O feminismo leve e bucólico de “Anne With an E”

O feminismo leve e bucólico de “Anne With an E”

Adaptar uma obra literária para o audiovisual não é das tarefas mais fáceis do mundo, principalmente se falando de um clássico centenário da literatura infantil, com mais de 50 milhões de cópias vendidas, como é a série de livros Anne de Green Gables, da escritora canadense L. M. Montgomery. Com sete episódios, a série Anne With An E conta à história de uma menina órfã de cabelo de cenoura chamada Anne Shirley, adotada por um casal de irmãos, que buscavam inicialmente adotar um menino, mas se apaixonam pela pequena menina tagarela.

Produzida pela produtora canadense CBC Television e pela NetflixAnne With an E vem encantando o público pela sua simplicidade e leveza, ao trata de temas bem atuais como feminismo, bullying, preconceito e adoção. De forma leve porém firme, à história se passa no final do século 19, na vila de Avalou, localizada na fictícia província de Prince Edward Island, e tem como motor a busca por pertencimento e o papel da mulher em uma sociedade com costumes rígidos e patriarcais.

Descobrindo Anne com “E”

Anne é uma menina diferente e criativa, vista pela comunidade como “alguém de fora” e “estranha”. Podemos considerá-la uma menina subversiva. Inconscientemente, ela questiona o mundo cinza que vive. Em todo momento à sociedade tenta podar sua imaginação, mas ao se agarrar em suas fantasias, ela se protege de um histórico de abandono e maus tratos. E ao chegar em Green Gables, aos poucos ela vai construindo um lar, amadurecendo e fazendo novos amigos.

Anne With an E

Numa época repleta de séries com representações femininas fortes e mulheres guerreiras que lutam para salvar o mundo, o mercado atual tenta vincular empoderamento com sexualização do corpo das mulheres, mas a série Anne With an E, de forma sutil, decide construir o seu próprio caminho.

Baseada numa série de 8 livros, que começou a ser lançado em 1908, a jornada de formação de Anne Shirley passa tranquilamente pelo teste de Bechdel, com a ressalva que as colegas de classe de Anne e Diana, na adaptação da série, possui algumas construções desiguais, servindo como “escada para conflitos”, ao invés de retratar meninas que sofrem devido à sociedade machista.

Uma adaptação com qualidades

Diferente da adaptação canadense de 1985 e 2016, a série teve mais tempo e deu mais espaço para aprofundar os personagens, realizando algumas mudanças na obra original, que podemos considerar como aceitáveis. Por exemplo, os personagens Gilbert Blythe e Marilla Cuthbert ganharam mais camadas, e o protagonismo feminino fica bem demarcado.

As qualidades técnicas são visíveis. O cuidado com o cenário e figurino, a paleta de cores que acentua o ar romântico e bucólico da narrativa, e os enquadramentos que privilegia a captação dos sentimentos das personagens.

Anne With an E

A série apresenta episódios longos com densidade, diferente das adaptações anteriores, que cai no erro da romantização precoce na relação de Anne e Gilbert. A adaptação da CBC/ Netflix respeita, de certa maneira, a construção calma que autora constrói nos primeiros volumes da obra original, mas a adaptação deixa a desejar quando omite uma personagem feminina muito importantes na obra original, que é a professora de Anne. No primeiro volume da série, Anne tem um papel fundamental na formação da protagonista, além de ser um exemplo de mulher independente dentro do conservadorismo de sua época. 

Mulheres e o feminismo de cada dia

Em Anne With an E, o desconforto em relação ao corpo, o padrão de beleza, o casamento e a relação de solidariedade com outras mulheres, é tratado de forma sensível e honesta. Em uma cena, Anne pergunta para suas colegas sobre a primeira menstruação. Até hoje, para muitas meninas, a menstruação faz parte daqueles assuntos não verbalizados, cheios de pudor e vergonha, e costumam ficar profundamente desconfortáveis, mostrando o abismo entre Anne e as outras meninas.

A ideia de sororidade aparece em diferentes momentos. Desde a relação de cumplicidade de Anne e Diana, e de repeito e lealdade de Anne e Marilha. Até mesmo Ruby Gillis, que enciumado por entender que Anne gosta de Gilbert Blythe, passa a ignorar a ruivinha em um determinado momento. Contudo após receber ajuda de Anne (depois de sua casa passar por um incêndio) acaba reconhecendo suas qualidades e tornando-se amigo da garota. 

Anne With an E

De forma discreta, Anne With an E faz uma crítica ao comportamento de algumas mulheres que se diziam progressistas e sufragistas, mas que possuíam dificuldades de entender outras mulheres que não se enquadravam nas discussões de determinadas pautas feministas. 

Com uma segunda temporada já confirmada para 2018, Anne With an E está entre uma enxurrada de boas séries protagonizadas por mulheres que estrearam em 2017. A série mostra que não necessariamente é preciso chocar para discutir temas polêmicos. Para quem quiser conferir o material original com o sucesso da série, a editora Pedra Azul já lançou os dois primeiros volumes de “Anne of Green Gables” (1º volume e 2º volume), e já anunciou o terceiro volume para início de 2018.

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Graduada em Ciências Sociais. Cineasta amadora. Viciada em livros, séries e K-dramas. Mediadora do Leia Mulheres de Niterói (RJ).
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