Enquanto aqui estiveres, tu governarás tudo que vive e anda, e terás as maiores honras entre os deuses imortais.
O trecho, retirado do mito original de Hades e Perséfone, é uma declaração feita pelo temido deus do submundo para a inocente deusa da primavera. Ambos bastante conhecidos no campo da Mitologia Grega, também são responsáveis por inspirar diversos recontos de seu história, normalmente contendo bastante romance e sensualidade.
Na literatura, há inúmeros casais que transparecem traços de personalidade óbvios do casal mitológico, como é o caso de Feyre e Rhysand, da série Corte de Espinhos e Rosas (Sarah J. Maas) e dos famosos Edward Cullen e Bella Swan, da saga Crepúsculo (Stephenie Meyer).
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Criada pela artista e folclorista Neozelandesa Rachel Smythe, Lore Olympus é uma releitura em formato de webcomic que oferece o melhor dos dois mundos: a construção de um relacionamento repleto de maturidade, como também a abordagem de pautas sérias e necessárias para a atualidade.
Logo de início, somos apresentados a amável e jovem Perséfone. Criada no reino mortal durante seus 19 anos, ela finalmente recebe permissão de sua mãe, Deméter, para viver no Olimpo entre os deuses, a fim de seguir seu caminho para se tornar uma virgem sagrada. Durante essa fase de adaptação da personagem, percebemos algumas diferenças relacionadas ao lar em que ela vive agora e aquele que ela deixou para trás.
Ao passo que no mundo humano não houve avanços, o Olimpo é repleto de tecnologia e transmite um ar de modernidade. Com a representação semelhante a uma metrópole, seus habitantes possuem carros, celulares e frequentam diversas festas luxuosas, sendo essa a causa primária do encontro entre o casal principal.
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Atenção: a partir deste ponto, o texto contém alguns spoilers e gatilhos relacionados a trauma sexual, abuso físico e psicológico.
O rapto “civilizado”
Primordialmente, no mito original, Hades deixa seu reino temporariamente para verificar o andamento da guerra dos deuses gregos contra os gigantes no mundo mortal. Sua paixão iminente por Perséfone surge devido a uma flecha que Eros, deus do amor, lançou em sua direção. Após o evento, ele a avistou colhendo flores em uma colina, colocando-a a força em sua carruagem e conduzindo-a até o submundo.
Levando em consideração a atitude inconsequente de Hades, assim como a menção da palavra rapto, que remete a algo que envolva violência e ameaças, em Lore Olympus esse pedaço marcante da história do casal acontece de uma forma mais humanizada. Convencida e acompanhada de Ártemis, sua colega de quarto e deusa da caça, Perséfone vai a uma das festas luxuosas do Olimpo, esta organizada por Zeus, e acaba no banco de trás do carro de Hades, o que, mais tarde, descobrimos não passar de um engano.
O que realmente aconteceu, foi um surto de ciúmes da deusa Afrodite, associada a beleza e fertilidade. Após escutar um comentário de Hades ao irmão, dizendo que Perséfone a “deixaria no chinelo” em questão de aparência, ela decidiu tramar contra ele. Usando seu filho Eros como intermediário, ela a deixa inconsciente em questão de alguns drinks e coloca-a em seu carro, com a ideia de fazer com que Hades veja seu estado desprezível e retire o que disse anteriormente. Como resultado, Hades dirige para casa sem perceber quem estava bem atrás dele.
Os paralelos com a história original são perceptíveis. O mesmo personagem contribui para que eles se envolvam, mas a atitude de Hades não dá indícios de prisão ou comportamentos tóxicos, muito pelo contrário. Além de não provocar o rapto, ele mantém Perséfone em seu reino apenas até que ela se recomponha, levando-a de volta ao Olimpo assim que esta desperta.
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O florescer de um amor violeta
Após o plano mesquinho de Afrodite fracassar, Perséfone segue com os aprendizados no Olimpo assim como Hades continua regendo o submundo. A situação se manteria estável, caso os amigos de ambos não encorajassem o romance e o destino não tivesse planos maiores para os dois.
A princípio, ela estaria proibida de se envolver com qualquer ser do sexo oposto, por conta do juramento que fez a sua mãe e a seus estudos como virgem sagrada. Isso até ela ganhar um celular e adicionar o número de Hades. Mesmo não conseguindo vê-lo por vontade própria, Perséfone acaba fomentando conversas por SMS entre os dois.
Devido a noite que passou na casa dele após a festa de Zeus, ela percebeu o quanto se sentiu importante e amada, mesmo que precise esconder isso da maioria das pessoas. Em paralelo, confuso e incompreendido, Hades deseja mantê-la por perto, mesmo que isso signifique arriscar seu relacionamento atual e a ira de outros deuses.
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Com o passar dos episódios, o vínculo entre os dois cresce, avançando para uma saudável amizade e uma inegável atração, que infelizmente precisam lutar para não transparecer. Isso causa ainda mais alvoroço quando Perséfone é selecionada para trabalhar no submundo, eventualmente ao lado de Hades. Juntos, eles organizam as almas recém chegadas ao reino dos mortos, sendo essa a próxima fase que dará início ao seu relacionamento amoroso.
Apesar de se distanciar dos acontecimentos assombrosos do mito original, ambos os personagens não são perfeitos. A insegurança, o medo e o ciúmes se fazem presentes a cada passo do casal em direção ao “felizes para sempre”, mas o diferencial é que os dois optam por crescer juntos. Ao invés de brigas desnecessárias, há esforços para lidarem com as dificuldades e compreender um ao outro. Os painéis nessa questão também passam a sensação de tranquilidade, já que se aproximam bastante daquilo que estamos acostumados no dia-a-dia.
Relacionamentos abusivos
Por mais que a história seja repleta de vida e bastante invejável em alguns momentos, ela também aborda temas delicados. Algumas das dificuldades que os protagonistas precisam enfrentar estão relacionadas com traumas e situações mal resolvidas do passado. As mais discutidas entre elas são o abuso parental de Deméter e o trauma sexual de Perséfone.
Desde que passou a viver no Olimpo, longe dos cuidados da mãe, ela se vê obrigada a amadurecer sozinha. Durante sua infância, Perséfone nunca teve liberdade o suficiente para contrariar Deméter ou fazer o que realmente desejava, mesmo que cumprir com seus deveres como deusa nunca pareceu ser um problema.
Após atingir a maioridade, a superproteção de Deméter continuou transparecendo no relacionamento das duas, inclusive persuadindo em sua escolha de ser virgem para sempre. Controlando a filha de perto, esse comportamento acaba se tornando um peso, afastando-as e deixando Perséfone com sérios problemas de comunicação e falta de experiências essenciais no preparo para a vida adulta.
Além de sofrer com a negligência de sua mãe, Perséfone também se torna vítima de um trauma sexual provocado por Apolo, deus do sol. Naturalmente, por ser irmão gêmeo de Ártemis, os dois se conhecem através dela, ainda no mesmo dia de seu retorno do reino de Hades.
Percebendo sua inocência e contrariando suas vontades, Apolo se mostra um verdadeiro lobo em pele de cordeiro, violando a intimidade de Perséfone. Os painéis desse acontecimento são bem interessantes por conter uma espécie de laço se rompendo, como se representasse a dor e a humilhação na qual ela se encontra.
As consequências da atitude desprezível de Apolo somadas a todos os problemas com Deméter, resultaram em um pesadelo que se estende pela maioria dos episódios. Com dificuldade de externalizar o que aconteceu, temendo a culpa e o julgamento caso ela conte a alguém, Perséfone decide manter isso em segredo até que se sinta segura em falar sobre o assunto.
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Do mesmo modo, Hades também luta contra seus demônios interiores, porém envolvendo seu relacionamento conturbado com o pai, Cronos. Sendo desprezado por ele desde a infância e acreditando ser uma pessoa horrível devido ao seu título, ele acha que não é merecedor de felicidade nem de amor verdadeiro.
Envolvido em um caso com Minte, sua secretária e uma pessoa tão machucada quanto ele, percebe-se facilmente que um relacionamento sério é insustentável. Como ela também não deseja ser rainha, a única coisa que os mantém unidos é a carência que vez ou outra necessita ser suprida.
Um fato interessante sobre os episódios que abordam especialmente todas essas questões, além da autora tratá-las com muita responsabilidade (envolvendo até terapia no processo), são os avisos de gatilho. No começo de cada um, há sinalizações para que o leitor não seja pego desprevenido em alguma situação desconfortável. Isso transparece na forma como a história é contada, ou seja, fugindo um pouco da romantização e focando mais nas questões psicológicas da narrativa.
Um arco-íris de personagens
Simultaneamente à história de Hades e Perséfone, podemos acompanhar a trama envolvendo outros personagens marcantes na mitologia grega, como Zeus e seu casamento conturbado com Hera; Eros e o drama após o fim do relacionamento com Pisquê; Hécate como amiga de Hades e diretora de operações no submundo; Hermes servindo de mensageiro para o Olimpo; e, por último mas não menos importante, as outras virgens sagradas: Hestia e Athena.
Além de ser um fenômeno no Webtoon, plataforma que disponibiliza webcomics de forma online e gratuita, Lore Olympus também já recebeu diversos prêmios. Um dos mais notáveis até então foi o Eisner, considerado como o Oscar dos quadrinhos. Vencedor na categoria de Melhor Webcomic, a história também está presente em outros cantos da internet, como no Instagram da autora (@usedbandaid), onde ela compartilha o processo artístico dos painéis e interage com os fãs da obra.
No Brasil, a Companhia das Letras adquiriu os direitos de publicação física através do selo Suma, voltado para o público geek. Atualmente, já foram publicados 3 volumes com 25 episódios cada.
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