“Eu sou um maldito monstro procurando por redenção”: Måneskin e a monstruosidade

“Eu sou um maldito monstro procurando por redenção”: Måneskin e a monstruosidade

Monstros assustam, mas não apenas isso. Eles representam nossos medos, nossos anseios, aquilo que nos atormenta – isso numa perspectiva mais negativa. Contudo, a monstruosidade e suas representações também são um convite a todos aqueles que não se enquadram, seja por serem diferentes física ou culturalmente, ou mesmo por serem ousados demais para uma sociedade fechada em si mesma. Monstros abalam estruturas. Você não consegue ignorá-los. E a maneira como você reage a eles sempre revela um aspecto de si mesmo.

Não foi à toa que quando o anúncio de uma série das Crônicas Vampirescas, baseada na obra de Anne Rice, foi divulgado, muitas pessoas usaram as redes para pedir que Damiano David, vocalista da banda Måneskin, interpretasse o rockstar vampiro Lestat – ou, ao menos, que alguém parecido com o cantor o fizesse. Damiano não é um monstro, mas veste a monstruosidade como uma segunda pele, sentindo-se perfeitamente confortável na posição de quem sabe exatamente qual efeito quer passar.

A monstruosidade construída pela banda Måneskin

Damiano David em apresentação no Festival Sanremo em 2021.
Damiano David em apresentação no Festival Sanremo em 2021. Foto: reprodução

Na última temporada de True Blood, nos é revelado como Eric Northman, o vampiro viking de mil anos de idade, acabou tornando-se dono do Fangtasia, um bar de vampiros no interior do sul dos Estados Unidos. Em um resumo rápido, isso aconteceu porque uma funcionária de Eric e Pam, Ginger, se deu conta de algo: sexo vende. A monstruosidade também. Colocar Eric num trono onde ele permaneceria intocável, ainda que visto por todos, desejado por todos, seria vender a ideia que muitos não admitem: o desejo pelo monstruoso.

Måneskin, a banda italiana ganhadora do Eurovision 2021, é basicamente sexo e monstruosidade. Talvez seja por isso que eles venceram a competição, ultrapassando seus concorrentes favoritados, que tinham todo o perfil dos ganhadores de anos anteriores: recatados, clássicos, ótimos, com certeza, mas perfeitos demais.

Integrantes da banda Måneskin: Victoria de Angelis (baixo), Damiano David (cantor), Ethan Torchio (bateria) e Thomas Raggi (guitarra)
Integrantes da banda italiana Måneskin: Victoria de Angelis (baixo), Damiano David (cantor), Ethan Torchio (bateria) e Thomas Raggi (guitarra). Foto: divulgação.
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É importante considerarmos alguns fatores para entendermos a vitória de Måneskin: eles são bons, é claro. A banda é maravilhosa, as músicas são contagiantes e todos os membros chamam a atenção de uma maneira que apenas um rockstar pode fazer. Mas outras bandas com perfis semelhantes já haviam aparecido no festival em anos anteriores, não alcançando o mesmo resultado. Isso sem falar em tudo o que aconteceu após o evento – o sucesso de Måneskin ultrapassou barreiras e a banda tornou-se hit em praticamente todo o mundo. E isso tem a ver com o momento atual.

O rock sempre foi um gênero que vigorou em momentos de tensão social. Tem a ver com liberdade, rebeldia, raiva, com tantas emoções e experiências que não são bem vistas pela sociedade, de maneira geral. E uma das características do rock clássico, que foi retomada pelo Måneskin, é a monstruosidade. Todos eles são jovens, bonitos de acordo com os padrões, exalam sensualidade… Mas, para além disso, eles também assumem identidades monstruosas em suas canções.

O flerte entre o horror e os desejos em suas canções

As letras flertam sempre com o horror, com os limites do desejo, com coisas que nos instigam, mas que não ousamos dizer. O single “I WANNA BE YOUR SLAVE” é um bom exemplo disso. A música expressa o desejo de ser escravizado pelo seu objeto de afeição, de pertencer a alguém, de forma sexual, sim, mas indo além em um jogo de provocações e posse. Não é bonito, não é cristão, mas é sedutor.

Cena do clipe I WANNA BE YOUR SLAVE
Cena do clipe I WANNA BE YOUR SLAVE. (reprodução)

Depois de um ano controlando impulsos, lidando com a morte diariamente e vendo o mundo explodir pouco a pouco, é natural que nos voltemos para os aspectos mais monstruosos de nossa personalidade. Damiano é o homem certo para nos liderar nessa volta ao rock provocativo, com referências de horror, algo aos moldes de Alice Cooper.

No videoclipe de “MAMMAMIA“, outra cena de horror: dessa vez, o slasher toma conta do cenário, com Victoria esfaqueando Damiano e bebendo seu sangue em seguida. É o grotesco, mas também o desejo: enquanto se destrói, se alimenta. Måneskin explora a violência como forma de arte e deixa claro que o mundo é o agora, e o agora é a vontade. Victoria toma posse da identidade de mulher-monstruosa, simplesmente seguindo em frente e deixando que a julguem como bem entenderem. Não é o julgamento alheio que afetará quem ela é – e suas escolhas são apenas dela.

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Victoria De Angelis, baixista da banda Måneskin, no clipe MAMMAMIA.
Victoria De Angelis, baixista da banda Måneskin, no clipe MAMMAMIA. (reprodução))
Cena do clipe MAMMAMIA, do Måneskin.
Cena do clipe MAMMAMIA, do Måneskin. (reprodução)

A definição medieval de monstro é a do verbo monstrare, que significa mostrar algo. Se aplicarmos isso ao horror, temos uma infinidade de subsignificados a partir disso. No Måneskin esses significados nos são jogados na cara em forma daquilo que almejamos. É sobre sexo, mas não apenas isso. É sobre ter a liberdade de expressar-se da maneira como bem se entender e não ser julgado por isso. Grotesco, sensual, provocativo – desde que haja o consentimento de todos os envolvidos, o que sobra quando se abraça os limites do horror que tanto nos instigam é puro prazer.

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Jornalista e pessoa da internet há uma década. Analista literária, quando não está lendo, escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre, onde está há vinte e poucos anos ajudando na entropia do universo.
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