“Meu nome é Shiv f****** Roy” – nem vilã, tampouco uma heroína em Succession

“Meu nome é Shiv f****** Roy” – nem vilã, tampouco uma heroína em Succession

Shiv Roy (Sarah Snook) não é uma nova Medeia. Daí, talvez, a dificuldade em entendê-la. É difícil amenizar seus erros ou não enxergá-la como uma sátira de um tipo bem específico de mulher, bem distante da realidade da maioria. E assim, nas primeiras temporadas de Succession, principalmente na segunda, ela é apresentada como uma espécie de vilã de novela, do tipo que o desgosto é unânime. Mas seria injusto com ela, resumi-la a isso.

Shiv não é um tipo de vilã tradicional, tampouco uma heroína moderna, uma girlboss em quem nos inspirar. Bom, talvez. Mas não só isso. A série Succession é construída em cima de personagens que transitam entre o bem e o mal, a inocência e a crueldade, mas a filha única de Logan Roy (Brian Cox) nos causa um desconforto particular. Por quê? 

Ainda nos primeiros episódios, conhecemos Shiv por suas referências masculinas. Primeiro, é filha de Logan Roy, o grande bilionário dono da Waystar Roco. Depois, irmã de Kendall (Jeremy Strong), Roman (Kieran Culkin) e Connor (Alan Ruck), também empresários. Por fim, ela é a namorada de Tom (Matthew Macfadyen). Ainda que ela apareça primeiramente com o namorado, o estatuto de “namorada” parece ser o menos relevante para ela.

Tom, por sua vez, só está ali por ela. Ele só existe na série por causa dela. Pelo menos, no princípio. Assim, há um certo desequilíbrio evidente entre a importância do relacionamento amoroso para Shiv e para Tom. Além do mais, descobrimos que ele não é um herdeiro como ela, e o bom emprego que ele possui, é na empresa do pai dela. 

Aviso: o texto contém spoilers de Succession

Quem é Shiv Roy?

Quem é Shiv Roy?
Shiv Roy (Sarah Snook) em Succession | HBO/Reprodução

Siobhan não fica restrita à sua interação com os homens de sua família. Ela tem uma carreira política como assessora de candidatos. Logo, descobrimos que ela faz isso em dissonância com o que os homens fazem: todos eles vivem em função da Waystar Roco, inclusive Tom, que não é da família. E nesse ponto, precisamos dizer que Logan Roy flutua sobre a vida de seus filhos como uma presença assustadoramente admirável. É quase doloroso assistir as cenas de diálogos entre ele e os filhos.

Há um conflito esmagador para cada um deles: amam o pai, o admiram, querem satisfazê-lo e são conscientes do poder que ele exerce sobre eles. Estão presos ao pai. Shiv, como única filha, tem uma pressão diferente dos outros. Ao contrário de seus irmãos, as expectativas do pai sobre ela não envolvem uma carreira bem sucedida, mas a necessidade de ser adorado por ela. 

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Porém, é preciso dizer que ela é a mais parecida com ele. Sua frieza, inteligência e discurso persuasivo são como uma réplica de Logan. E é por isso, e não por ela em si, que tendemos a sentir tanta raiva da personagem. É no mínimo angustiante o modo quase abusivo com que ela trata Tom, fazendo-o se sentir mais um objeto em sua vida, do que um companheiro.

Seus modos de conseguir o que quer revelam um caráter corrompido pelos abusos que sofreu desde criança. Ela abusa de outros porque é como seu pai a tratava, e para isso, ele dava o nome “amor”. Não precisamos passar pano para Shiv Roy. Afinal, é apenas uma personagem. Mas, é claro que, considerando a construção da série, existem motivos para as atitudes dos personagens e é preciso considerá-los. Na vida, uma coisa implica a outra, afinal. 

Shiv Roy e Caroline 

Caroline (Harriet Walter)) e Shiv (Sarah Snook) em Succession
Shiv e Caroline (Harriet Walter) em Succession | HBO/Reprodução

A relação de Shiv com a mãe não é muito explorada na série. A disputa pelo cargo de CEO da Waystar é o conflito central da trama, assim, Caroline (Harriet Walter) é deixada de lado, como na vida dos três filhos que teve com Logan. Através de alguns diálogos é possível ter pistas de como foi a relação deles. Shiv, portanto, cresceu no meio de homens, com traumas de sua relação conturbada com a mãe.

O medo das predeterminações são preocupações de todos os personagens. Como se profecias fossem reais. Kendall não quer ser seu pai, mas se torna ele. Shiv abraça suas semelhanças com o pai, temendo ser como a mãe. Os erros de seus pais estão fadados a serem também os deles? Essa questão, talvez, é ainda mais importante do que “quem vence no final”. O fato das gerações serem cíclicas causa medo e angústia. 

Ainda sobre a relação de Shiv com a mãe, há o fato da maternidade ser uma experiência desconhecida para Shiv. A ausência de sua mãe é aparentemente preenchida com a presença conflituosa do pai. Para Shiv, a maternidade parece ser negativa porque foi essa sua experiência. Se ela pode ser como sua mãe, essa experiência ruim tende a se repetir.

E além do mais, a maternidade é uma jornada solitária e cheia de sacrifícios, especialmente para alguém que deseja algo que apenas homens podem ter. A vida desprendida de Roman, ou a vida inconsequente de Connor ou as remissões sem-fim de Kendall, são privilégios, mesmo entre herdeiros como ela. 

Sobre não nascer para ser mãe

O fato é que Shiv Roy nunca entendeu de fato seu papel no mundo. Com tato nenhum ela tentou resolver as acusações de assédio sexual contra a Waystar. Seus discursos políticos parecem palavras vazias. Não que com seus irmãos seja diferente. Mas com uma mulher, as pessoas esperam que elas tenham algum tipo de entendimento social e fiquem responsáveis pelo cuidado, pela conciliação. Há certos papéis que Shiv deveria exercer, mas ela está sempre deslocada porque não faz parte de nenhum desses papéis. Sua mãe, em uma fala muito marcante da terceira temporada:

Caroline dizendo para sua filha Shiv que se arrepende de ter tido filhos.

“A verdade é que eu nunca deveria ter tido filhos. Você tomou a decisão correta. Tem gente que não nasceu pra ser mãe. Devia ter tido cachorros.” 

A ambivalência leva a crer que nenhuma das duas deveriam ser mães. De certa forma, elas precisam abdicar de muitas coisas para criá-los. Ser mãe é apresentada como uma jornada solitária e de sacrifícios. E ela fica ainda mais dura quando Tom, sem saber da gravidez, diz para Shiv: 

Tom (Matthew Macfadyen) diz para Shiv que ela “não é uma boa pessoa para ser mãe.”

“Você não é uma boa pessoa para ser mãe.”

Essa frase encerra a discussão. Ele ratifica o que Caroline havia sido, aumentando ainda mais a distância de Shiv e as pessoas que ela amava. Assim, ela precisa, mais do que antes, se virar sozinha. É Shiv que, sozinha, precisa agendar momentos para chorar pelo seu pai, tentar não ser deixada de lado pelos irmãos no comando da empresa e digerir a informação de que está grávida, enquanto a ideia de talvez nunca ser uma boa mãe, ressoa em si. Cada vez mais, a quarta temporada indicava Shiv como uma perdedora. Ser uma mulher, uma irmã, uma esposa, uma mãe, pesa mais e mais conforme os anos passam. 

O fim do amor?

Como dissemos, Shiv Roy não é uma vilã ou heroína. Talvez ela tenha se tornado, com o passar do tempo, o tipo de personagem que amamos odiar e odiamos amar. É impossível não admirar seu desenvolvimento. Todos eles são bem escritos e interpretados, mas Shiv, tendo sido tão odiada, na série e pela audiência, é aquela que mais parece ter tido algo semelhante a um arco de redenção. Sua vida é, de fato, a soma de coisas boas e ruins que ela nos transmitiu ao longo desses longos anos. 

Ela foi tóxica com Tom em inúmeros momentos. O traiu, o deixou de lado, mentiu. Para ela, a relação era algo prático. Um modo de ter alguém em sua vida. Para ele, foi seu modo de garantir um futuro melhor. Tom não conseguiria nada sem ela. Mas isso não significa que não havia um afeto real.

Tom (Matthew Macfadyen) e Shiv (Sarah Snook) na quarta temporada de Succession
Tom (Matthew Macfadyen) e Shiv na quarta temporada de Succession | HBO/Reprodução

No fim, naquela discussão cruel e verdadeira na varanda, revelou que nada se resume ao certo ou errado, há um amontoado de lembranças dolorosas e bonitas que se misturam como em um pesadelo. Há rachaduras em uma relação de intimidade, causada pelo contraste entre o que é, e o que costumava ser. A atuação de Sarah Snook chega ao seu ápice como Shiv Roy, na temporada em que ela precisa se manter forte para o fim dessa epopeia de sucessão. 

O luto

Já o luto de Shiv perpassa todas as suas outras relações, colocando em perspectiva o amor estranho que recebia de seus irmãos e esposo. E o roteiro é impecável quanto a isso. No discurso do funeral de Logan, ela é a única que consegue falar com afeto sobre seu pai. Diante de seu caixão, ela se lembra da sua voz de trovão, que era assustadora, mas também calorosa. A vida com ele, ela diz, era quente.

É com ela que mais percebemos as controvérsias nas relações entre o pai Logan e o visionário Logan, entendendo como era possível amar e odiar tanto alguém. Ela diz, sintetizando a relação conturbada entre Logan e as mulheres de sua vida: “era difícil ser uma mulher com meu pai, ele não entendia”, mas, completa dizendo que ele fez o seu melhor.  

Sarah Snook em cena do funeral de Logan Roy
Cena do funeral de Logan Roy | HBO/Reprodução

É assim, com essa declaração sobre a misoginia dele, que podemos também interpretar as lágrimas de Kerry (Zoe Winters) no funeral. Ela foi a última amante. Convocada por Caroline, ela se une ao mesmo banco, com Marcia (Hiam Abbass) e a amante da época de Caroline. Essas quatro mulheres, com saudades diferentes sobre o mesmo homem, pareciam transmitir, finalmente, uma espécie de sentimento libertador.

Estavam livres do furacão Logan Roy. Passaram por ele e sobreviveram. Shiv tratou todas elas, ao longo de sua vida, com ciúmes e às vezes, inveja. Três delas parecem ser compreensíveis, madrasta e amantes do pai, contra a única filha. Mas até sua própria mãe era vista com desconfiança. 

Com o luto, vem também a necessidade de estar próxima de Tom novamente. Talvez seu pai tenha acertado, afinal, quando disse que ela preferia um homem mais fraco para estar ao seu lado, porque tinha medo de ser traída. 

O adeus de Succession

Na quarta temporada de Succession, há muitas apostas para quem sairá como CEO. Mas no fim, a relação dos quatro irmãos é o mistério mais potente. Como eles viverão depois de Logan? As eleições presidenciais renderam um episódio magnífico, no qual Shiv sai de novo perdedora, mas cuja derrota todos nós podemos entender.

Sua impotência significa muito mais do que apenas uma birra de irmãos. Tudo pode mudar com um candidato de extrema-direita no poder. Shiv não exagerava ao dizer que poderia ser o fim do mundo. E estando tão próxima de poder atrasar ou impedir aquela catástrofe, ela só pode assistir. Talvez por isso, por sempre ter recebido “nãos”, é que ela quer ter o poder da resposta final, no encerramento da série. 

Shiv, na reta final da corrida para CEO, se esforça para vencer uma vida de atrasos e ausências. Luta contra a maré política que sua própria família ajudou a erguer. No fim, pouco importa se é algo hereditário. Nossas escolhas são moldadas pelo que vivemos, e somos os resultados dessas escolhas. Ewan (James Cromwell) em diversos momentos reforça isso.

Cena da season finale de Succession.
Shiv Roy na season finale de Succession | HBO/Reprodução

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A moral de Logan e seus filhos está quebrada. Eles brigam e o mundo sofre as consequências. Siobhan é parte dessa bagunça perfeitamente organizada que foi Succession e, antes de dizer adeus, fica marcada como uma das personagens femininas mais complexas da TV nos últimos anos. Sua presença inegavelmente transformou a série em cada um dos seus arcos e temporadas. Ela não é alguém em quem se inspirar, mas quem, naquele mundo terrível, é? 

Shiv não é uma nova Medeia, não é sua mãe, tampouco seu pai. Ela é simplesmente o que é. No roteiro brilhante da série, há o tipo de personagem que inspira outras personagens depois, que estabelece um certo padrão de desenvolvimento muito raro de se alcançar, com uma atuação tão boa e uma comoção tremenda em torcer a favor ou contra. Essa personagem é Siobhan Roy. 

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31 Textos

Estudante de Letras na Universidade de São Paulo, apreciadora de boas histórias e exploradora de muitos mundos. Seus sonhos variam entre viajar na TARDIS e a sociedade utópica onde todos amem Fleabag e Twin Peaks.
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