The Sinner: a mulher por trás da pecadora

The Sinner: a mulher por trás da pecadora

The Sinner, minissérie produzida pela USA Network e baseada no romance policial The Sinner (1999), da escritora alemã Petra Hammesfahr, passou a fazer parte do catálogo da Netflix brasileira no final de 2017. Assim que seu último episódio foi exibido pela emissora americana, com especulações sobre uma segunda temporada por parte de seus criadores, começaram a surgir boatos sobre ser transformada em série. Recentemente, recebeu duas indicações ao Globo de Ouro: Melhor Minissérie ou Filme Para TV e Melhor Atriz em Minissérie ou Filme Para TV, categoria em que Jessica Biel concorre pelo papel de Cora.

Transitando entre a imagem da esposa “perfeita” e a da mulher real: cheia de traumas, vontades e desespero pela liberdade, Jessica Biel nos traz uma personagem intensa e bem construída. Cora trabalha na empresa de refrigeração/ar-condicionado do sogro, é mãe, cuida da casa, e ainda tenta manter uma relação equilibrada com seu marido Mason (Christopher Abbott), que não consegue se desligar dos cuidados oferecidos pela mãe, já que esta vive na casa ao lado.

Num primeiro instante, vemos uma mulher presa a uma rotina claustrofóbica e psicologicamente exaustiva. Em um fim de semana, durante um passeio, Cora parece mais ausente que o normal. A família decide ir à praia na pequena cidade onde vivem. Ela e o marido conhecem grande parte dos frequentadores do local, logo são convidados a se juntarem à algumas famílias. Vemos a personagem incomodada e adiando essa aproximação por um tempo.

Aos poucos, o foco de seus olhares começam a convergir para Frankie Belmont (Eric Todd) e para a namorada. A moça põe uma música para tocar, comentando ser uma antiga canção de Frankie e sua banda. Cora subitamente se levanta e dá sete facadas no rapaz. A cena é rápida e certeira, a ação não pede uma explicação mais profunda: uma mulher esfaqueou e matou um homem. Assim como no formato de How to get away with murder, a trama se desenrola a partir do assassinato. Porém em The Sinner fica claro quem é a assassina desde o início, o papel dos investigadores é descobrir o por quê.

The Sinner
Cora (Jessica Biel)

A ideia não é justificar esse assassinato e sim entender o que levou Cora a cometer tal ação. Algumas relações abusivas e tóxicas podem ter influenciado na criação da personalidade da personagem, desde sua infância. Não será discutido sobre o que é considerado certo ou errado dentro das normas sociais, e sim notar como a personagem foi adquirindo determinado perfil, após ser exposta à repetição de discursos e atitudes. A partir deste ponto, você poderá encontrar spoilers. Caso não esteja confortável, por favor pare a leitura por aqui.

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Cora e os pais

Na série, a espectadora não tem muitas informações sobre a vida da pequena Cora antes do nascimento da irmã Phoebe (Nadia Alexander). A mãe, Elizabeth Lacey (Enid Grahan), não esconde sua preferência pela filha caçula. Os flashbacks apresentados ao espectador são lembranças da infância da protagonista, então o incômodo causado por algumas cenas são acentuados.

“ Quando você era um bebê dentro de mim, você sugou todas as minhas forças. O bastante para três bebês. Quando a Phoebe veio, não restava nada para ela. Por isso ela está tão doente”. (Elizabeth Lacey em conversa com Cora quando criança.)

Elizabeth se mostra extremamente abusiva em relação à filha. Colocando Deus como entidade máxima, detentora de todo poder e vingativa; a mãe passa a associar qualquer sintoma agravante na saúde de Phoebe aos pequenos ‘pecados’ cometidos pela irmã mais velha. O pai não parece se importar com a situação e apenas acata o que a esposa diz, sem intervir a favor da filha. Em momento algum Cora é protegida, apenas atacada. Aos poucos, ela passa a não tomar certas atitudes por sentir medo dos castigos impostos pela mãe. A cada questionamento, por ser obrigada a pedir perdão à Deus, aprende que deve se calar e apenas aceitar o que lhe é imposto.

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Cora (Augie Murphy) e Phoebe (Rileigh McDonald)

Os pais vivem em um casamento falido. Desde o nascimento da filha menor, por temer pela vida desta, Elizabeth obriga o marido a dormir no quarto com Cora. Dentro da religião seguida pela família, o divórcio parece não ser uma opção. A figura patriarcal da família, começa uma relação extra-conjugal com a vizinha ao invés de recorrer a uma separação.

Quando Cora questiona o pai sobre o assunto, o mesmo não nega, mas não faz menção alguma sobre mudar sua atual rotina. Esse elemento parece ser inserido para ‘tornar’ suportável a convivência entre os dois cônjuges. A relação de traição dentro do relacionamento, ainda que apenas por parte do pai, pode ter sido inconscientemente naturalizada na mente de Cora. O que justificaria a aceitação, quase passiva, das traições do seu primeiro namorado J.D. (Jacob Pitts).

Cora e Phoebe

Desde o nascimento de Phoebe, Cora passa a ser mais severamente punida pela mãe. Por ter uma personalidade passiva, raramente a combate. Phoebe em contrapartida, busca pela mudança. Talvez por não poder sair da casa, a não ser quando vai ao hospital, a menina não se contenta apenas com aquela visão de mundo, questiona e anseia por mais.

Phoebe passa então a exercer uma relação de controle sobre Cora, manipulando-a e tentando viver por meio da irmã. A mais velha, talvez por se sentir culpada após tantos anos de acusações feitas pela mãe, cede a todos os seus pedidos. Phoebe, muitas vezes, cumpre o papel de mostrar para Cora que existe ‘mundo’ além de Elizabeth. Desde o primeiro beijo, até emprego, sexo e uma possível vida longe dos pais; são interesses e vontades de Phoebe e induzidos à irmã. Cora aos poucos sai da ‘bolha’, o que não diminui o peso, e responsabilidade, das manipulações de Phoebe sobre ela.

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Cora (Jessica Biel) e Phoebe (Nadia Alexander)

Em busca de sua liberdade, Phoebe elabora um plano para arrecadar dinheiro: Cora deveria furtar os homens com os quais Phoebe marcaria encontros, e ambas utilizariam o dinheiro para começar uma nova vida em outra cidade. Porém, Cora conhece J.D. e se apaixona. Ao mesmo tempo em que Phoebe teme que seus planos sejam arruinados, ela vê uma oportunidade para satisfazer mais um de seus desejos. Ela pede que Cora a toque, assim como J.D. faz com ela. Mais uma vez Cora não consegue negar o pedido, apesar de relutar no início.

Apesar dos inúmeros traumas causados pela irmã, Cora não consegue relacioná-la com algo ruim. Isso pode ser observado nos momentos de flashback em que a mente da protagonista altera a imagem de Phoebe pela de Maddie (Danielle Burgess), ex namorada de J.D.. As imagens reais só ficam claras na mente de Cora quando ela se mostra disposta a entender o que aconteceu naquela noite. Mais a frente, esses episódios explicariam sua súbita reação ao ouvir a música na praia e esfaquear Frankie Belmont.

Cora e J.D.

J.D. foi o primeiro amor da protagonista. Com um discurso que exaltava a beleza e qualidades de Cora, elogios que ela nunca havia recebido, não precisou de muito para que a moça acreditar que o amor de J.D. era suficiente. Novamente ela entra numa relação abusiva. O namorado a manipula para conseguir o que quer. Cora não o questiona, mesmo quando percebe que ele ainda mantém um relacionamento com a ex.

Quando Maddie contou sobre uma suposta ex de J.D. ter engravidado, e mesmo quando o próprio J.D. confirma que essa ex é Maddie, e fala sobre ter ficado feliz quando a moça foi atropelada e perdeu o bebê, Cora não vai embora. Ela só toma coragem para se afastar quando ele tenta vendê-la como prostituta para um de seus clientes.

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J.D.(Jacob Pitts) e Maddie (Danielle Burgess)

Apesar de incomodada, novamente a felicidade de Phoebe entra em primeiro lugar. Por intermédio de J.D., Phoebe e Frankie se conhecem. Cora, pensando na felicidade da irmã, cede e decide ficar. Logo ela é drogada por J.D., que a estupra, juntamente com seu cliente. Em paralelo, Frankie e Phoebe fazem sexo. Phoebe tem uma parada cardíaca, Cora assiste a tudo sem conseguir reagir, Frankie tenta reanimá-la mas não consegue. Ao fundo toca a mesma música que anos mais tarde Cora ouviria na praia.

Cora e os pais de Frankie

Após Phoebe morrer, Cora entra em desespero. Com um golpe na cabeça, J.D. a faz desmaiar. Como a família de Frankie é rica, J.D. vê neles uma forma de ‘limpar’ a situação, encobrir a morte de Phoebe e continuar com seu negócio de drogas.

Os pais de Frankie acreditam que o filho matou Phoebe. Cora é a única testemunha. Nesse contexto, mais abusos são cometidos contra Cora. Cora está debilitada, machucada e confusa. Sem coragem para matá-la, o pai de Frankie começa a aplicar heroína em seus braços e a fazer uma espécie de jogo do horror, com a finalidade de fazê-la criar um ‘bloqueio’ e não lembrar dos acontecimentos na casa. Ao fim do processo, Cora esqueceu da noite da morte de Phoebe e não se lembrava dos dois meses passados sob tortura. Nos anos seguintes, ela se lembrava apenas de alguns detalhes dos locais em que ficou: um símbolo impresso no papel de parede em um quarto, semelhante ao impresso na nota de um dólar.

Entendimento e superação

Quando Cora chega ao tribunal, vemos uma mulher exausta física e psicologicamente. Apesar de querer ver o filho, e se mostrar extremamente preocupada com ele, em momento algum cogita pedir para ser julgada. Como a mãe sempre exaltou: ao cometer um ‘pecado’ ela deveria se arrepender e ser punida.

A única salvação de Cora, parece ser o investigador Harry Ambrose (Bill Pullman). Ambrose não se contenta em apenas aceitar o assassinato sem uma lógica. Muito provavelmente essa é a relação mais empática que podemos observar dentro da série. A cada lembrança de Cora, o investigador busca uma lógica e tenta ajudar. Essa relação pode ser vista como uma forma de busca de redenção para Ambrose, tendo em vista a relação de dominação e submissão, fora de seu casamento, mantida por ele há longos anos.

Com muita dificuldade, o investigador consegue meios de ajudar Cora a se lembrar de seu passado. Aos poucos, vemos a protagonista passar por um duro processo de entendimento dos seus traumas desde a infância. Quando ela se lembra de como foi torturada na casa dos pais de Frankie, a sensação passada ao espectador é de que ela consegue finalmente ficar em paz. Pela primeira vez, Cora tem total consciência de qual foi seu ‘pecado’ e do porquê dele ter sido cometido. Ela consegue entender os motivos pelos pais de sua vítima a terem torturado no passado. Não é um momento de perdão ou pedido de desculpas, apenas de superação. Cora está pronta para pagar sua pena.

Considerações Finais

No geral, The Sinner é uma série envolvente. Deixa algumas ‘pontas soltas’, como os pais não irem atrás de Phoebe depois que Cora é encontrada na rua e enviada à reabilitação. Quando Ambrose conversa com eles, apenas falam sobre a filha caçula ter morrido, mas não sobre tê-la procurado. Tirando isso, é uma série digna de maratona.

A personagem Cora foi muito bem construída e Jessica Biel consegue segurar a espectadora durante toda temporada. Apesar disso, a história de Cora talvez não tenha fôlego para uma segunda temporada. Uma especulação válida é o melhor desenvolvimento do personagem Harry Ambrose, que apesar de muito importante para a narrativa, teve um desenvolvimento superficial nessa temporada de The Sinner.

Autora convidada: Patrícia Custódio é formada em Cinema e Audiovisual, trabalha como Assistente de direção e reveza seu universo pessoal entre palavras, música e fotografia.

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