“Nunca Fui Santa” (2000), “Assunto de Meninas” (2001) e até mesmo “Pária” (2011) são filmes – clássicos – que abordam a identidade lésbica na adolescência como uma jornada dolorosa e/ou grandiosa de descoberta da própria sexualidade – construção comum a esse tipo de narrativa, seja no formato de comédia, drama ou num arco complexo de sexualidade e raça. “Booksmart“, estreia de Olivia Wilde como diretora, traz uma outra perspectiva para a representação da lésbica jovem no cinema.
A comédia adolescente, lançada no Brasil com o título “Fora de Série“, é centrada em Amy (Kaitlyn Denver) e Molly (Beanie Feldstein) em seu último dia de ensino médio. Alunas exemplares, as duas passaram os últimos quatro anos escolares sem vida social além da amizade cultivada entre elas, com foco único nos estudos e em garantir uma boa vaga na universidade dos sonhos. Às vésperas da cerimônia de graduação, no entanto, as amigas decidem viver toda a efervescência social da qual abriram mão em uma única noite, na festa de despedida da turma.
Mesmo a mais recente produção com narrativa semelhante, o “O Mau Exemplo de Cameron Post” (lançado no Brasil tardiamente em abril deste ano), traz a nuance da dúvida e da descoberta na personagem-título, principalmente quando é submetida ao retiro de reversão sexual que permeia a trama. “Booksmart“, ao apresentar uma nova perspectiva para a história de uma personagem lésbica adolescente – longe da tragédia, do sofrimento ou do tradicional arco da descoberta –, não somente renova as formas de representação dessa identidade no cinema como também abraça as novas histórias que surgem.
Quebra de estereótipos em “Booksmart”
Desde o primeiro momento em “Booksmart” a construção de Amy é alheia ao que normalmente é visto nesse tipo de narrativa. Assumidamente lésbica e bem resolvida quanto à sua sexualidade mesmo que ainda jovem, a personagem não se sustenta no arco da descoberta e questionamento tendo toda a sua personalidade dependente dessa identidade. Pelo contrário, o seu arco parte de uma das consequências de ter se resguardado de vida social pelos estudos: ainda não ter beijado a primeira garota ou tido sua primeira relação íntima.
Inclusive, ao discutir isso na trama, Amy e Molly falam abertamente sobre sexo, masturbação e seus desejos sexuais, de forma completamente natural e cotidiana, não caindo no silenciamento de não discutir a sexualidade de mulheres ou de fadar esse tipo de descoberta ao plano unicamente sensual. É uma cena leve, com teor cômico como todo o filme, mas facilmente identificável para quem teve uma amiga com quem conversar “coisas proibidas” na adolescência.
Outro ponto abordado por “Booksmart” é a quebra do estereótipo físico atribuído às identidades lésbicas não só no cinema, mas na sociedade. Amy não possui nenhum traço caricato de aparência: os cabelos são longos e as roupas lidas como femininas. Essa quebra é mais explícita no arco de Ryan (Victoria Ruesga), interesse amoroso platônico da protagonista. Skatista, de cabelo curto, com roupas e atitude lidas como masculinas e atribuídas às lésbicas, a personagem é um dos maiores motivos que contribuem para Amy aceitar ir à festa: dar o primeiro beijo na garota com quem tem sonhado nos anos de escola.
Contudo, em um plot twist, Ryan surpreende não somente a expectativa da personagem principal de se envolver com ela, mas a da estereotipação de ser lida direta e categoricamente como lésbica ao ser flagrada aos beijos com outro personagem – do gênero masculino. Essa reviravolta na perspectiva de Amy – e de Molly, que afirmava com certeza a sexualidade de Ryan – acaba por ser gancho de uma outra reviravolta na busca da protagonista de finalmente beijar uma garota e ter sua primeira vez: uma segunda personagem que, novamente, não cai no estereótipo da identidade lésbica.
Até mesmo a cena em que Amy consegue realizar seu objetivo na noite de fuga de sua personalidade “certinha” é construída fora do romance adolescente tradicional. O momento de intimidade da protagonista com a personagem que se torna seu segundo e surpreendente interesse amoroso é posto com a mesma naturalidade e identificação com o cotidiano, com a dificuldade esquisita que é tirar a roupa nesse momento ou de não entender muito bem o que fazer e como fazer ao ser inexperiente.
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Um final feliz para a representatividade
Para além da ausência de representação plural e cuidadosa, há uma sombra densa sobre a representação de personagens lésbicas no cinema e na TV chamada de Dead Lesbian Syndrome – a Síndrome da Lésbica Morta –, em que um número massivo das personagens representadas acaba tendo seus arcos envoltos unicamente em tragédias ou sendo mortas como justificativa de roteiro. O cinema – e a produção audiovisual em si – existe não somente como meio para a representação já espelhada de identidades, mas também como uma busca que ajuda a formar identidades sendo descobertas que buscam se espelhar.
Beanie Feldstein, que atualmente está em um relacionamento com outra mulher, disse em uma entrevista que assistir a forma como o filme constrói a personagem de Amy foi profundamente significante para ela e que, se tivesse visto a montagem final da produção antes, talvez tivesse entendido a própria identidade mais cedo.
Embora o número de jovens escondidas e sofrendo violências ainda continue alto e preocupante, comparando com as décadas anteriores, o volume de adolescentes saindo do armário e assumindo suas sexualidades de forma bem resolvida e plena cada vez mais cedo tem sido significativo – e é importante que essas novas histórias sejam vistas na tela e que rompam com o aspecto assustador e mórbido dessa “síndrome”.
Ter uma produção que pode não ser impecável ou um masterpiece, mas que apresenta um cuidado com a representação e uma nova perspectiva positiva, realista e leve para a vivência de uma das formas da sexualidade feminina, é um fôlego necessário para quem tanto busca se ver além das tragédias. “Booksmart” faz isso.
Edição realizada por Gabriela Prado.