[SÉRIES] One day at a time: Acerta em quase tudo, porém reforça uma propaganda imperialista

[SÉRIES] One day at a time: Acerta em quase tudo, porém reforça uma propaganda imperialista

One day at a time, o sitcom da Netflix, trata com responsabilidade temas como homossexualidade, a xenofobia enfrentada por imigrantes, a vida de mãe solo e relacionamentos abusivos, mas como boa parte dos produtos audiovisuais americanos, ainda reforça uma propaganda anti-comunista e imperialista.

A Netflix decidiu que releituras de séries antigas são uma boa alternativa na produção de novos conteúdos. Twin Peaks, Gilmore Girls e House of Cards são exemplos de produções anteriores que ganharam uma continuação ou foram repaginadas com adaptações. One day at a time estreou nos EUA em 1975 pela CBS e agora a Netflix traz uma nova família com o mesmo título e temas atualizados, apesar do formato antigo do sitcom.

Mesmo com o zumbido anacrônico das risadas de audiência, característica dos sitcoms americanos dos anos 1980/90, One day at a time combina o tom de entretenimento leve com temas atuais: A protagonista mãe solo, agora é filha de imigrantes cubanos e ex-enfermeira do exército. Penélope (Justina Machado) vive com os dois filhos Alex (Marcel Ruíz) e Elena (Isabela Gomez) na Califórnia, junto com sua mãe cubana ex-patriada Lydia (Rita Moreno). A família também convive com o síndico do edifício onde moram: Schneider (Todd Grinnell) é um rico imigrante canadense que, abandonado pelo pai, encontra conforto e acolhimento em meio à família latina.

O criadores de One day at a time, Gloria Calderon Kellett e Mike Royce, fizeram questão de abordar uma gama de questões sociais que estão sendo debatidas na sociedade estadunidense, optando sempre pela alternativa mais “progressista”: quando série fala de feminismo, ela cita jargões atuais como “mansplaining” e “meninterrupting” de forma engraçada (e elucidativa, por que não?) e aponta a desigualdade salarial.

Quando o assunto é homossexualidade, mãe e filha se entendem com ajuda da avó e todas apoiam o “sair do armário” de Elena. Quando retratam a relação de Penélope com o ex-marido, pai de seus filhos, e companheiro de Exército, Victor, a série explica como traumas de combate podem contribuir para o alcoolismo e ao mesmo tempo, como uma mulher não deve arcar sozinha com os próprios traumas e com os de seu companheiro. Tudo muito atual, não é mesmo?

Mas não se iluda, existe uma mensagem ideológica que a série tenta disfarçar e que, apesar dos temas complexos que aborda, está presente em toda a narrativa de One Day at a Time: a visão imperialista de que a Revolução Cubana foi injusta e maléfica ao país, e que os Estados Unidos serviram como abrigo ideal para os cubanos sedentos de “liberdade”.

Vamos por partes:

Lydia, a cubana ex-patriada mãe de Penélope, chega nos Estados Unidos em meados dos anos 60 como refugiada, ainda criança. A Revolução Cubana, que teve seu início em 1959, começou com a queda do ditador Fulgencio Batista pelo movimento armado e guerrilheiro de Fidel Castro. Com o apoio da União Soviética, a revolução ampliou seu caráter anticapitalista e anti-imperialista. Nos anos seguintes à derrubada do ditador, o governo de Castro avançou na luta contra o analfabetismo, na nacionalização de bancos e empresas estrangeiras e na criação de um sistema de saúde universal. Apenas com embargo intensificado do governo americano e com o fim da União Soviética, a situação de Cuba passou a deteriorar principalmente pela falta de mantimentos.

Não foi a Cuba sedenta por cesta básica dos anos 90 que Lydia deixou. Ela partiu em exílio para os Estados Unidos precisamente no momento que o governo cubano passou a perseguir grandes proprietários de terra e socializar os meios de produção: A abuelita deixou para trás um país que, naquele momento, lutava para garantir justiça social aos seus cidadãos. É óbvio que revoluções não acontecem sem que a classe dominante seja desafiada: e muitos desses cubanos pertencentes às elites econômicas e religiosas foram exatamente os que deixaram o país nesse momento.

Mas você não saberia disso assistindo One day at a time: O mote para a fuga de Lydia de Cuba é a repressão religiosa que o governo de Castro implantou contra a igreja católica. A “liberdade de credo” pregada pelo capitalismo americano serve como um grau de comparação favorável e justificável para a imigração, esquecendo e abrandando com isso, o histórico revolucionário e os preceitos básicos de igualdade e justiça social almejados pelo governo de Castro. Toda a experiência revolucionária de Cuba é tratada como um grande golpe militar, deixando de lado — intencionalmente, imaginamos — o verdadeiro passado ditatorial e de colônia que Cuba tinha antes da revolução.

One day at a time
Momento em que Schneider aparece com uma camiseta de Che Guevara e é repreendido pela família cubana por usar imagem de um “ditador sanguinário”.

É também curioso que a profissão de Penélope e sua história de vida sejam tão intimamente ligadas ao militarismo: enfermeira das forças armadas, ela retorna do Afeganistão com Síndrome de estresse pós-traumático e enfrenta problemas com depressão. A revolução de Castro deveria parecer uma tomada de poder pacífica em comparação com as ocupações americanas no Oriente Médio depois do 11/09, em que os direitos civis e humanos de afegãos, iraquianos e sírios foram ativamente violados com o argumento da “Guerra ao terror”. E mesmo com toda a fachada de justiça social, essas intervenções não diminuíram durante o governo “progressista” de Barack Obama — pelo contrário.

Interessante como One day at a time critica a luta armada que aconteceu em Cuba— e que se tornou o motivo da própria imigração de Lydia para os EUA ao mesmo tempo em que normaliza o imperialismo americano em outros locais do mundo. Pelo visto a grande “liberdade” oferecida para os cubanos imigrantes moradores dos EUA merece ser imposta à força a outras nações: qualquer semelhança com uma ditadura não é coincidência. Mas a ditadura do capital — ideologia que é exportada pelos Estados Unidos — não costuma provocar reações de resistência quando a lógica liberal está assimilada. E quando falamos de produtos de entretenimento produzidos em solo americano, é bem difícil que um pensamento crítico que não reforce a prática imperialista seja abordado.

A questão Elena

Uma das personagens que melhor representa esse conflito de ideologias é a filha nerd de Penélope, Elena. Lésbica assumida desde a primeira temporada, Elena dá cara e voz ao feminismo liberal e ao liberalismo dos progressistas. Ferrenha defensora dos direitos das mulheres e dos homossexuais, Elena parece muitas vezes mais preocupada em usar o pronome correto (entre eles “them”, “they”, “zie” etc.) do que fazer uma análise crítica verdadeira da sua situação.

É por meio de sua indignação que percebemos a dificuldade da família em lidar com a imagem de Che Guevara, mas a personagem não se manifesta quando os problemas psicológicos da mãe começam a aparecer por conta de seu histórico no Afeganistão. Nenhuma crítica anti-imperialista é feita por Elena, apesar de ser conhecida na família por ser grande defensora dos direitos humanos e dos animais.

Elena é a justiceira social preferida pelo capitalismo: aquela que detesta tradições sexistas, mas que topa realizar uma festa de debutante se puder se vestir como quiser. Que critica as políticas de Castro, mas naturaliza o fato de mãe ter lutado no Afeganistão. Ela protesta contra o fato de seu video game preferido não conter personagens não-binários o suficiente, mas não se incomoda com a violência presente nos jogos. Elena respeita o saudosismo de sua avó em relação à Cuba, mas não o suficiente para aprender espanhol. Elena também é a pessoa que insiste para que a avó se torne cidadã americana. Ou seja, travestida de “progressista” e antenada com os movimentos sociais atuais, Elena na verdade representa a jovem americana de classe média que pouco percebe as ideologias que reproduz. Fazendo piada com este fato, ou não, a série reforça um discurso.

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E nos perguntamos até que ponto os criadores e roteiristas de One day at a time não estão de fato conscientes dessas decisões. É um estratégia inteligente, mesclar um pensamento imperialista com posições progressistas, e a série acerta em puxar os jargões atuais e pautar questões presentes. De fato, é importante que temas como a aceitação da homossexualidade, a xenofobia e o sexismo estejam em voga em produtos como séries de TV, mas precisamos ficar alerta ao contexto maior que essas narrativas representam.

Nada é por acaso. Se esses temas polêmicos estão sendo discutidos em veículos de mídia é porque uma certa cobrança feminista e anti-racista foi feita. Mas não podemos nos contentar apenas com a representatividade, se lógicas antigas do imperialismo americano não forem revistas. Olhos abertos para acompanhar os próximos capítulos.

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