Os anos 90 estão vivos, pelo menos na telinha da Netflix. Surfando na recente onda nostálgica que assolou as produções audiovisuais do mundo, a recém cancelada série da Netflix tinha a difícil tarefa de mostrar ao mundo que tinha personalidade e não era apenas uma versão leve de Stranger Things. Everything Sucks, se passa nos anos 90, especificamente no ano de 1996. A série gira em torno do simpático adolescente Luke O’Neil (Jahi Winston) e seus dois amigos nerds. Em seu primeiro dia do colégio, ele conhece Kate (Peyton Kennedy), e juntos devem lidar com o clube do teatro e os dilemas de crescer e amadurecer em um mundo muitas vezes hostil
Everything Sucks! não tem a pretensão de ser uma série complexa e de difícil compreensão, o roteiro preza pela simplicidade. Cada episódio dessa primeira e única temporada dura cerca de 20 minutos, no total de 10 episódios, tornando-se ideal para uma maratona de fim de semana. Ao mesmo tempo que seu despedimento cria uma sensação de leveza, mesmo quando lida com questões sérias como abandono parental, machismo e orientação sexual, peca pela superficialidade em retratar tais temas.
Aviso: o texto abaixo apresenta alguns spoilers da série
Uma jornada pelos anos 90
Os anos 80 foi marcado por uma significativa mudança na forma como os adolescentes eram retratados no cinema. Os rebeldes sem causa deram lugar a jovens com dilemas complexos, que buscavam seu lugar no mundo. Um dos grandes responsáveis por essa mudança na forma de olhar a juventude foi John Hughes. Seus filmes tinham uma capacidade única de unir entretenimento leve, com dilemas complexos de uma adolescência americana perdida e sem esperança.
Porém, a década de 90 não teve a mesma sorte de contar com produções adolescentes equilibradas. Uma inesquecível tentativa de retratar a juventude da época foi a série estadunidense Freaks and Geeks, com apenas uma única temporada. Como Everything Sucks!, a série foi cancelada por baixa audiência, mas a produção marcou a época e se tornou um cult, devido ao seu roteiro e aos personagens carismáticos, que produziram um entretenimento de alto nível. Mesmo com apenas 10 episódios, a série tinha força dramática e paixão pela sua história. Nesse sentido, fica difícil não fazer uma comparação entre Everything Sucks! e Freaks and Geeks, já que as duas séries têm ambientações semelhantes, além de ambas contarem com trilhas sonoras que têm um papel fundamental no amadurecimento dos personagens.
Similaridades à parte, Everything Sucks! nem de longe chega perto da excelência de Freaks and Geeks, um dos principais motivos é a falta de respeito e coerência que os roteiristas demostram com seus personagens, que são jogados em um turbilhão de emoções sem o devido desenvolvimento. Quem mais sofre com isso são os coadjuvantes, que acabam não tendo o mesmo espaço que os protagonistas e ficam oscilando sem motivação ao redor da história principal.
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Um dos grandes destaques da série foi seu protagonista carismático, muito seguro, mesmo com o desempenho inferior de seus colegas de equipe. Outro grande erro do roteiro foi fechar os personagens no eixo “clube de vídeo” e ‘clube de teatro”; seria benéfico um panorama mais amplo da vida escolar da época.
Sobre a criação do filme na trama, houve uma grande oportunidade perdida o fato da série não explorar esse lado cinéfilo do Luke. Uma pegada “Rebobine, por favor” criaria muitas possibilidades de piadas. A rixa com o clube de teatro é solucionada de uma forma extremamente superficial, ou seja, existia uma potência narrativa nesse arco que foi mal explorada. A trama dos adultos possui uma grande inverossimilidade, uma falta sintonia com a história principal.
A trilha da vida
Uma boa tilha sonora é capaz de operar milagres. O cinema é repleto de filmes medíocres que entraram para história devido a uma música tema ou trilha sonora marcante. Everything Sucks! está em sintonia com uma tendência forte de produções que trabalha com essa temática nostálgica, de usar música Pop/Rock da época retratada.
Os melhores momentos da série foram embalados pelos hits da banda britânica Oasis. Fica até difícil não arriscar “Today is gonna be the day, That they’re gonna throw it back to you”, quando Luke se declara para Kate, em uma das cenas mais embaraçosas e sensacionais de toda a série. Clássicos como “Two Princes”, do Spin Doctors e “Lovefool”, do The Cardigans, não ficaram de foram da playlist.
É visível, na parte técnica, que a equipe não teve muito espaço para o experimental. Os planos e enquadramentos são convencionais, e o cuidado com a direção de arte e cenário é notório, mas o que chama atenção são os figurinos de Alexandra Welker, conhecida no mundo televisivo por seus trabalhos de figurino em The O.C. e Grimm. A figurinista construiu um trabalho primoroso de referências e cores para cada ambiente e personagem da série, com destaque para o figurino de Emmaline (Sydney Sweene) e Oliver (Elijah Stevenson), que faz referência a personalidades da época como Gwen Stafani, Courtney Love e Kurt Cobain.
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Abandono Parental e suas consequências
Em sociedade patriarcal como a brasileira e a estadunidense, ainda é bem recente a discussão sobre abandono parental e suas consequências emocionais. Historicamente, o ônus da formação emocional dos filhos geralmente fica para as mulheres, e os homens têm a função de suprir as questões econômicas. É muito comum vermos filhos de pais separados sem relação alguma com o pai além da pensão mensal que, em muitos casos, nem é paga regularmente. Em Everything Sucks! o tema é discutido através de Luke e seu pai. O único contato que o menino tem com ele são as fitas cassetes, uma espécie de diário. A cada fita vamos conhecendo um pouco sobre o seu pai, além dos seus sonhos e frustrações que o levaram a abandonar a esposa e o filho.
De forma positiva, o roteiro consegue mostrar a idealização de Luke com seu pai ausente, que através dos relatos em vídeo, aos poucos, se transforma em um tipo de intimidade que culmina numa tentativa frustrada de conhecê-lo, e se encerra em um novo abandono quando o protagonista se vê frente ao real motivo de seu abandono parental.
O ponto negativo desse arco foi o papel da mãe solo, Sherry O’Neil (Claudine Mboligikpelani), que ficou apartada até os últimos episódios desse processo de descobrimento paterno. Em nenhum momento a série se propõe a discutir questões raciais, contudo é notório as dificuldades que as mulheres negras sofrem, seja no EUA ou Brasil. Em relação ao preconceito nos relacionamentos inter-raciais, seria um assunto interessante a ser discutido. A espectadora acaba não conseguindo ter as dimensões que o abandono do pai causa nessa mulher, que teve que criar seu filho sozinha. O cliffhanger do último episódio também, de certa maneira, não é justo com Sherry, que depois de anos de solidão encontra um novo parceiro e tem que lidar com volta do ex-marido ausente.
Gênero e sexualidade em Everything Sucks!
Kate (Peyton Kennedy) é uma personagem fundamental da série. Sem o mesmo carisma de Luke (Jahi Winston), aos poucos ela ganha espaço e protagoniza os principais dilemas dramáticos da produção. Kate subverte o papel de interesse romântico do herói, através de sua jornada de autodescoberta sexual. Seus embates com o apaixonado e insistente Luke são fortes e demonstra a estrutura machista que produz culpa nas mulheres que não se enquadram na idealização masculina.
A narrativa dramática de Kate em relação a seus desejos, abre um grande espaço para discutir lesbianismo e o machismo. O figurino da personagem diz muito sobre como está fora dos padrões ditos como “femininos”, que causa estranhamento e coerção social. Em diversos momentos ela é taxada por outros personagens de “lésbica” apenas por não ser vestir de uma “forma feminina”.
As escolhas de Kate ao negar seus desejos e construir um relacionamento amoroso com Luke, lhe causa um grande sofrimento. Quando ela revela o seu verdadeiro desejo a Luke, ele recebe a notícia como algo que ele pode “resolver”, reproduzindo assim o entendimento de muitos homens, de que mulheres lésbicas podem orientar seus desejos ao sexo masculino se forem estimuladas.
Emaline (Sydney Sweeney) é outra personagem que começa a trama como uma típica antagonista adolescente e aos poucos vai crescendo. De muitas maneiras, ela também passa por uma jornada de autodescoberta. Diferente de Kate, Emaline representa fisicamente um modelo atrativo para os homens. O seu figurino, inspirado em musas da época como Gwen Stefani, reforça o abismo entres essas duas figuras femininas. Sem muita autoconfiança, ela reproduz o papel que lhe é esperado, o da garota popular que se apoia na figura masculina como uma potência de saída do seu cotidiano sem brilho.
A relação das duas é desenvolvida de uma forma até simpática, até o ponto que a simpatia dá lugar a uma apressada aproximação romântica entre as duas, que no contexto da discussão de orientação sexual, causa uma sensação que a personagem da Emaline merecia que sua jornada de autodescoberta fosse melhor desenvolvida. De todo modo, a série possui uma representação de gênero para o pouco tempo de tela aceitável, mas que carecia aprofundamento narrativo.
Apesar de apresentar muitos problemas narrativos, Everything Sucks! demonstra uma potência para o desenvolvimento de uma segunda temporada. Mas como foi anunciado pelo The Hollywood Reporter, a série foi cancelada, portanto, o que resta é curtir essa primeira temporada, que apesar de não ser marcante, proporciona um bom passatempo para um fim de semana pouco movimentado.