Eu, Tonya: as diversas verdades de uma história

Eu, Tonya: as diversas verdades de uma história

Tonya Harding nasceu em Portland, estado do Oregon, em 1970, e aos quatro anos já patinava. Considerada uma patinadora atlética e promissora venceu o campeonato nacional americano e conquistou a medalha de prata no campeonato mundial da categoria, disputado em Munique, Alemanha, em 1991.

Harding foi a segunda mulher e a primeira norte-americana a realizar o salto triplo axel, que consiste em três giros no ar e pousar com um pé só, na competição U.S. Figure Skating Championships, em 1991, quando tinha 20 anos de idade. Porém, não foi por seus feitos no rinque de patinação no gelo que Tonya Harding ficou mundialmente conhecida. Tonya foi acusada de participar do plano, ao lado de seu marido Jeff Gilloly, e seu guarda costas Shawn Eckhardt, que arquitetou o ataque a sua rival nos rinques de patinação, Nancy Kerrigan.

Nancy tinha técnica e um estilo de patinação mais gracioso. Ganhou o bronze em Albertville (França), superando Tonya e vinha como a favorita para levar outra medalha em Lillehammer (provavelmente de ouro), enquanto Tonya vinha em uma longa má fase desde 1992. 

Eu, Tonya, dirigido por Craig Gillespie, é baseado em entrevistas realizadas com Tonya (Margot Robbie, que levou o prêmio de Melhor Atriz em AACTA International Award, e Melhor Atriz de Comédia em Critics Choice Movie Award) e Jeff (Sebastian Stan), além de pesquisas e entrevistas concedidas ao programa de TV Hardy Copy e A Current Affair, na época do ataque. Com um tom irônico e alguns truques cinematográficos (como a trilha sonora dos anos 90, bons cortes de cena e um certo dinamismo que empolga) que nos leva a amar o filme, o longa nos apresenta uma outra perspectiva do ataque, ocorrido em 06 de janeiro de 1994 contra Nancy Kerrigan, sob a ótica de Tonya. Apesar do tom de ironia, fica evidente que não há nada divertido em ser Tonya Harding, aliás, muito ao contrário.

Tonya é filha mais nova de Lavona Golden (a impecável Allison Janney, que levou o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante nas premiações do Globo de Ouro, Critics Choice, Sindicato dos AtoresAACTA International Award) e Albert Harding (Jason Davis) e tem mais quatro meio irmãos. De família pobre, sua mãe e seu pai mantinham as duras penas seus treinos e os custos de sua treinadora, Diane Rawlinson (Julianne Nicholson).

Além das dificuldades financeiras, Tonya era constantemente abusada por sua mãe, uma mulher dura e fria que lhe infligia todo tipo de violência física e moral. Enquanto seu pai, com quem parecia ter uma relação mais afetuosa, permanecia omisso diante dos abusos que a filha sofria. É possível observar certa intimidade na relação entre ela e seu pai, como na cena em que ambos saem para caçar coelhos, além da omissão dele diante da dificuldade de Tonya em lidar com a figura agressiva de sua mãe.

Tonya e Jeff se conheceram quando ela tinha 15 anos e logo se apaixonaram. Ela acreditava ter encontrado finalmente alguém que cuidaria dela, porém Jeff era um jovem fraco e de caráter duvidoso que a espancava. Mantiveram um relacionamento volátil, violento e cheio de idas e vindas, até o momento em que o ataque é descoberto e Tonya colabora com as investigações.

Tonya
Tonya (Margot Robbie) e Jeff (Sebastian Stan)

Nesse cenário de abusos, miséria e total falta de incentivo, Tonya cresce, se forma como indivíduo e constrói sua carreira como patinadora. Sua vida gira em torno da patinação, já que ela largou seus estudos para se dedicar aos treinos e competições. Nas horas vagas, antes de se profissionalizar como patinadora, Tonya fazia bicos como garçonete para se manter e viabilizar a carreira.

Com uma personalidade forte e extremamente rebelde, detesta estereótipos e não se encaixa em padrões estéticos e de comportamento. Isso atrapalha sua carreira, pois a patinação no gelo é uma das modalidades esportivas onde critérios como graça, estética e elegância são levados em conta e quase inseparáveis da técnica. 

Tonya nunca foi a queridinha dos juízes, da imprensa e dos apreciadores do esporte. A mídia não lhe dava espaço, os patrocinadores não se interessavam por ela e os juízes eram quase sempre inflexíveis.

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Margot Robbie/ Tonya Harding

Em Eu, Tonya assistimos uma cena na qual ela termina uma apresentação e reclama de sua pontuação com a banca de juízes, acusando-os de puni-la por não se encaixar na estética do esporte. Mas, verdade seja dita, essas mesmas imposições estéticas e de comportamento que padronizam a patinação, estão presentes na vida de milhares de mulheres bombardeadas todos os dias por comerciais, revistas e programas de TV, com sua ditadura de padronização da beleza.

O longa nos leva a sentir empatia por Tonya, e é bem improvável que o público saia da salas de cinemas e não reflita sobre todos os abusos que ela sofreu e que a levaram ao lugar onde está hoje; desacreditada, reconhecida pela participação num ato criminoso e impedida de realizar seu sonho enquanto atleta – o de conquistar a medalha nas Olimpíadas de 1994.

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Sobre o ataque, o que sabemos e o que foi amplamente divulgado pela mídia na época, é que Jeff e o guarda costas de Tonya, Shawn (Paul Walter Hauser), contratam Derrick Smith e Shane Stant (dois criminosos conhecidos de Shawn), para concretizar seu plano. Nancy estava saindo de um treino quando foi surpreendida por Shane, que desferiu pancadas em sua perna, utilizando um pé de cabra (um tipo de alavanca de metal que possui uma das extremidades semelhante à pata de uma cabra).

Apesar de inesperado e violento, os golpes não deixaram mais do que uma lesão na perna de Nancy, o que lhe permitiu tempo para se recuperar, treinar e passar na prova que a levaria para as Olimpíadas de Inverno em 1994. Nancy Kerrigan sai com a medalha de prata na competição e Tonya pega em oitavo lugar.

Durante as investigações Jeff e Shawn acusam Tonya de ser cúmplice do ataque, afirmando que ela sabia do plano desde o início. Ela, por sua vez, contesta categoricamente alegando que soube somente depois, e que seu crime foi o de omitir e obstruir a investigação.

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Todos os envolvidos foram punidos, mas sem dúvida nenhuma a pessoa mais prejudicada foi Tonya, afinal, além de sentenciada a pagar 160 mil dólares, três anos de liberdade condicional, 500 horas de serviço comunitário, foi banida de participar de qualquer competição de patinação do gelo para o resto de sua vida. Aos 23 anos teve sua vida manchada por uma história que se tornaria mais famosa do que seu grande feito como patinadora – o triple axel – e matou qualquer possibilidade de carreira profissional na patinação.

O resto é história, a verdade sobre se Tonya sabia e se participou do plano contra Nancy, nunca será esclarecida e tampouco nos importa agora. Afinal, a verdade é algo relativo e com várias nuances, mas certamente sabemos que Tonya foi submetida ao longo de sua vida a todo tipo de abuso físico e moral, tendo enfrentado a pobreza, a violência e a falta de afeto. Isso não serve de desculpa para seu envolvimento na ação contra Nancy, mas certamente explica muita coisa.

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A história de Tonya é um daqueles casos em que a mulher é marginalizada e fica estereotipada por não se encaixar em regras sociais, culturais e estéticas de uma sociedade que valoriza as aparências e os rótulos, e fica evidente que o sistema falhou na sua missão em protegê-la e em acolhe-la como cidadã, garantindo sua integridade física e moral.

Tonya era uma mulher forte que lutou para ser reconhecida como patinadora e se manter fiel ao seu estilo e a quem era, mas para isso acabou lançando mão do último recurso que poderia usar contra alguém, pois conhecia na pele os seus efeitos: a violência.

Eu, Tonya foi indicado ao Oscar desse ano para os prêmios de Melhor Atriz para Margot Robbie, Melhor Atriz Coadjuvante para Allison Janney, e Melhor Montagem para Tatiana S. Riegel.

P.S. Vale mencionar que o Triple Axel é um movimento tão complexo que somente três mulheres norte-americanas conseguiram realizá-lo com êxito. Tonya foi a primeira, e atualmente Mirai Nagasu aterrissou com perfeição nas Olimpíadas de Inverno, que estão acontecendo em PyeongChang, na Coreia do Sul.

Eu, Tonya estreia hoje (15) nos cinemas.

https://www.youtube.com/watch?v=US_P75dgJ_w&feature=youtu.be

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Mulher, mãe, profissional e devoradora de filmes. Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, trabalhando com Gestão de Patrocínios e Parceiras. Geniosa por natureza e determinada por opção.
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