagens feitas nesses ambientes.

Como no mangá, o comportamento dos usuários e o conteúdo desses espaços divide o público geral, que pode compartilhar visões negativas (como as que colocam pessoas com transtornos como irresponsáveis ou cruéis) ou despertar curiosidade mórbida (que trata o conteúdo como entretenimento de choque). Além disso, as subcomunidades também podem atrair pessoas fragilizadas – que se identificam com seu conteúdo.

Em uma sociedade extremamente doente e sem perspectivas de melhoras, refúgios virtuais são como analgésicos. Saya e suas seguidoras ainda sofriam, mas encontraram conforto na dor ao aceitarem que suas vidas se resumiam à tragédia. Assim, as adolescentes se dedicavam tanto ao próprio sofrimento que se isolaram totalmente do mundo real.

Quando as jovens suicidas perceberam sua solidão, procuraram formar grupos de pessoas semelhantes. A noção de que transtornos mentais são responsabilidades individuais empurraram as garotas para um isolamento coletivo, de forma que até mesmo a ideia de buscar ajuda parece inalcançável.

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… e suas consequências, em Suicide Club e na vida real

Essa segregação enfrentada por pessoas com doenças mentais é mais um gatilho para seus sintomas, e também facilita que ações coletivas arriscadas aconteçam, de forma a envolver até mesmo pessoas mentalmente saudáveis. A alienação e aceitação da dor como única forma de viver foram extremas ao ponto de Saya orquestrar outro suicídio em massa, arrastando Kyoko consigo. Dessa vez, ela se torna a única sobrevivente, a nova Mitsuko.

Apesar das boas intenções de Kyoko, ela não conseguiu evitar o envolvimento nocivo com o clube de seguidoras de Saya. Isso escancara como a individualização de problemas psicológicos apenas torna as pessoas vulneráveis ao sofrimento e ao isolamento social. Assim como Kyoko, até mesmo alguém mentalmente saudável pode ser excluído quando tenta ajudar pessoas com transtornos psiquiátricos.

Painel de Suicide Club; Kyoko chora após segundo suicídio coletivo
Kyoko, após sobreviver ao suicídio coletivo que causou a morte de Saya. (Imagem: reprodução)

Na vida real, casos de suicídios coletivos já foram registrados, entretanto essa não é a única forma de comportamento grupal perigosa que pode acontecer entre pessoas com tendências suicidas. Em redes sociais, muitas trends e desafios de caráter nocivo se tornam atrativos para indivíduos fragilizados, especialmente adolescentes.

Alguns desafios, como o chamado baleia azul, começam apenas como boato, mas influenciam usuários a agirem de verdade. Já outros nascem em subcomunidades e são adotados por seus frequentadores, para se sentirem parte de um grupo.

Além disso, grupos de mensagens que incentivam comportamentos perigosos são rotineiros em subcomunidades virtuais. Assim, os membros podem acompanhar as ações uns dos outros, cobrar aqueles que não se dedicam a desafios e comparar o próprio progresso com o de outros participantes.

Suicide Club vive

Em Suicide Club, as integrantes do Clube da Mitsuko participam de reuniões para falar sobre o próprio sofrimento, incentivar a automutilação e planejar formas de acabar com a própria vida. Apesar dos encontros serem públicos e dentro do ambiente escolar, nada foi feito para ajudar as jovens, que apenas entraram para a estatística de suicídio na adolescência.

Agora, cerca de vinte anos após a publicação do mangá, o isolamento de pessoas com transtornos psicológicos persiste. Seu comportamento de risco, amplamente compartilhado em redes sociais, não passa de uma anomalia social cotidiana. Suicide Club vive – basta esperar pela nova Mitsuko.

Encontre ajuda: Ligue 188!

O Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, e-mail e chat 24 horas todos os dias.

Crédito: colagem em destaque por Isabelle Simões.

Escrito por:

Estudante de Russo na USP, fã de Red Velvet e degustadora profissional de refrigerante de cereja. Acredita piamente que assistir Trainspotting e ler Gógol são as curas para os males do mundo.
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