De acordo com a filósofa e ativista Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras(…)“. Com a série “I may destroy you“, co-produção da BBC e da HBO, a multifacetada Michaela Coel definitivamente faz seu movimento vertiginoso. Dessa vez, na cultura pop e em um processo efetivo de abordagem de outra cultura, a do estupro.
A série estreou no Brasil no dia 12 de maio em meio ao início da pandemia e vem causando muitas discussões acerca do tema. É a segunda série criada e estrelada por Michaela depois do sucesso de Chewing Gum, disponível na Netflix. E mais uma vez a criadora conseguiu trazer uma narrativa completamente autêntica em meio a tantas novas histórias do ponto de vista da geração millennial. É revigorante, portanto, acompanhar o nascimento de personagens negras com posicionamentos poderosos.
Como Shonda Rhymes fez ao criar protagonistas icônicas como Olivia Pope (Scandal) e Annalise Keating (How to get away with murder), Coel dá vida à exuberante Arabella Essiedu, uma jovem escritora bem sucedida, que foi descoberta no Twitter e contratada por uma editora de vanguarda. Arabella está vivendo um sonho, criando, curtindo com seus amigos, até que um estupro a interrompe.
A visão de Michaela Coel
Nascida em Londres e filha de imigrantes ganeses, Michaela curiosamente decidiu se tornar católica aos vinte e um anos. Ela conta como sentiu um chamado dentro de si, e assim permaneceu praticante por cinco anos participando da Igreja e de grupos de estudo bíblico. Porém, quando entrou na faculdade de Drama, passou a sentir que a Igreja não se posicionava de forma favorável em relação aos homossexuais.
Em entrevista para uma rádio inglesa, ela afirmou como se considera uma pessoa estritamente literal, e como sentiu falta dessa falta de clareza do posicionamento da Igreja. Na época, chegou até mesmo a marcar uma entrevista com o pároco para discutir o tema, mas ele nunca apareceu no dia combinado. Depois disso, sentiu que tinha a sua resposta pela falta do retorno dele. Além disso, essa visão da religião tem muita influência em sua primeira série, Chewing Gum, onde interpreta a protagonista Tracey.
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Primeiramente, Michaela começou a se expressar artisticamente através de sua poesia, escrevendo e recitando. Em uma dessas performances foi aconselhada a estudar atuação, o que a levou a faculdade de Drama em Londres. Hoje, além de atriz e poetisa, é cantora, escritora, produtora executiva e roteirista.
Quando vemos Michaela Coel em alguma entrevista, sentimos até certo estranhamento em comparação com suas personagens. A irreverente Tracey ou a desbocada Arabella dão lugar a uma mulher com fala baixa, rouca e elegante na vida real. Interessante enfatizar essa diferença entre criadora e criaturas, uma vez que o mercado de entretenimento ainda desdenha de criações femininas principalmente quando são baseadas em suas próprias experiências.
Ao mesmo tempo em que homens como Woody Allen seguem repetindo personagens completamente iguais a ele mesmo em seus filmes. E ainda é aclamado pela crítica. O mercado na verdade encontra defeito até mesmo em criações femininas que não são necessariamente autobiográficas, ou como Phoebe Waller-Bridge comenta, não são roteiros retirados de seus diários.
AVISO: spoilers a seguir
I may destroy you aborda amizade, redes sociais, relacionamento, masculinidade, raça, gênero, carreira, arte e existencialismo. Mas, principalmente, escancara tabus de maneira muito clara e as vezes descontraída. Logo nos primeiros episódios temos sexo e menstruação, sem qualquer fetiche, bem vida real. Nele, Arabella passa sua primeira noite com quem se tornaria seu recorrente interesse amoroso, o italiano Biagio (Marouane Zotti).
Nas preliminares, ele acaba se deparando com um coágulo de sangue. E ele, que é um cara todo estranho e misterioso ao ponto de ser sombrio, fica fascinado por aquela textura, ao mesmo tempo que uma super constrangida Arabella resolve desistir de tal experimento que ela comenta nunca haver tentado.
Pensando na relação de Biagio e Arabella, sentimos que acaba de uma forma bastante brusca no penúltimo episódio da série. Dessa maneira, ficamos com uma vontade de querer entender melhor as intenções do italiano. Talvez seja apenas Michaela ilustrando algo muito simples e que todas as mulheres solteiras sentem: frustração em relação as intenções masculinas.
Muitas vezes aquele cara com quem compartilhamos um momento especial, como um nascer do sol na praia e uma conversa profunda sobre a vida, é apenas um baita cafajeste. Também é verdade que existe uma vontade inata no ser humano em geral, e talvez também no caso de Arabella, ela queira “salvar” Biagio de seu destino fora da lei. Ou talvez ela só precisasse compreender que quem precisa ser salva é ela mesma.
O piloto de I may destroy you
Para além do relacionamento amoroso e que não é nada central nessa série, precisamos voltar alguns passos. Como sabemos, o piloto é um episódio importante que tem a missão de apresentar em pouco tempo parte da trama e seus principais conflitos. Nesse caso, conhecemos Arabella e logo percebemos como ela é arrojada com suas roupas modernas e seu cabelo cor-de-rosa.
No primeiro episódio acompanhamos Arabella em Londres, chegando em sua casa depois de uma de suas visitas a Biagio. Ela tem um roommate, o simpático Ben (Stephen Wight). Depois conhecemos sua melhor amiga, Terry (Weruche Opia), uma atriz em início de carreira, e também o melhor amigo Kwame (Paapa Essiedu), que é professor em uma academia de ginástica.
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Conseguimos visualizar toda a teia formada por pessoas que a amam e querem estar ao lado de Arabella. Ao mesmo tempo, entendemos seu caráter complexo e um pouco desatento ao lidar com responsabilidades, como a entrega do primeiro rascunho do segundo livro encomendado por sua renomada editora.
Interessante notar a dinâmica de Arabella com cada uma dessas pessoas com as quais interage. Biagio, Terry, Ben, Kwame, e mais tarde, ela se encontra com Simon (Aml Ameen). Que é casado que tem uma namorada fora do casamento, e acaba sendo a pessoa que a chama para sair na noite do estupro em questão.
Uma mulher tem o dever de tomar cuidado?
Alerta de gatilho nos próximos parágrafos: violência sexual
Arabella tem sua bebida batizada no bar naquela noite. Michaela Coel baseou-se em sua própria experiência de estupro para escrever essa trama, tendo sido ela mesma vítima de uma bebida batizada e estupro.
No decorrer do primeiro e segundo episódios, acompanhamos sua tentativa de elaborar o que tinha acontecido através de flashes em que podia ver o rosto de um homem em cima dela. Ela tenta falar com as pessoas que estavam com ela no dia, até que chega a desesperadora conclusão do que aconteceu e busca a polícia.
É como se Arabella nos fizesse sentir o desespero de não compreender o que aconteceu com ela, tentando evitar ao máximo aceitar o fato de que, na verdade, o pior aconteceu. Essa sensação é reforçada pela forma como a série vai mostrando pistas aos poucos, no decorrer dos primeiros episódios.
Depois da compreensão de que tinha sido mesmo estuprada, ela passa pelo procedimento de corpo de delito de uma forma muito mais lisonjeira do que vimos em Inacreditável, da Netflix, por exemplo. Em I may destroy you, Arabella é acompanhada por duas mulheres e recebe um tratamento humano, apesar de infelizmente não conseguir encontrar o seu estuprador. Em uma cena em que espera por sua vez para ser testada, uma outra mulher ao seu lado, também vestida com essas batas de hospital, pergunta: “Primeiro estupro?”.
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Interessante como fica claro que Arabella é uma mulher livre, que usa drogas e bebe muito. Michaela parece querer deixar claro como não importa quantas drogas você possa ter usado, nunca é sua culpa. O punch mais forte e indigesto vem em um dos próximos episódios, quando Arabella sofre um novo estupro.
No decorrer da série, ela recebe a ajuda de Zain (Karan Gill), um escritor enviado pela editora para auxilia-la com o livro. Eles se conectam, acabam transando, mas no meio do ato Zain resolve tirar a camisinha sem o consentimento de Arabella, o que ela acaba descobrindo na sequência.
Posteriormente, quando ela o contesta sobre isso, é desmerecida pelo rapaz, que faz pouco caso do seu desconforto legítimo com a situação não consensual. Ela leva alguns dias ainda convivendo com seu novo estuprador, até que tem a clareza do que aconteceu e o expõe em um evento da editora, na frente da mãe dele.
A trajetória de um trauma
A amiga de Arabella, Terry, se sente responsável pelo que aconteceu com ela na primeira noite, e sentimos também essa dinâmica complicada existente em uma relação longa de amizade entre mulheres. Há uma certa inveja de Terry em relação ao sucesso de Arabella, e a falta de paciência com seus rompantes de loucura. Dessa maneira, Terry mergulha na ajuda constante para que sua amiga se reestruture depois do ocorrido, oferecendo apoio e cuidados quase excessivos.
Em contrapartida, Kwame, o melhor amigo, também vive sua própria experiência de estupro depois de uma relação com um cara que conheceu no aplicativo de relacionamentos. Podemos acompanhar aqui a solidão do homem negro homossexual, deixando clara a diferença com que Kwame é recebido pela polícia quando tenta contar o que aconteceu.
Na delegacia, ele sofre um novo estupro, com o despreparo no atendimento às vítimas de todas as orientações sexuais. É gigante a importância dessa discussão levantada em todas as suas nuances, em um tema que ainda não conseguimos desenvolver como sociedade.
Todavia, Arabella passa para o que talvez seria a fase conclusiva do seu processo de cura, extirpando seu trauma nas redes sociais e se tornando a voz de uma geração violentada. Mas quando ela veste esse chapéu da justiça, acaba sendo cruel com uma das pessoas que mais cuidou dela durante a série, o próprio Kwame. Quando percebe o seu erro, Arabella busca por ajuda psicológica.
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Em um simples desenho com tracinhos no papel, a psicóloga mostra para nós e para Arabella, como é difícil abraçar a essência em relação a nossa performance em um mundo de espetáculo. Nesse momento, Arabella decide dar um passo para trás, buscando Kwame e Terry e se desconectando de todas as redes sociais.
Depois desse momento de clareza e encontro consigo mesma, ela decide voltar para o fatídico bar. A série acaba com ela e Terry sentadas na parte de fora, olhando homens mascarados se divertindo, talvez caçando? É Halloween.
Inspirações e referências
Michaela Coel falou como se sentiu inspirada por muitas obras enquanto escrevia I may destroy you. Uma delas foi Boneca Russa (Netflix), criada por Leslye Headland, Natasha Lyonne, e Amy Poehler, muito pelo processo de autodestruição iniciado pela maravilhosa protagonista Lyonne. Ela também se inspirou no filme Nós de Jordan Peele, e inclusive acabou até enviando o script de I may destroy you para ele ler.
Outra coincidência também foi com sua amiga, outra multitalentosa criadora, a comediante e atriz Issa Rae, em relação a trilha sonora de sua série Insecure. A música utilizada no segundo episódio de Insecure, do rapper Tierra Whack, foi a mesma do segundo episódio de I may destroy you. Entretanto, Issa Rae não ficou nada chocada com a coincidência que ela considerou óbvia e natural. Ficamos aqui sonhando com esse duo incrível para uma próxima super produção: Coel e Rae, quem sabe!
Uma possível segunda temporada?
Michaela Coel não confirmou nada a respeito de uma possível segunda temporada, e não há indícios de que haja uma negociação em curso com a BBC ou a HBO. Sabemos que para a primeira temporada ela acabou declinando do contrato original com a Netflix, por conta de uma baixa participação nos resultados da distribuição da série como autora. Uma baita bola fora dos executivos da Netflix, que agora devem estar se remoendo com o grande retorno de público e crítica que a série vem recebendo.
No âmbito de possíveis novas narrativas, a season finale de I may destroy you acaba de uma forma bem conclusiva. Mas claro que há espaço para muito mais desenvolvimento, principalmente dos personagens coadjuvantes como Ben, o colega de quarto que parece ter um crush na Arabella, Kwami lidando com o seu trauma, e até mesmo a amizade de Simon e Arabella, que ficou suspensa depois da noite fatídica.
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Depois de uma semana triste vivida pelo Brasil pela forma como o Estado e algumas facções da Igreja falharam ao acolher uma criança que ficou grávida, vítima de estupros sucessivos, fica clara a necessidade e a urgência de séries como I may destroy you. Importante visualizarmos esse estuprador(a) como uma pessoa que a princípio confiamos, alguém da família, muitas vezes, ou um(a) amigo(a). Acontece todos os dias, em todo o mundo.
Edição e revisão por Isabelle Simões.