A ancestralidade atemporal na coletânea nacional de Afrofuturismo

A ancestralidade atemporal na coletânea nacional de Afrofuturismo

A definição de Afrofuturismo é, de forma simples, a perspectiva afro-americana da ficção científica e da tecnologia. É certo que o termo tornou-se popular nos Estados Unidos, principalmente no início dos anos 2000, sendo mais tarde importado aos demais países que possuem indivíduos pretos em diáspora*¹. Nesta coletânea organizada por Junno Sena e distribuída pela Editora reCORTE, o desejo afrofuturista chega a linguagem e às terras brasileiras, sendo pensada por e para seus habitantes.

O movimento afrofuturista norte-americano foi (e ainda é), sem surpresas, uma perspectiva artística originada da contracultura, isto é, contra uma cultura majoritária e mainstream que discricionariamente apagava ou simplesmente ignorava a possibilidade e, ousamos dizer, a probabilidade da existência negra no futuro, principalmente no meio tecnológico (seja ele ficcional ou não). Nessa onda de uma representação diversa do futuro, com corpos pretos plenamente existentes, originaram-se artistas em diversos planos do aspecto cultural estadunidense, como a artista plástica Ellen Gallagher e, no meio literário, Octavia Butler, para citar alguns.

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“Bird in Hand”, Ellen Gallagher, 2006 (Imagem: reprodução)

Nesta coletânea nacional de afrofuturismo, porém, pela primeira vez somos apresentadas a tal movimento através não apenas das lentes de indivíduos brasileiros, mas propriamente dos nacionais descendentes de ancestrais africanos.

Apesar dos esforços de valiosos aliados e partícipes da luta antirracista, especialmente no meio literário, o esquecimento proposital desta parcela já marginalizada da população ainda encontra fortes representações na mídia. O corpo preto ainda é visto com estranheza no mundo nerd e geek, principalmente quando retratado com protagonismo, ficando a cargo (especialmente) de criadores de conteúdo de Cor*² a tarefa de construir um mundo no qual o fato da Cor não seja rechaçado.

Em todas as tramas da “Coletânea Afrofuturismo”, nesse sentido, observamos a busca pela simples existência. O próprio curador da obra diz, em um prefácio curiosamente emocional, “sonhar com um futuro em que se possa ser um herói, é sonhar com um futuro em que se esteja vivo“, dividindo com a leitora – seja ela preta ou não – a simplicidade buscada pelo povo preto através da perspectiva afrofuturista de afirmar a possibilidade de existência e excelência. Afinal, vivemos – apesar das inúmeras negativas – em um sistema social que busca a aniquilação dos corpos pretos, fazendo-a direta ou indiretamente, bem como [busca] a representação única do ideal branco.

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Coletânea Afrofuturismo. Imagem: divulgação

Continuando na movimentação da contracultura, sendo esta uma verdadeira tradição de Cor, as três autoras e os quatro autores  afrodescendentes uniram-se em sete contos de temática, majoritariamente, africana. O mais curioso dos contos, na verdade, não é a evidente surpresa em ver a representação máxima da africanidade literária, mas a atemporalidade das histórias. É claro, sabíamos tratarem-se de contos com temática afrofuturista, a qual se relaciona, inicialmente, com uma ideia do que poderia (ou poderá) ser o futuro humano com os ensinamentos africanos de ancestralidade intimamente presentes, mas não esperávamos a sensação de reconhecimento atual que as histórias nos trariam.

“Minha raiz ancestral foi educada com o uso comedido do que consideramos um líquido sagrado. […] … a antiga tradição iniciada com o Deus negro africano.” – trecho do conto “O Reino de Agunttah”, de Fernando Gonzaga

Infelizmente, questões como misoginia, machismo, homofobia e racismo ainda se fazem presentes no futuro trazido por alguns dos autores. A passagem de tempo e o desenvolvimento social não foram o bastante, em certos contos, para promover uma eficaz evolução humana de forma a erradicar tais características e ideologias, estando as mesmas ainda presentes e sendo persistentemente prejudiciais ao povo preto.  

 

Ocorre que o afrofuturismo representado na obra como um todo apenas vê o crescimento preto ao afastá-lo de seu calvário branco, o qual foi e é o responsável pelos grandes males de tal povo; seja pelo desaparecimento fático branco e pela união preta-indígena, visto que o plano ainda nos parece como o Brasil, seja pelo auto-descobrimento interior dos indivíduos pretos, a força e o renascimento futuro só são apresentados como possíveis após a conexão da atualidade com a ancestralidade para, assim, se construir um futuro pleno interna e exteriormente.

“Prepare-se para saber quem você é. […] Supere seu medo, mulher, pois superei diversos medos para adentrar nesse limbo diaspórico e te encontrar. ” – trecho do conto “Omara Omnira”, de Margarete Carvalho

O objetivo da “Coletânea Afrofuturismo”, e tal palpite nos parece claro, foi não apenas apresentar as possibilidades de futuro e evolução ao povo preto, mas propriamente propor uma reconexão com a ancestralidade há muito perdida e sistematicamente negada a tais indivíduos. Temos hoje um verdadeiro movimento global dos pretos em diáspora com o objetivo de se reconectarem com sua história, bem como de usá-la para criar um futuro escuro e vivo, cujo algumas visões foram retratadas ao longo das páginas da (insuportavelmente) pequena obra.

A iniciativa é ainda, salvo engano, inédita no mercado editorial brasileiro e apresenta-se como uma lufada de ar fresco – e preto – no cenário literário nacional. A união de sete autores, com seus mais diversos históricos e vivências, serve como uma clara afirmação da necessidade da diversidade autoral na literatura e nos propõe a reflexão sobre questões tão futuras quanto presentes.

Ao terminarmos de ler a “Coletânea Afrofuturismo”, a qual foi construída e desenhada com imenso cuidado e carinho pela editora, precisamos de um tempo não apenas para nos recuperarmos das diversas sensações e dos diversos pensamentos que perpassaram nossa existência ao longo da leitura, mas para apreciarmos a beleza do que é possível construir com mentes e canetas pretas. Pensamos e desejamos, mais do que qualquer coisa, que o futuro não possa ser apenas feminino, mas que seja possível, também, ser preto.

Notas:

¹Termo utilizado para descrever movimentos populacionais de um país a outro. No caso preto, utiliza-se o termo para descrever aqueles retirados de seus respectivos países ancestrais do continente africano, bem como para se referir à busca identitária e reconexão ancestral. O teórico e sociólogo cultural Stuart Hall, em seu ensaio “Cultural identity and diaspora” (Identidade Cultural e Diáspora, em tradução livre), de 1990, discute o identitarismo ancestral e explica questões comuns aos afrodescendentes como deslocamento e hibridismo experimental e cultural, analisando como a identidade se divide em duas: aquela decorrente do pertencimento a um povo em razão de uma cultura dividida entre indivíduos e aquela decorrente de um processo pautado em história cultura e poder. Ao nos referirmos a diáspora durante a resenha, nos referimos a primeira identidade.  

²O termo “pessoa de Cor”, utilizado no presente texto, provém da filosofia anti-sistêmica seguida pela autora do texto, isto é, o feminismo interseccional e o feminismo negro. Inspirada acadêmica e pessoalmente por autoras de reconhecido prestígio e conhecimento dentro do espectro de ambas as vertentes do movimento feminista, a escolha pelo termo “pessoas de Cor” seguiu a filosofia da, mais especificamente, ativista Audre Lorde.

Em um discurso de 1979, que mais tarde se inseriu na coletânea “The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House. Sister Outsider: Essays and Speeches”, publicada pela Editora Berkeley, New York, em 1984, a autora tomou para si o termo antes exclusivamente ofensivo e o utilizou para exemplificar e, assim, demonstrar – entre outras coisas – a violência sofrida por mulheres pobres e de Cor tanto na esfera privada quanto na pública, sendo certo que tal termo foi adotado pelo movimento negro (especialmente o norte americano), bem como pelos demais movimentos com lideranças “não-brancas” e projetos contra a supremacia branca.

Dessa forma, a autora do presente texto, tendo em vista sua realidade como ativista e vivente dos movimentos feministas interseccional e negro, escolheu e escolhe utilizar e – igualmente – tomar para si o termo, não empregando-o de forma a ofender e separar, mas sim de maneira a especificar e unificar, na medida do possível, as realidades e vivências de indivíduos e comunidades não brancas.


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Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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