Representação lésbica nos anos 90: categorização da mulher homossexual no audiovisual

Representação lésbica nos anos 90: categorização da mulher homossexual no audiovisual

Até o final dos anos 80, a lésbica era representada no cinema e na TV, predominantemente, como louca, vampiresca, estranha, perigosa, neurótica, criminosa, masculina ou predatória. É nos anos 90 quando essa representação começa a ficar mais diversificada e a ser mais positiva.

O início da representação lésbica na televisão

Nesse momento, aparecem dois novos estereótipos de representação das lésbicas: a lesbian chic e a butch. A lesbian chic é feminina e sensual, representa a visibilidade lésbica transformada em consumo: é semipornográfica, inofensiva e parece ter sido criada mais para atrair a audiência masculina que para agradar à audiência lésbica ou em geral. Ela não consegue representar o desejo entre duas mulheres, já que esse desejo não é mostrado na tela. Além disso, em geral, a lesbian chic é branca e de classe média alta. Quando aparecem mulheres que não abarcam essas características, elas são representadas como problemáticas ou doentes.

Um dos momentos mais marcantes dessa mudança nos anos 90 foi um episódio da série “Ellen” (1994-1998), quando a protagonista sai do armário e diz ser lésbica. Ao mesmo tempo, a atriz que a interpretava, Ellen DeGeneris, fez o mesmo na vida real. A reação da audiência foi positiva e, apesar de a série ter sido cancelada algum tempo depois por ter ficado “muito gay”, outras produções se aproveitaram do sucesso de Ellen para ter êxito, como “Will and Grace” (1998-2006), que acaba de voltar às telinhas. Também é nesse período que aparecem filmes como “Procurando Amy” (Kevin Smith,1997) e “Até as Últimas Consequências” (F. Gary Gray, 1996) ou séries como “Friends” (1994-2004) e “Louco por Você” (1992-1999). Vamos ver um pouco como tudo aconteceu.

representação lésbica nos anos 90
GIF: reprodução

Em “Friends“, temos a cena do casamento entre Carol Willick (Jane Sibbett) e Susan Brunch (Jessica Hecht). As duas elegantes noivas não se pareciam em nada com lésbicas estereotipadas. Essas cenas poderiam insinuar que mesmo garotas que “não parecem lésbicas” são. Um dos problemas do casal gay de “Friends” é justamente o fato de parecer que elas nunca faziam sexo e também não tinham amigas.

Já o casal de lésbicas de “Louco por Você“, Debbie Buchman (Robin Bartlett) e Joan Golfinos (Suzie Plakson), assim como o casal formado por Marla (Morgan Fairchild) e Nancy Bartlett Thomas (Sandra Bernhard) na série original “Roseanne” (1988-1997), também trazem representações ou corpos consumíveis, ou seja, como os corpos das mulheres heterossexuais exibidos em revistas femininas. As duas séries também devem voltar às telinhas em breve.

representação lésbica nos anos 90
Carol e Susan em “Friends” (Imagem: reprodução)
representação lésbica nos anos 90
Debbie e Joan em “Louco por Você” (Imagem: reprodução)
representação lésbica nos anos 90
Marlo e Nancy em “Roseanne” (Imagem: reprodução)

Por outro lado, um filme considerado um bom exemplo de uma representação mais diversificada é “Ligadas pelo Desejo” (1996). Nele, Jennifer Tilly é Violet, a femme do casal, enquanto Gina Gershon é a sexy-butch, Corky, que consegue ser “masculina”, conectada à classe trabalhadora por causa da sua forma de se vestir e pelo o fato de ser pintora de parede e bombeira hidráulica, e “feminina”, ao mesmo tempo, por causa dos lábios carnudos e sensuais, pelo olhar e pela interpretação da atriz. Além disso, é o corpo de Gershon que aparece totalmente nu no filme, não o da femme Violet.

lésbica
Corky e Violet em “Ligadas pelo Desejo” (Imagem: reprodução)

A fixação do homem heterossexual em mudar a sexualidade de uma lésbica

Em “Procura-se Amy” (Kevin Smith, 1997), um autor de revista em quadrinhos, Holden McNeil (Ben Affleck), se interessa por outra desenhista Alyssa Jones (Joey Lauren Adams), descobre que ela é homossexual e a persegue até que ficam juntos/as e apaixonados/as para logo terminarem. O filme recebeu críticas positivas como sendo um retrato honesto de como o amor ultrapassa todos os limites. O que pode ter atraído a audiência comercial foi a mensagem: “Não é quem você ama, mas como” ou o fato dos telespectadores se identificarem com a possibilidade de seduzir uma lésbica, através do personagem Holden.

A personagem de Alyssa é uma mulher loira, pequena e de voz infantil. Logo, Holden descobre que ela é gay, mas diz que “ela é lésbica, mas ela não pode ser lésbica”. Então, o filme pode induzir a audiência a pensar o mesmo (“essa mulher tão atraente não pode ser lésbica”) e a atriz não é lésbica na vida real; Smith baseou-se no seu relacionamento com Adams para a realização do filme e este era um dos problemas que continuaram acontecendo nos anos 90: a representação de personagens lésbicas tinha sempre um “mas” e aquela história de que uma lésbica sempre pode não ser ou deixar de ser uma lésbica.

Alyssa Jones em "Procurando Amy"
Alyssa Jones em “Procurando Amy” (Imagem: reprodução)

Até mesmo as diretoras LGBTQ+ recebiam críticas semelhantes. Sobre a canadense Patrícia Rozema, já foi dito que ela parece mais uma estrela de cinema que uma cineasta. O filme de Rozema, “Quando a Noite Cai” (1995), foi considerado por algumas críticas como um festival de lésbicas lipsticks. Por outro lado, a produtora e estrela do filme queridinho das lésbicas, “Go Fish – O Par Perfeito” (Rose Troche, 1994), Guinevere Turner, recebeu elogios como glamorosa, bela e linda; ou seja, apresenta um corpo lésbico convencionalmente desejável, marcado pelo glamour e pela beleza e, acima de tudo, a mesmice das imagens utilizadas pelo mainstream em relação a corpos heterossexuais.

Cena do filme "Quando a noite cai"
“Quando a noite cai” (Imagem: reprodução)
Personagem lésbica junto a outros personagens de "Go Fish"
“Go Fish” (Imagem: reprodução)

Na mesma década, podemos destacar a representação de duas lésbicas negras: Whoopi Goldberg, por “Somente Elas” (Hebert Ross, 1995), e Queen Latifah, por “Até as Últimas Consequências” (F. Gary Gray,1996). Essas representações não coincidem com a das lésbicas brancas; nenhuma das duas mulheres negras pode ser chamada de “femme”, o que, em um primeiro momento, deveria significar uma ruptura com a representação mainstream de lésbicas.

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A personagem de Whoopi Goldberg, Jane DeLuca, é uma cantora que decide deixar sua casa em Nova York e viajar com duas outras mulheres: uma hétero branca de classe média, Robin Nickerson (Mary Louise Parker), e outra branca amante da diversão, Holly Pulchik (Drew Barrymore). Jane se apaixona por Robin e, embora o amor não seja correspondido, ela cuida da amiga, que está morrendo de AIDS. Jane parece ser uma representação positiva do lesbianismo: ela é dura, engraçada e cuidadosa. No entanto, a personagem é mostrada quase completamente desprovida de qualquer sexualidade, muito diferente de duas amigas.

"Somente Elas", com a personagem lésbica de Goldberg
“Somente Elas”, com a personagem lésbica de Goldberg (Imagem: reprodução)

Já Cleo Sims, de Queen Latifah, é uma lésbica butch e sexual – nada feminina – e isso poderia ser considerado algo positivo, mas aqui o que parece ser dito nessas representações é que a feminilidade está ligada à branquitude. Além disso, o objeto sexual de desejo da audiência mainstream se concentra não em Cleo, mas em sua namorada, Lida ‘Stone’ Newson (Jada Pinckett Stmith), ou o que poderíamos chamar da parte femme-sexy do casal.

Cleo é a lésbica butch, que vive em Los Angeles, proveniente da classe trabalhadora e está descontente com seu trabalho de limpar escritórios e, por isso, decide roubar bancos. Logo, as personagens de Cleo e Jane são lésbicas negras e como negras não conseguem alcançar o mesmo “status” do corpo branco. Além disso, o fato das atrizes serem heterossexuais, naquele momento, facilita a “aceitação” do público, já que, por exemplo, mesmo que Goldberg represente a outra lésbica em “A Cor Púrpura” (Steven Spielberg, 1985), a audiência sabe que, na vida real, ela ama homens e não mulheres.

O mesmo acontece com Queen Latifah, que na época do filme “Até as Últimas Consequências”, disse que nunca viu a cena em que beija outra mulher e que foi algo desnecessário. Apesar disso, ela saiu do armário em 2012. É como se ser lésbica fosse algo mais inatingível e menos provável de acontecer, mesmo sendo mostrado na tela.

Queen Latifah em "Até as Últimas Consequências"
Queen Latifah em “Até as Últimas Consequências” (Imagem: reprodução)

A cultura separatória de categorizar mulheres homossexuais

Para a pesquisadora norte-americana Ann M. Ciasullo, a “femme” é tão super-representada nesta época porque, na verdade, ela não é realmente considerada uma mulher homossexual. Uma lésbica “precisa” ter traços de masculinidade. Se é muito feminina, é uma pseudo-lésbica. Por outro lado, a lésbica autêntica é a butch, a macho, a masculinizada, e não a “mulher social”. As “verdadeiras” mulheres são heterossexuais e femininas, que no máximo podem sentir-se atraídas por outras mulheres por um tempo determinado, uma fase ou se forem seduzidas por uma butch predatória, ou porque sofreram algum abuso de algum homem (outra fase que também passará até ela achar um novo e incrível macho). Ou seja, a lésbica “femme” é representada nas telas principalmente porque ela parece não-autêntica.

Dessa forma, a cultura mainstream dá e tira ao mesmo tempo, ou seja, oferece representações mais positivas do lesbianismo (as lésbicas deixam de ser apenas as loucas, pervertidas e predatórias), mas também invisibiliza qualquer forma que o lesbianismo político poderia ter ao mostrar, principalmente, mulheres “femininas” e fúteis – uma invisibilidade foi substituída por outra.

A butch encarna a lésbica machona, seu aspecto é masculino e seu comportamento é agressivo. Ela, na verdade, é a lésbica que vive no imaginário social e quase não aparece representada nos anos 90: macha, pouco elegante e também deve ser feia. Ou seja, ela não preenche as ideias heterossexuais sobre o que pode ser sexualmente atrativo em uma mulher. Obviamente, o espaço destinado a pessoas consideradas não-atrativas é muito menor, chega a ser uma afronta a uma cultura que se baseia em imagens. Outra questão que pesa sobre as butches é o estado socioeconômico delas. Por muitos anos, a imagem da mulher masculinizada também foi associada à imagem das trabalhadoras, bem ao contrário da forma como as femmes são representadas.

Em Hollywood, há dois mundos das lésbicas: as femininas nos escritórios executivos e as masculinas no trabalho braçal dos sets de filmagens. Por outro lado, as butches, tanto na vida real como no cinema, causam mais visibilidade ao lesbianismo que as femmes, até porque as lésbicas masculinizadas não promovem o interessem da audiência heterossexual masculina; as butches não geram desejo na audiência mainstream, apesar de poderem promover a identificação. Os homens héteros poderiam se identificar também com a masculinidade das butches. Nesse caso, as lésbicas deveriam romper com a ideia de que a masculinidade é inerente aos homens. A butch é uma figura socialmente perigosa para a hegemonia patriarcal e não deve ser representada.

É verdade que a representação de personagens de lésbicas tem aumentado, mas é apenas uma representação hegemônica e segura? É bom perguntar: o que significa esta visibilidade? Onde ficam as butches em toda essa história? No entanto, essa visibilidade não deixa de ser uma vitória para a representação de personagens de mulheres homossexuais, especialmente porque, se os índices de audiência são altos para um programa que tem personagens lésbicas, é muito provável que esses personagens continuem aparecendo em outras produções e de diferentes maneiras, com mais diversidade – e essas mudanças já estão acontecendo!

Imagem em destaque: Cena do filme “Ligadas pelo Desejo”.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Apaixonada por tudo relacionado ao cinema e ao audiovisual. Gosta principalmente de ver mulheres fortes e felizes nas telonas e nas telinhas. Por isso, depois de trabalhar muitos anos em televisão, decidiu estudar mais sobre o assunto e fez um doutorado no tema pra ajudar na reflexão do papel da mulher no cinema, e poder dividir opiniões e pensamentos com mais apaixonadas/os como ela.
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