“Bom dia, Verônica” e a misoginia estrutural brasileira

“Bom dia, Verônica” e a misoginia estrutural brasileira

No dia primeiro de outubro a Netflix disponibilizou os oito episódios da série de suspense policial: Bom dia, Verônica. Com roteiro adaptado do livro de mesmo nome, escrito pela criminalista Ilana Casoy e Raphael Montes sob a alcunha de Andrea Killmore.

Verônica Torres, vivida pela atriz Tainá Müller, é uma escrivã com talento e pretensões de investigadora e um passado misterioso envolvendo a morte dos pais. A série vem recebendo ótimo retorno de público e crítica desde o seu lançamento, e concordamos que pode ser um marco de qualidade para produções de gênero nacionais.

Ilana Casoy e Raphael Montes, autores de "Bom dia, Verônica".
Raphael Montes e Ilana Casoy, autores de “Bom dia, Verônica”. (Imagem: reprodução)

Verônica não pode necessariamente ser considerada uma anti-heroína, porque apesar de suas escolhas controversas, podemos levar em consideração seu senso moral. Aliás, é por seu caráter que ela enfrenta os maiores conflitos vividos na série. No entanto, a escrivã pode nos remeter a alguns personagens autodestrutivos clássicos da nova onda da televisão mundial, como o Detetive Ambrose, da série The Sinner, ou o agente do FBI, Holden Fort, de Mindhunter. Além disso, Verônica nos faz lembrar de outra personagem célebre desse século, Lisbeth Salander da saga Millenium, ou Os homens que não amavam as mulheres, do autor Stieg Larsson

O texto abaixo não contém spoilers de Bom dia, Verônica (série ou livro)

Os espaços onde a história acontece

Verônica Torres (Tainá Mullër) em "Bom dia, Verônica".
Verônica Torres (Tainá Müller) em “Bom dia, Verônica”. (Imagem: Netflix/divulgação)

A série tem como cenário a cidade de São Paulo, que se divide entre três grandes espaços com muitos significados durante a narrativa. Primeiramente, temos a delegacia de polícia da divisão de homicídios, onde a protagonista trabalha e que, convenhamos, parece mais uma agência moderna de publicidade. É lá que nos primeiros momentos da série uma mulher, vítima de um golpista da internet, se suicida na frente de todos. Principalmente de Verônica, a ponto de espirrar o sangue da mulher em seu rosto. Isso vai determinar o incidente que a leva a buscar justiça às mulheres e se posicionar para além de sua função subalterna.

O segundo cenário é a casa de Verônica, onde ela vive confortavelmente com seu marido Paulo (César Mello), e os dois filhos pré adolescentes. Descobrimos que a casa era de seus pais, além dela ter um cômodo fechado a chaves que causa a curiosidade de seu filho. O pai da Verônica, importante dizer, era melhor amigo do seu atual chefe e padrinho, o delegado Wilson (Antônio Grassi).

Como terceira locação principal temos a casa do coronel Cláudio Brandão (Eduardo Moscovis), o companheiro de Janete (Camila Morgado). O casal, que aparentemente vive um conto de fadas entre quatro paredes, apresenta uma história de terror e a escalada clássica da violência marital. Janete vive presa, praticamente como refém e é forçada a acompanhar o companheiro em situações ultrajantes. Não vamos falar mais do que isso para não estragar a experiência.

Escolhas narrativas que preservam a mulher

Janete (Camila Morgado) e Cláudio (Eduardo Moscovis) em "Bom dia, Verôinica".
Janete (Camila Morgado) e Cláudio (Eduardo Moscovis) em “Bom dia, Verônica”. (Imagem: Netflix/divulgação)

A premissa de Bom dia, Verônica é falar da violência doméstica, principalmente no contexto brasileiro, onde o feminicídio foi só recentemente reconhecido como uma forma ainda mais torpe de assassinato. Entendendo que mulheres diariamente são mortas por serem mulheres. Ou por não satisfazerem a prerrogativa do sistema patriarcal onde são colocadas como objeto.

Ficamos, dessa forma, com a sensação de que evoluímos em relação a essa triste realidade, mas não espere otimismo em Bom dia, Verônica ao mostrar a forma como o sistema trata as mulheres. É quase revigorante sair um pouco dessa ilusão coletiva do empoderamento feminino, para colocar o dedo na ferida crônica do machismo. É importante, no entanto, deixar claro que a série é pesada emocionalmente e pode servir de gatilho para muitas mulheres. 

Entretanto, admiramos as escolhas narrativas da série que fazem o possível para evitar sequências longas de violência. Preferindo, por exemplo, mostrar a mulher ferida, ao invés de a mostrar apanhando. Portanto, a história continua a ser contada sem esse tipo de recurso, além de não fetichizar esse tipo de situação, como já vimos exaustivamente em outras obras. Um exemplo de como é desnecessário mostrar esse tipo de cena longa está em Irreversível , do diretor Gaspar Noé. O filme de 2002 mostra uma sequência de estupro de mais de dez minutos com a atriz Monica Bellucci.

“Bom dia, Verônica” e o preconceito com a produção nacional

Verônica e Anita Berlinger (Elisa Volpatto) na produção nacional.
Verônica e Anita Berlinger (Elisa Volpatto) em “Bom dia, Verônica”. (Imagem: Netflix/divulgação)

Há uma linha tênue entre ter complexo de vira lata e também assumir que o Brasil já produziu nos últimos tempos algumas pérolas – no mal sentido –  para o cinema e TV. Entretanto, em Bom dia, Verônica é quase consenso que estamos chegando em um outro patamar.

Muitos ficavam incomodados com as atuações um tanto quanto novelescas e exageradas da formação rede Globo. Outros até mesmo se incomodavam com o som direto que parecia ecoar as vozes dos atores. No entanto, o ponto mais complicado sempre foi o roteiro, que trabalha como fio condutor das tramas e orienta o elenco. Ou seja, uma história bem construída e com personagens complexos no papel, dificilmente será ruim ou mal interpretada.

Portanto, quando pensamos em audiovisual, pensamos em uma orquestra formada por inúmeros profissionais importantes para o resultado final. Por exemplo, nos filmes, o maestro é o diretor, já nas séries, o peso maior fica para o líder dos roteiristas ou showrunner, como dizem nos EUA. Dessa forma, o roteiro de Bom dia, Verônica tem a participação dos escritores do livro original, além de Carol Garcia, Davi Kolb e Gustavo Bragança. Na direção, Rog Souza, José Henrique Fonseca e Izabel Jaguaribe.

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Além disso, precisamos falar sobre a escolha de elenco. Tainá Müller se mostra consistente como Verônica Torres, trazendo a vulnerabilidade que constrói essa personagem determinada e talentosa. Mas quem rouba a cena mesmo é o casal de “passarinhos”, Claudio e Janete. Moscovis consegue entregar um marido violento que, na verdade, aos olhos da sociedade é um cara legal e agradável. Suas nuances e performance estão impecáveis e será difícil voltar a simpatizar com o ator após essa atuação.

Porém, não é fácil fazer o que Camila Morgado faz. A atriz também entrega tudo em cena. Nosso único ponto de crítica é a escolha da antagonista de Verônica, a delegada Anita Berlinger. A atriz Elisa Volpatto acaba ficando aquém do resto do elenco, especialmente nos embates em cenas com Müller.

De Ângela Diniz a Mari Ferrer: a misoginia estrutural

Cena de “Bom dia, Verônica”.  (Imagem: Netflix/divulgação)

No último dia 03 de novembro as brasileiras, e alguns aliados, assistiram estarrecidos a partes do julgamento do estuprador da catarinense Mariana Ferrer. Nele, a jovem é humilhada e colocada sob os holofotes, sendo julgada pelo advogado da defesa. Três décadas atrás o Brasil viveu o mesmo no caso, com o feminicídio de Ângela Diniz por seu namorado, Doca Street.

O caso se tornou novamente assunto através do excelente podcast A praia dos Ossos, produzido pela Rádio Novelo e idealizado por Branca Vianna (do Podcast Maria Vai com as Outras). No caso Diniz/Street, a mulher assassinada foi julgada por suas escolhas pessoais que saíam da convenção do esperado pelas mulheres. Por isso, seu assassino foi praticamente considerado inocente e saiu aplaudido do Tribunal.

A fumaça publicitária levantada nos últimos anos em torno do tema do empoderamento feminino, esconde um perigo grande de acharmos que o machismo se enfraqueceu, enquanto casos como o de Mari Ferrer seguem existindo. Claro que hoje temos um rechaço popular grande frente a esse tipo de acontecimento, principalmente na internet, que vem servindo como um grande meio de informação sobre pautas feministas.

Porém, é importante compreender que esse homem violento, machista e estuprador está em todos os lugares. Ele é nosso amigo, nosso colega de trabalho, muitas vezes alguém que nós gostamos. É necessário estarmos atentas, não só conosco mesmas, mas com as outras mulheres.

Próximas temporadas

A Netflix ainda não confirmou uma segunda temporada, mas existem grandes chances de que isso aconteça. No paralelo, a dupla que forma Andrea Killmore, Ilana e Raphael, já estão escrevendo a sequência do livro, que deve se chamar Boa tarde, Verônica. Além disso, a saga foi pensada como trilogia, então o último livro seria Boa Noite, Verônica.

Há rumores de que a próxima temporada só estaria disponível na Netflix a partir de outubro de 2021, porém vamos torcer para que tenhamos as confirmações logo, porque ainda há muito para conhecer da história de Verônica e o desenrolar de sua vida.

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Jacu metropolitana com mente abstrata, salva da realidade pelas ficções. Formada em comunicação social, publicitária em atividade e estudante de Filosofia. Mais de trinta anos sem nunca deixar comida no prato.
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