Las Chicas Del Cable: Os limites da união feminina na segunda temporada

Las Chicas Del Cable: Os limites da união feminina na segunda temporada

Las Chicas Del Cable foi, sem dúvidas, uma das grandes surpresas de 2017. A série espanhola produzida pela Netflix pode não ser tão comentada quanto aquelas produzidas pela indústria estadunidense, no entanto esconde grandes reflexões sobre a figura feminina na década de 20 e atualmente. Afinal, narra a história de mulheres em sua batalha pela liberdade cotidiana. Consequentemente, narra a história de todas as mulheres. [CONTÉM SPOILERS]

A ligação feminina

Alba (Blanca Suárez) conseguiu fugir de parte de seu passado ao se tornar Lídia. Contudo, ninguém pode apagar o que já foi vivido. As memórias e, sobretudo, as dores permanecem junto ao indivíduo. E também as relações nutridas ao longo da existência. A liberdade de Lídia custou-lhe o relacionamento com Francisco (Yon González) e Carlos (Martiño Rivas). Por outro lado, tornou-a ainda mais próxima daquelas três telefonistas de quem nunca suporia que viraria amiga. Carlota (Ana Fernández García), Marga (Nadia de Santiago) e Angeles (Maggie Civantos). Por elas, ela faria qualquer coisa.

Meses depois do empreendimento que salvou o emprego de inúmeras mulheres, Lídia surge com um novo projeto. Subestimada pelo novo diretor da companhia de telefonia, encontra em sua criatividade e em suas próprias necessidades um modo revolucionário de ascender profissionalmente. É a chance que ela possui de finalmente mostrar que ela é mais do que a mulher bonita e enganadora. Lídia é dotada de tanta capacidade quanto quaisquer dos homens de poder com quem conviveu. Porém, por ser mulher, enfrentou adversidades que a impediram de romper as barreiras para o sucesso e reconhecimento – como Francisco conseguiu.

Las Chicas Del Cable

A supressão do crédito feminino

Ser uma mulher destemida e criativa não implica na anestesia dos sentimentos que alguns clichês parecem pressupor. Por vezes, a personagem tendeu a tal estereótipo, de fato – e ainda tende de certo modo. Suas mágoas criam um barreira que começa a ser rompida em sua relação de amizade com outras mulheres. Vale recordar que a personagem inicia a série defendendo uma amiga de um homem violento.

Suas emoções também são quebradas na medida em que tenta confiar nos homens por quem se apaixona. E em uma dessas tentativas, tem seus sonhos roubados. Como em alguns casos famosos da história – e livros como Wonder Woman apontam alguns episódios – a ideia de uma mulher é furtada por um homem. E quem acreditaria que o indivíduo privilegiado seria capaz de cometer um ato dessa magnitude contra uma oprimida mulher?

Na história, é comum o descrédito feminino. Uma sociedade que subestima as capacidades femininas, justificando por sua biologia, é capaz de ignorar o crime de um indivíduo masculino que arroga para si a titularidade do empenho e da criatividade. São notórios os episódios em que preferiu-se crer na palavra de um homem do que na evidente capacidade de uma mulher. Em níveis mais cotidianos, é uma lógica parecida à do conceito de mansplaining. Apesar disso, uma nova chance é concedida à protagonista, que se envolve numa disputa pela conquista profissional.

Las Chicas Del Cable

A violência entre quatro paredes

Enquanto Lídia enfrenta os fantasmas de seu passado e de seu futuro, Angeles enfrenta o terror do presente. Certamente, este foi o arco mais doloroso da primeira temporada. Dificilmente alguém não torcesse por um fim feliz para a mulher agredida constantemente por seu marido. O anseio de justiça por todas as mulheres violentadas, oprimidas e machucadas estava presente. Talvez a justiça tenha vindo de certa forma, mas talvez não a justiça que se gostaria de ver. Não há aqui uma crítica à série, pois a justiça desejada não era comum naquela realidade – e ainda hoje é raramente vista. Existe uma grande defasagem entre os números de casos de violência contra a mulher e os números de homens responsabilizados por seus atos.

Em uma sociedade em que a violência contra a mulher ainda é ignorada, não se poderia crer na facilidade com que uma mulher da década de 20 conseguiria tal vitória. Angeles sequer podia se separar de seu marido. E a existência de uma filha dificultava a fuga dessa realidade. Às vezes, a única saída para a sobrevivência é recorrer ao que é moralmente inadequado para combater uma moral tão violenta quanto a que se enfrenta.

Uma festa. Um crime. Um desaparecimento. Um evento reúne Lidia, Marga, Carlota e Angeles na trama de mulheres que lutam pela independência e por seu direito de viver. E cada uma reage de um modo diferente aos eventos da noite, que conduzirão toda a temporada.

Las Chicas Del Cable

Transexualidade

Enquanto Marga continua como o ponto de leveza da série, em seu atrapalhado relacionamento, Carlota é introduzida em mais discussões políticas de gênero. Na primeira temporada, a personagem participou de movimentos feministas, abdicou dos privilégios familiares por sua independência e iniciou um relacionamento poliafetivo com Sara (Ana María Polvorosa) e Pascual (Borja Luna). Na segunda temporada, é envolvida pelo tema da transexualidade.

No fim da primeira temporada, foi sugerido que a personagem Sara não se identificasse com o gênero feminino. Os indícios se confirmaram logo no início da temporada. Então, buscou-se mostrar não somente a relação de Sara com sua descoberta, como suas relações afetivas e o tratamento social.

Algumas das cenas mais fortes da temporada foram protagonizadas por Sara. Toda a sua angústia pela sua condição foram retratadas. Ainda que soubesse que não estava doente, Sara desejava compreender melhor o que estava acontecendo com ela. Infelizmente, assim como a transexualidade ainda não é bem vista hoje, não o era na década de 20. Entre passagens por clínicas psiquiátricas e preconceito, Sara busca a aceitação de sua não identificação de gênero.

Las Chicas Del Cable

Aborto e questões morais atemporais

Outro tópico abordado pela temporada é o aborto. Quando Angeles descobriu-se grávida na primeira temporada, um aborto lhe foi sugerido. Apesar da negativa em realizar o procedimento, a personagem sofreu um aborto espontâneo após as agressões de seu marido. Na nova temporada, o tema é protagonizado por Lidia. Diante de uma descoberta, Lidia revela ter realizado um aborto quando mais nova. Aos 15 anos, perdeu-se de Francisco ao chegar a Madri e teve que enfrentar as dificuldades da vida sozinha. Após uma gravidez não planejada, optou pelo procedimento.

Aqueles que defendem a proibição do aborto costumam apelar para a insensibilidade das mulheres em relação à vida. No entanto, abortar não é como tomar qualquer decisão cotidiana. A escolha pode implicar também em dores para a mulher, mesmo que não haja arrependimento. Por isso a defesa de que o aborto deveria ser uma possibilidade para uma escolha consciente e não um ato de desespero diante da negativa de opção. Lidia não se arrepende da escolha tomada. No entanto, também nunca esqueceu o ocorrido,. É como um fantasma em seu passado. E lhe causava mágoa pensar que nunca mais poderia ser mãe novamente.

A série retrata ainda a questão da imposição do aborto. Na obra, uma família rica tenta obrigar uma mulher a abortar, quando esta deveria ser uma decisão unicamente dela. E quantas vezes outras pessoas, principalmente homens, não tentam se impor nas decisões de uma mulher em relação ao seu corpo? A biologia de uma mulher não faz dela uma ferramenta reprodutiva à disposição da sociedade.

Las Chicas Del Cable

Existem limites para a sororidade?

Quando o tema sororidade é levantado, comumente é acompanhado do questionamento: mas isso significa que todas as mulheres são obrigadas a gostar de outras mulheres? Apesar das críticas que se possam fazer à utopia da sororidade, diante das diferenças entre classes e etnias, e do seu mau uso para justificar privilégios individuais, a sororidade busca a empatia entre as mulheres. Isto não implica que todas as mulheres devam se amar igualmente. Significa uma compreensão e um companheirismo entre as mulheres estabelecido através do respeito como seres humanos e diante da consciência de que todas enfrentam situações opressoras por serem mulher. Significa compreender que todas estão na mesma batalha.

Leia também:
>> [SÉRIES] O feminismo leve e bucólico de “Anne With an E”
>> [SÉRIES] I Love Dick: A inadequação do desejo feminino
>> [SÉRIES] The Sinner: A mulher por trás da pecadora

Las Chicas Del Cable tenta estabelecer a sororidade entre suas personagens, mas peca em alguns pontos. Apesar de evidenciar a violência misógina e o machismo intrínseco às atitudes de seus personagens masculinos, coloca mulheres em oposição às quatro protagonistas. Em alguns casos, como no de Elisa (Angela Cremonte), ainda se esforça para construir um panorama maior. Explica sua relação conturbada com uma família ambiciosa que a subestima. No entanto, nos demais, coloca mulheres contra mulheres em disputas por homens, sem tentar estabelecer conexão de empatia entre elas. Mais do que isso, ainda desenvolve uma narrativa em que as protagonistas prejudicam outras mulheres injustamente.

Apesar disso, continua sendo uma série de importância ao retratar problemas tão atuais. Falha em alguns pontos do roteiro, mas sem comprometer a história. Consegue mesclar romance, comédia e drama de maneira agradável. Mais importante, insere em todos os seus enredos importantes reflexões sobre a independência da mulher.

Las Chicas Del Cable foi confirmada para uma terceira temporada, a qual deve estrear ainda em 2018.

Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
Veja todos os textos
Follow Me :