Desde o pôster que registra apenas o rosto marcante de Seu Jorge até a última cena do filme, Wagner Moura não deixou dúvida que não estava de brincadeira e que seu primeiro longa-metragem como diretor seria grandioso ou, pelo menos, buscaria esse intento. Após os adiamentos da estreia devido o COVID-19 e a tentativa de censura no Brasil relatada pelo diretor, Marighella finalmente estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 04 de novembro.
Moura, em entrevista coletiva junto de parte do elenco do filme, contou aos jornalistas como escolheu seu Marighella. Inicialmente foi pensado para o rapper Mano Brown – o que, aliás, teria sido certeiro, pois há grande semelhança entre os dois (Carlos Marighella e Mano Brown) –, mas com a indisponibilidade de Brown, Wagner decidiu trazer a pauta racial para somar-se à questão da ditadura. Seu Jorge foi, então, o escolhido e o fez de forma potente e carismática.
Carlos Marighella, presente!
O Carlos Marighella que vimos na tela é mais do que poeta, deputado federal, professor e guerrilheiro: ele é simpático, carismático, forte, bom com as mulheres, sedutor, dono de muito bom humor, cuidador. Tudo foi pensado para que ele fosse perfeito e heroico… sem falhas e defeitos, quase uma entidade.
Em determinada cena do filme, Frei Henrique, amigo de Marighella e também apoiador da luta contra a ditadura, compartilha uma passagem sobre a vida de Jesus. Ele, inclusive, pontua o fato de que o filho de Deus era um homem de pele escura que abriu mão de sua condição de vida para lutar pelo seu povo e que defendia a luta armada. Assim como Marighella.
O Marighella retratado por Wagner Moura
Há uma atmosfera no longa que faz supor que Carlos tenha sido mais do que um herói em sua luta contra a opressão e a ditadura. Nas mãos de Seu Jorge e Wagner Moura, o revolucionário possui uma firmeza de caráter e valores morais que se contrapõem, não somente ao momento em que sua luta entrou para história, mas como uma espécie de resposta à crise moral, institucional e antidemocrática que estamos vivendo nesses últimos 6 anos – que vão desde o início do segundo mandato de Dilma Rousseff até o momento atual.
Fica evidente também que, ao optar por retratar um Marighella negro, o cineasta aposta na ideia de um homem do povo que simboliza a luta contra a opressão do colonialismo racial e escravagista presente na pauta das grandes ditaduras.
Com poucas presenças femininas, o filme se preocupa mais em construir a ideia desse homem protetor e correto que escolheu deixar sua família para seguir na luta armada. Às mulheres coube o papel de cuidarem de seus filhos e reconstruírem suas vidas a partir de seu legado ou morrerem ao lado de seus homens. Apenas uma mulher aparece no grupo de Marighella: uma jovem que, apesar de um aspecto frágil, se posiciona ao lado do guerrilheiro em defesa da pátria.
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Mesmo ela, com tamanha força, aparece sendo protegida ou sendo pautada pelo revolucionário. Não consideramos que o filme se oponha às mulheres, mas com certeza não as têm como pauta central do longa. Talvez a história pudesse nos colocar num pé de igualdade com esses e outros homens que conquistaram seu espaço e importância no mundo. Mas, é sabido, esse é um ponto ainda a ser conquistado pelas mulheres.
A origem de um revolucionário
Nascido em 1911, soteropolitano e filho de um imigrante italiano e de uma baiana negra nascida livre, filha de escravos sudaneses. Marighella foi morto a tiros, em 4 de novembro de 1969, numa emboscada de agentes do DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, órgão do governo brasileiro vigente durante o Estado Novo e também na Ditadura Militar. Marighella era deputado federal pelo PCD, também poeta e professor. Envolveu-se na política logo cedo, filiando-se ao PCD e militando contra ditadura através de sua arte e luta.
Depois de muito tempo na militância política, vinculado ao PCD e de muitas prisões e torturas, Marighella fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN) e liderou jovens estudantes determinados a lutarem com armas contra a Ditadura Militar. E é nesse ponto que o filme conta sua história.
Por fim, Wagner Moura imaginou, construiu e retratou a história de um mito à semelhança de seu povo, cuja missão é a de defender nosso país contra um outro “mito”. Este, por sua vez, bem menos intencionado e fechado com a propagação de uma política racista, higienista e sem freios morais.
Há muita ficção no filme Marighella e, independentemente do quão pretensioso isso possa nos parecer, dá um alento saber que a arte não morreu e que ela pode ser usada como manifesto e forma de expressão. Viva a arte, o cinema nacional e a cultura!
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O filme estreia nesta quinta-feira, 04 de novembro, apesar de ter sido finalizado em 2019. Muitos foram os problemas que impediram sua vinculação nos cinemas do país. A COVID-19 foi uma delas, claro, mas problemas burocráticos com a ANCINE dificultaram a distribuição do filme. O longa, que participou de inúmeros festivais internacionais, chega por fim ao Brasil exatamente na data que marca os 52 anos do assassinato de Carlos Marighella.