Filosofia encontra religião em “Duna”

Filosofia encontra religião em “Duna”

O elemento religioso impregna todo o hemisfério de Duna. Começando por seu protagonista, Paul Atreides, o Muad’Dib, o Usul, ao qual os fremen de Arrakis adotaram como uma criatura profetizada há muito. Ele viria pelas mãos de sua mãe e parte das provações que o jovem, com treinamento de Bebê Gesserit e cabeça Mentat, estão atrelados ao mérito da religião. 

A cultura em Arrakis é forte e dispõe de uma infinidade elementar. Podemos discutir o Hino à Água, proveniente do Litúrgico Católico de Orange. Todavia, não estranhem a menção do catolicismo na obra, pois ela se dá como uma linha contínua do mundo que hoje pisamos. E se sobrevivermos mais dois mil anos? Essa é a proposta de Duna

Pontes do presente, que levam ao futuro 

Paul Atreides (Timothée Chalame) em Duna, filme de 2021
Paul Atreides (Timothée Chalame) em Duna (2021), filme de Denis Villeneuve | Imagem: reprodução

Existem passagens nos livros que mencionam ditadores de passados não memoráveis aos personagens, mas que fazem parte da nossa história recente, como o próprio Hitler. Ou seja, elementos religiosos como resquícios do passado são comuns na saga de Duna. Os fremen, portanto, seguem sua própria espécie de bíblia; a Kitab al-Ibar. 

E para a Ascensão de Paul Atreides foram necessários alguns passos articulados não apenas pelo destino, como por pessoas tecendo aquele momento. Primeiro, houveram os Catorze Sábios que seguiam a Bíblia Católica de Orange, e seus pensamentos foram produzidos em textos pela “Comissão de Tradutores Ecumênicos”. 

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Depois, as Bene Gesserit, que para o mundo exterior não utilizavam meios religiosos, mas usavam do “misticismo ritualístico”, simbolismos, além de métodos que evocam a religiosidade. Temos também a Guilda, que pode ser classificada como agnóstica, não crente na religião e que achava tudo um espetáculo.

A irmandade Bene Gesserit em Duna (1984), filme de David Lynch
A irmandade Bene Gesserit em Duna (1984), filme de David Lynch | Imagem: reprodução

Nos preceitos de pão e circo para o povo, as Gesserit tinham a crença que os adventos religiosos poderiam ser facilmente explicados por ações mecânicas e físicas. Duna conta ainda com os ensinamentos antigos, protegidos e conservados pelos zen-sunitas, aos quais neste mundo pertencem ao primeiro, segundo e terceiro movimento islâmico. 

A religião como personagem em Duna 

Frank Herbert utilizou diversas fontes para construir uma diversidade religiosa. Existe o navacristianismo em Chusuk, variantes budislâmicas, Livros Mistos do Lankavatara maaiana, o Torá sobrevive em Salusa Secundus, o Corão ainda respira em Muadh, e suas Ilm e Fiqh seguem puras em Caladan; terra originária do duque Leto e Paul Atreides. O hindu também pode ser visto no universo de Duna e ainda há o Jihad Butleriano. E dentre tantas religiões e sincretismos temos a viagem espacial com tons sagrados. 

A capacidade de viajar pelo espaço deu uma índole singular à religião nos cento e dez séculos que precederam o Jihad Butleriano. Durante todo o primeiro livro vemos Muad’Dib tentando evitar uma jihad, pois sua cognição e visões seguem apontando como futuro certo. Em Duna, até mesmo o Gênesis ganhou nova leitura graças ao uso da viagem espacial. Segue: “Crescei e multiplicai-vos; enchei o universo e sujeita-o; e domingo sobre toda sorte de animais estranhos e criaturas vivas nos infinitos ares e nas infinitas terras abaixo deles.” Essa seria a redefinição de Deus sobre o preceito do Gênesis.

A religião como personagem em Duna 
Lady Jessica e Paul Atreides em Duna (2021) | Imagem: reprodução
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E da religião, eventualmente, nasceu o conflito. Foram duas gerações envolvidas em clima violento, antes que a humanidade fosse capaz de reavaliar seu comportamento e perceber que tinham sido possuídos pelo medo e ambição. Continuando o raciocínio da linha temporal de Duna, a Guilda Espacial agnóstica estimulou o diálogo entre líderes das mais diversas religiões, e os encontros também foram estimulados pelas Bene Gesserit, conhecidas como feiticeiras. Dos encontros, é satisfatório falar que chegaram em duas conclusões: 

  1. Todas as religiões concordam em “Não desfigurar a alma”.
  2. Numa Comissão de Tradutores Ecumênicos.

Os livros de Herbert não apenas utilizaram religiões existentes, como do sincretismo e da criação de novos preceitos para preencher os dois mil anos entre o presente e os tempos de Muad’Dib. A religião, portanto, é o fio condutor da trama de Duna. E algo que todas essas religiões têm em comum é a crença de que existe, sim, uma essência divina pairando no universo. Músicas e cânticos foram criados sendo a prosa do universo belo e rico em aspectos multifacetados. 

História, antropologia e conhecimento em Duna

História, antropologia e conhecimento em Duna
Cena de Duna (2021) | Imagem: reprodução

Junto com a religião vieram os historiadores. Eles são os responsáveis por diversas explicações ao longo dos livros e pelo ensinamento repassado ao longo de séculos. Nas páginas daqueles responsáveis por contar a história, porém, existem muitas manchas de sangue.

Em Duna, a taxa de morte por conflitos fica sempre na casa dos milhões; pois estão lidando com o universo, não com um planeta em singular. Até mesmo bardos e trovadores fazem parte da espinha dorsal da saga. Com seus cantos, a história foi repassada pelo vento, atravessando vácuos na Galáxia e revelando a verdade para muitos. 

O grau de complexidade numa obra como a de Frank Herbert exige do público um prazer em se aventurar por algo completamente novo; que ao mesmo tempo entrega uma breve sensação de pés descalços tocando o chão. 

Mas não se engane, “bruxas” como as Gesserit usam narcóticos leves, desenvolvendo habilidades chamadas “prana-bind”, além de criarem a Missionária Protectora, uma voz de superstição em meio aos homens. Dentre outros elementos, finalmente podemos cronologicamente explicar que a Bíblia Católica de Orange foi uma obra criada ao longo de sete anos pela união dessas forças religiosas. Junto com ela vieram o Manual Litúrgico e os Comentários. Ou seja, uma estrutura arquitetônica vista apenas em épicos capazes de atravessar o tempo – como Tolkien e sua obra centenária. 

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Em Duna a religião é um escape. Uma fuga aos homens sem propósito. Algo quase paralelo com a vida real. É o caso daqueles que buscam as respostas apenas por estarem numa vida vaga, sem propósito. Mas não existe apenas a crença religiosa cega no universo de tantos personagens; muitos são céticos, acreditando que tudo não passa de uma grande cadeia alimentar criada pelos líderes dos grupos. 

Paul Atreides, todavia, não foge da religião, mesmo que tente. Ele é, afinal de contas, o “Kwisatz Haderach”, alguém procurado pela Irmandade Gesserit. Uma tradução do título seria “aquele capaz de estar em dois lugares simultaneamente”. Um extrato dos livros, porém, deixa claro o que Paul pensa sobre sua posição: 

Sou uma rede no mar do tempo, livre para dragar o passado e o futuro. Sou uma membrana em movimento da qual nenhuma possibilidade consegue escapar. 

Muad’Dib

Muad'Dib - Duna
Paul Atreides em Duna (2021) | Imagem: reprodução

Paul, na figura do Muad’Dib, criou diversos preceitos e ensinamentos que não deixaram de lado o povo que lhe acolheu, os fremen do deserto. Ao contrário de muitas figuras literárias brancas que tentam transformar a cultura do povo, ele tentou mudanças com os preceitos de quem o acolheu. Ele é o Messias de Duna, a figura mais importante que encontramos durante toda a saga. Mas, como fica claro ao explicar a linha do tempo, houve uma roda giratória, uma ampulheta funcionando para que os tempos de Atreides se tornassem realidade. 

Dessa forma, Frank Herbert nos levou para um lugar onde o cantar da areia é um presságio, onde a humanidade ergue o punho para a Primeira Lua. Somos conduzidas, portanto, para a crença no coletivo antropológico, de que a carne dos humanos sempre pertence a eles, mas água será dividida com a tribo. E o maior dos ensinamentos, entre tantas tramoias e redes de conspiração, vem do povo desértico: o mistério da vida não é um problema a ser resolvido e sim uma realidade a ser vivida. 


publi

Arte em destaque e revisão por Isabelle Simões.

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Escrevo onde meu coração me leva. Apaixonada pelo poder das palavras, tentando conquistar meu espaço nesse mundo, uma frase de cada vez.
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